segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Feliz Natal!


Deus andou entre nós em corpo glorioso; o amor vence a morte.

O mal não desapareceu nem desaparecerá até o fim dos tempos, porque temos nossa liberdade existencial: bela e sombria.

Mas, o que nos foi revelado por um menino que nasceu em Belém, mostra-nos que bem aventurança traz vida eterna; e o mal? É só o que nos faz mover a história.

Assim como era no princípio, agora e sempre!

domingo, 6 de dezembro de 2020

Pensando & Conhecendo XVII

 



Qual é a diferença entre um acordo de cooperação horizontal análogo a um ato de concentração e, portanto, presumidamente lícito; e um cartel, uma conduta ilícita por objeto que, no Brasil, tipificado como crime? Nem sempre a resposta será fácil, pois comporta uma série de nuances que precisam ser analisados empiricamente com o uso de métodos próprios do estatuto científico da Economia. 


Talvez se possa dizer pitoresco no Direito Concorrencial como a sua teorização parte da regularidade e generalidade, enquanto se constate que a análise antitruste recorrentemente chega a soluções ad hoc. Ou seja, os juízos da autoridade administrativa sancionadora se exaurem com variações significativas caso a caso. Mesmo assim, é possível emprestar coerência entre a regularidade do modelo teórico e a prática casuística da autoridade antitruste. Bastante observar que seus pronunciamentos se voltam a situações que, justamente por serem excepcionais, marginais, atraem a sua alçada. Trocando em miúdo, trata-se de situações excepcionais com as quais a autoridade antitruste reafirma a validade dos pressupostos econômicos do Direito Concorrencial.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O Advento


Cidade eterna.   Com o aconchego da simplicidade, as cúpulas lhe dominam.  Jamais se atreveram ofuscá-las com arranha-céus.  A beleza inspirou modéstia virtuosa entre engenheiros e arquitetos.  Há tantas outras cidades em que aço e vidro podem ser erguidos como que sem limites.  Não, em Roma!

Mais fácil é a interpretação que as cúpulas das suas Igrejas sejam símbolo dos céus em paraíso.  Conspiram para essa percepção os afrescos com que nossos olhos se maravilham.  Não excludente a leitura (ao contrário!), prefiro sentir as cúpulas como ventres férteis e acolhedores de seus filhos.  É a Igreja feminina,  doce e gentil.  Esposa de Cristo em veneração à mãe de Deus.  

Cidade laica. Sem explicação de ordem política,  só de lhe contemplar das suas colinas, se pode muito bem compreender Roma sendo a pacifica capital de um Estado Democrático de Direito.  E ao mesmo tempo o sítio de um Estado teocrático absolutista - o Vaticano.

Gloria in excelsis Deo!  Unimos nossos corações ao de uma mãe gestante no Advento.  Ele veio encarnar entre nós criança.  Pediu-nos hospitalidade e ternura. Tão pouco nos custa, quando tudo prometeu.     

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Pensando & Conhecendo XVI





A necessidade de uma resposta a questões cruciais para nossas decisões diárias no contexto da ordem econômica e social contemporânea torna imprescindível o apelo à autoridade dos especialistas, o que impõe uma validade pressuposta de outras investigações que não podemos verificar  por razões de competência e/ou tempo. Ainda que se possa examinar o rigor epistemológico de qualquer investigação especializada, não há como fazê-lo ordinariamente, senão por alguma amostra selecionada para verificação das premissas assumidas e métodos adotados em pesquisas avançadas.  Ainda que se realize uma verificação em amostragem, há uma interação nodal ou rizomática de testemunhos encadeados que torna incontornável a dependência epistêmica e assimetria na justificação de crenças cuja verdade seja provável.

 

A justificação requer uma avaliação racional da especialização: como reconhecer um especialista em um determinado domínio técnico como autoridade fiável em um tópico?  As objeções às diferentes possibilidades teóricas no âmbito da epistemologia surgem em todas as direções e, ao que parece no atual estado das artes, o debate a respeito da prevalência de uma alternativa teórica sobre outra resta insuperável.  O que soa paradoxal em se tratando de lógica (se considerada apenas sua versão clássica de certificação da verdade).  Mas, essa impossibilidade de superação torna particularmente crítico para o Direito Penal Econômico o exame da qualidade epistêmica das crenças envolvidas.  Aí, a alética se torna uma competência.  A alética é o campo de estudos contemporâneos sobre lógica das correlações entre necessidade, contingência, possibilidade ou impossibilidade.

sábado, 7 de novembro de 2020

Pensando & Conhecendo XV





Crimes de perigo, bens jurídicos coletivos e criminal compliance são expressões que surgem face os perigos imaginários de um mundo vertiginoso. A partir da sua potência autônoma proclamada e de seu desejo por ela, o ser humano abismou-se ao criar padrões materiais para seu bem estar tanto quanto em gerar sofrimento e medo instantâneos e em larga escala.  O contexto em que se dá este material apresenta-se num horizonte temporal que retroage aos anos 70, quando a volatilidade e a incerteza foram percebidas como dramáticas em séries estatísticas que vinham regredindo à média sem que ela se movimentasse sensivelmente para os agentes econômicos desde o fim da II Guerra Mundial, particularmente para agentes norte-americanos e europeus: preços de produtos primários, taxas de inflação, câmbio, juros e títulos públicos.  Algo inteiramente novo também acontecia: uma circulação de informações com impressões impensáveis anteriormente através das redes de comunicação com transmissão de imagens via satélite.  A derrota no Vietnã, a explosão dos preços de petróleo, o escândalo de Watergate, os reféns de Teerã produziram impressões da noite para o dia em milhões de pessoas que não estavam acostumadas a esse bombardeio televisivo nem analistas profissionais estavam preparados para responder sobre esses fenômenos de massa. 

 

Neste contexto, o paradoxo de Ellsberg ganhou relevância como teoria:  os agentes econômicos tendem  a decidir derivados dos padrões de racionalidade esperada em situações de incerteza.  Daniel Ellsberg, que por sua formação militar era familiarizado com jogos de guerra, fez uma distinção importante entre risco e incerteza:  A primeira lida com a probabilidade, pois seu conhecimento pode ser baseado em séries históricas; a segunda lida com ambiguidade, pois se desconhece o que seja provável por ausência de padrão serial possível. Por aversão à ambiguidade, os agentes econômicos tendem a assumir posições  mais arriscadas do que seria racionalmente esperado deles.  Ou seja, prudência é uma virtude que escasseia em situações de incerteza.  Esse paradoxo pode ser ilustrado da seguinte maneira: exaltamos inovações tecnológicas disruptivas como manifestações da genialidade e progresso humanos ao mesmo tempo em que as incertezas inerentes às disrupções nos leva a tomar decisões disfuncionais por aversão à ambiguidade.  Ellsberg evidenciou empiricamente que a ambiguidade faz disparar os custos de risco nas transações.


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Pensando & Conhecendo XIV


Em 2013, Richard Thaler foi laureado com o prêmio Nobel por sua contribuição ao estudo da economia comportamental, passando a ombrear com Daniel Kahneman, premiado em 2002 por sua abordagem pioneira da Economia com foco no comportamento dos agentes econômicos .  Este campo de estudos é transdisciplinar à psicologia e, entre outras coisas, estuda como a incerteza influencia decisões dos agentes econômicos.  O reconhecimento da racionalidade limitada foi uma contribuição da economia comportamental para os custos de transação.  Uma das implicações do conceito é a inversão de tendência pressuposta desde a economia clássica.  Adam Smith e seus colegas liberais pressupunham que a variância do mercado tendia necessariamente ao equilíbrio.  Isso, porque idealizaram o agente econômico como racional (o que é próprio do imaginário dos Secs. XVIII e XIX), e não dotado de psiquê com padrões inconscientes (sec. XX).  Ou seja, a volatilidade do mercado não tende necessariamente ao retorno do equilíbrio, mas também à maior volatilidade, conquanto permaneça da escola clássica o ideal de que seja não só possível como necessário que a economia volte à normalidade.  Que matematicamente corresponde a uma curva em forma de sino (curva de Gauss).   A confluência da psicologia e da lógica na economia indica o desafio permanente dos economistas: encontrar “novos normais”.  Em termos de gestão de riscos, permanecemos num meio termo contingente entre duas regressões paradoxais, ambas descritas por matemáticos do sec. XVII: a de Blaise Pascal (a regressão ao infinito) e a de Jakob Bernoulli (regressão à média). 

 A racionalidade limitada dos agentes econômicos (cuja ausência de invariância lógica em suas decisões frustra a idealizada normalidade racional da Economia) responde em grande medida para o aparecimento do Direito Regulatório e pela expansão tanto do Direito Administrativo Sancionador como do Direito Penal Econômico.  Para isso, foi preciso encontrar conceitos centrais e comuns tanto na linguagem da Economia e como do Direito para argumentações sistematicamente coerentes.  Estes conceitos foram função e risco.  A limitação da racionalidade dos agentes econômicos encontra seu fundo na incerteza.  E esta incerteza se manifesta empiricamente no aparecimento de externalidades que alterem abruptamente a percepção do risco pelos agentes.  A função do Direito Regulatório é modular estes aparecimentos, normatizando as novidades para que se tornem compatíveis com a normalidade.  Tanto melhor que as normas se antecipem e sejam preventivas.  De certo modo, o Direito Administrativo Sancionador condiciona a liberdade dos agentes econômicos para que não importe num grau insuportável de ambiguidade.  Isso pressupõe que os agentes, embora limitados, ainda sejam racionais.  A Economia Comportamental indica que, em média, os agentes econômicos tendem a uma rejeição maior a perdas (pela sanção) do que a um apetite por ganhos (pela infração).  Mas, como Gottfried Leibniz (outro matemático do Sec. XVII) ressalvou ao examinar as demonstrações matemáticas de Bernoulli, “nem sempre”:

A natureza estabeleceu padrões que dão origem à recorrência dos acontecimentos, mas nem sempre.  Doenças novas assolam a raça humana; mesmo que se faça muitos experimentos com cadáveres, isso não impõe um limite à natureza dos eventos que impediria a sua variação futura.

.Este “nem sempre” e sua ilustração patológica são significativos para compreender a função suplementar do Direito Penal Econômico ao Direito Administrativo Sancionador em termos corretivos e preventivos.   Diante das evidências empíricas reunidas pelos estudos de economia comportamental, os agentes econômicos reconheceram em si mesmos uma fonte de incertezas que demandam medidas públicas protetivas ao positivarem segurança como bem jurídico da ordem econômica.  No limite, admitem ser sua ação potencialmente criminogênica por disfunção extrema neste âmbito constitutivo da sociedade de livre mercado.    

 Não por acaso, Ronald Coase foi agraciado com o premio Nobel em 1991.  A sua contribuição para o desenvolvimento da ciência econômica veio com seus modelos matemáticos que logravam relacionar racionalidade limitada dos agentes, a assimetria de informação, a incerteza, a conduta oportunista, especificidade de ativos e o exercício de direitos de propriedade.  Estes modelos inovadores foram chamados de custos de transação e lograram vincular matematicamente comportamento e institucionalidade na Economia.  As relações quantitativas entre Direito e Economia agora poderiam ser observadas a partir de metodologia própria. 

 Seguindo uma tendência desde 1994 (quando John Nash e Reinnhard Selten foram premiados), o estudo de comportamentos ótimos, quando o custo e benefício de cada opção não forem fixos (porque são intrinsecamente dependentes de decisões simultâneas tomadas por agentes econômicos não cooperativos) rendeu-se mais um prêmio Nobel em Economia. Desta vez (2020), foram laureados Paul Milgrom e Robert Wilson pela aplicação da teoria dos jogos na definição de regras mais adequadas para ofertas públicas (leilões). O reconhecimento dado remonta o mesmo ano de 1994, quando as contribuições teóricas de Milgrom e Wilson foram determinantes para o modelo de concorrência pública norte-americana para exploração da telefonia móvel. Este modelo é conhecido como leilão ascendente simultâneo. Desde então, estes economistas têm formatado vários modelos de leilão conforme objetivos e variáveis situacionais. Em geral, os modelos desenvolvidos buscam facilitar a participação eficiente de interessados nos leilões, enquanto dificultam que atuem coordenadamente. Os modelos de Milgrom e Wilson não se prestaram unicamente ao desenvolvimento técnico da regulação em mercados de monopólio natural (que normalmente serão transacionadas como concessões públicas), mas também as ofertas públicas de ações por empresas que abrem seu capital ou ampliam essa abertura considerando interesses diferentes de stakeholders diversos

 A premiação conferida a esses economistas é um reconhecimento indireto dos genuínos interesses jurídicos transindividuais a serem contemplados nos desenhos de oferta pública, pois ilustra a importância da perícia na criação das suas regras sem as quais resultados não serão tão satisfatórios como possíveis. De outro lado, este conhecimento malversado possibilita manipulações veladas para favorecer agentes não cooperativos em detrimento desses interesses legítimos. Entre a perícia na otimização de resultados econômicos eficientes e a manipulação sutil desses resultados há rico material criminológico para estudos de aplicação e adaptação do Direito Penal Econômico conjugado ao Direito Administrativo Sancionador. 



Pensando & Conhecendo XIII

 


Sabemos que a probabilística foi iniciada na troca de correspondências entre Blaise Pascal e Pierre de Fermat em meados do sec. XVII.  Eles tentavam solucionar o desafio de Paccioli (professor de Leonardo da Vinci em matemática):  “A e B jogam dados honestamente.  Eles combinaram que quem vencesse 6 partidas primeiro levaria todo o dinheiro apostado.  Mas, o jogo teve de terminar, quando A só  havia vencido 5 rodadas e B, 3.  Como o dinheiro deve ser dividido?”.  Para Pascal e Fermat, não se tratava só de um enigma aritmético.  Mas, também uma questão moral.  Pascal foi teólogo e Fermat era advogado.  Concordavam que a volta ao status quo ante (devolver as apostas) não era o mais correto, pois seria ignorar uma combinação proposta entre eles.  Respeitar a combinação era a motivação moral e aí lançaram as bases da análise combinatória, com a qual estabeleceram uma regra racional para justa distribuição derivada entre o combinado e o atualizado.  Demoraria ainda bem mais de um século para que essa noção tivesse aplicação pública na ordem econômica, mas Fermat e Pascal intuíram, juntos, algo essencial na gestão do risco:  a sua ambiguidade entre cálculo e a motivação. O cálculo esclarece a regra, mas é motivação o que a justifica.   

A gestão do risco nasceu de um problema hermenêutico.  Sendo Direito e Teologia disciplinas essencialmente dogmáticas, é hermenêutica a base epistemológica para a abordagem de ambos.  O diálogo entre ambas as disciplinas se mostrou fértil.  Mas, as guerras religiosas e as revoluções sociais ensejaram o imaginário atual de que a Teologia e o Direito sejam campos totalmente separados pelo Estado laico.  Em que pese a história do risco testemunhar a fertilidade intelectual do diálogo entre ambas. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O que um padre do deserto teria a dizer sobre compliance? (2)


“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno histórico com o qual se pode estabelecer analogia ao tempo hodierno pelas sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural em tensão com as de estabilidade, de continuidade e de coesão social.  Outrossim, deram eles expressividade a essas sensações convulsivas através de um estilo: a apotegmata (breves narrativas em que lhes dá sentido um comentário atribuído a um padre do deserto).

A morte, claro, é um tema recorrente nos apotegmas.  Ela é recorrente também hoje, mas sintomaticamente oblíqua através dos predicados saudável (perspectiva individual) e sustentável (perspectiva social).   Digo oblíqua, porque hoje abordamos normalmente a morte como algo a ser prevenido e corrigido. Estamos “em luta contra” a morte; médicos “perdem” seus pacientes assim.  Então, como é evidente para unidades complexas de carbono e hidrogenação catalítica, formamos um exército sitiado pela morte. E que já sabe:  todos nós perderemos a vida nesta batalha, mas mesmo assim devemos resistir.    Pelo quê?!  A felicidade ainda a ser buscada, mas que, neste estado de sítio, nos escapa. 

Desprovidos de pensamento crítico, não há enfrentamento do tema: os apotegmas dissociam da morbidez sua alusão direta à morte.  O que isso pode dizer sobre o compliance?  A morbidez como sintoma estilístico do enfrentamento temático contemporâneo tende a retratar a morte como um algo voraz, disfuncional e implacável.  A morte assim retratada é liberdade despersonificada.  Trata-se de uma projeção da performance vazia de significado.    Como resposta, a vida humana autonômica, típica concepção humanista, corresponde a uma liberdade performática contida pela normatividade. 

As sociedades democráticas de mercado se lançaram à aceleração das inovações tecnológicas.  Numa abordagem patológica, um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é rebento. E com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a resiliência:  a normatividade inflacionária de marcos regulatórios da qual o compliance é colateral.  Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa liberdade.  Eis o paradoxo da liberdade coercitiva em expansão.

Não se trata de negar o caráter incontornável das práticas de compliance na ordem econômica.  Mas, tampouco é incontornável a necessidade de uma compreensão patológica de qualquer funcionalidade.  Por exemplo, a patologia numa pandemia só se completa com a análise funcional dos processos bioquímicos do seu vírus patogênico. 

Quero então apontar isso: o excesso de funcionalidades normativas que tomam forma de violências neuronais, dos quais o transtorno do burnout é um sintoma, constitui um limite hipotético para as políticas de compliance.

A Igreja Católica Apostólica Romana em contexto do debate público em espaços democráticos



Eu compreendo a lógica entre diversificação proliferante e escalada do efêmero nos espaços democráticos. É uma questão de concorrência por espaços repercussivos de fala para uma pauta de transição cultural. Abre-se a seguinte perspectiva: ou o Papa incorpora a expressão sororidade junto à fraternidade, ou o seu magistério é desviado da sua finalidade contemplativa, escolástica por ter o seu texto derivado para mais um falatório interminável próprio dos espaços democráticos contemporâneos.

A pergunta é esta: À Igreja pode ser aplicada a mesma estratégia que é bem sucedida, quando se trata da indústria de entretenimento? Não por alguém que, de boa fé, se diga fiel da Santa Igreja, ainda que, por convicção políitca, abraçe a bandeira da sororidade.

A questão centra-se na expressão Apostólica que define a Igreja. Entre outras coisas, isso significa que predomina nela o caráter episcopal em relação ao congregacional. Trocando em miúdo, a Igreja nunca foi, não é e nem será um espaço de saturação democrática. Se isso for insuportável para alguém, ainda que seja cristã, há derivações predominantemente congregacionais no cristianismo. Paciência.


Ser católico pressupõe admitir que o mal seja inafastável da história. E que isso tenha uma profunda implicação pessoal: a própria humilhação. Aceitar que a Igreja não esteja inteira sob medida de minhas medidas de causa e justiça é um exercício de humildade. E isso tem uma implicação prática positivada em cânon: mesmo que discorde do magistério eclesiástico em alguma alguma questão opinável, especialmente se se tratar do Papa, eu, como fiel, devo guardar o silêncio obsequioso. Ao invés de me lançar em falatório, devo me recolher em oração e petitório para que o Papa ouça o Espírito Santo. Como diz o Evangelho, que "seja feita a Sua vontade, e não a minha".

Enfim, não estou negando a importância de elevar a condição feminina em sociedade. Mas, admitindo os limites próprios da condição humana, inclusive no que se refira ao debate democrático.



E, não. O Papa não está propondo mudanças de magistério eclesiástico sobre a sexualidade e família. Francisco apresenta uma mudança de enfoque. Parece surpreendente. Não tanto, se lembramos que se trate do primeiro Papa jesuíta da história. Jesuítas são preparados para se lançarem missionários em qualquer cultura; em qualquer linguagem e aí encontrarem modos adequados de comunicar o querigma (anunciamos a morte do Deus de Abraão, Isaac e Jacó e proclamamos a Sua ressurreição; vem Senhor Jesus!). A união conjugal civil é fenômeno cultural. Já para o fiel, o casamento consagrado entre homem e mulher transcende a sexualidade, a generalidade, a cultura, a humanidade.
O sacramento não é só antropológico; é sobretudo teológico. Agora, qual o sentido fenomenológico do matrimônio? O acolhimento hospitalar inquebrantável no cumprimento de uma promessa feita por um homem face a vulnerabilidade de uma mulher em sua condição gestacional de vida e, portanto, de esperança redentora: "a minha vida pela sua e as dos frutos de seu ventre". Pense num filme de apocalipse zumbi e compreenderá o sentido escatológico desta promessa e ela só terá significação transcendente, quando feita entre um homem e uma mulher, ou pelo menos, referenciada nessa relação binária.
Agora, pense na moral (se preferir, na justiça dos homens): o que mais vale em termos de acolhimento hospitalar? (1) o vínculo histórico entre duas pessoas, não importa aqui o gênero, em que uma cuidou da outra, quando esteve aflita, triste ou doente; mantiveram pacificamente uma casa em comunidade; cooperaram em tarefas cotidianas todo dia, muitos dias; e compartilharam o pão (e as contas de supermercado)? (2) o vínculo sanguíneo/biológico entre pessoas que há muito tempo não se falam, não se ajudam, não se interessam umas pelas outras? Nestas opções, na definição de direitos sucessórios, a quem caberia a herança de um falecido? A ênfase moral na transcendência do sacramento justificaria a transmissão patrimonial herdada conforme a hipótese 2? Hoje em dia, resta claro que não. O apontamento em direção à hipótese 1 em nada contraria, por exemplo, a encíclica Deus Caritas Est, escrita pelo Papa Bento XVI e na qual este nosso teólogo maior da virada de milênio ensinou a gradação moral entre o amor que seja Eros e o amor que seja Ágape. Para o Ágape, aponta coerentemente Francisco no contexto contemporâneo da cidadania.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Pensando & Conhecendo XII

Autoridade para o compliance officer é a capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral.  Sendo o compliance essencialmente um exercício sistemático de normatividade (autorregulação regulada), há (in)fusão (mimese) de instrução (injuntiva e prescritiva) numa narrativa (a trajetória memorável de uma atividade humana num enredamento dos acontecimentos para ser-o-que-tiver-que-ser ao fim e ao cabo).    O sistema de gestão de compliance produz uma narrativa sistematicamente documentada.  Isso porque existe uma diferença lógica entre mundos possíveis, que são vários [multiverso]; e mundo atual, que é universal.  Todo perigo abre o mundo para diferentes narrativas possíveis. 

Este é o desafio do compliance: se, num risco, há diferentes narrativas possíveis para a mesma imputação que seja estigmatizante, como estabilizar a reputação da organização em sua trajetória imaginária?    Compliance é antecipar-se à sanção já antecipada.  Ao executar rotinas protocolares, documenta-se sistematicamente uma narrativa cujo enredo seja o curso imaginário dos perigos enfrentados e superações logradas.  Este curso é concebido na política instituída pela alta administração e manifesto em discurso e objetivos institucionais.  E este curso resgata a atualidade para a imputação.  É desse modo (linguístico e historiográfico) que o compliance protege a reputação da organização.  Narrativa documentada é um acervo de evidências historiográficas que se prestam para testar hipóteses de conduta moral ou legalmente conforme.

sábado, 12 de setembro de 2020

Pensando & Conhecendo XI

 

Guilherme de Ockham foi um estudioso da lógica que viveu  no Sec. XIV e morreu com a peste negra.  Um dos mais eficientes testes de lógica foi criado por ele e, por isso, é conhecido como navalha de Ockham.  Sua obra é precursora do empirismo moderno, mas ele também foi influente na política pelo resgate que fez da distinção fundamental entre potestade e autoridade; distinção esta baseada no  Duo Sunt ("Há Dois") -   uma carta datada do sec. V que versava sobre a relação e as respectivas competências na coexistência complementar, pacífica e colaborativa entre um Papa e um Imperador.  Para Ockham, por princípio moral, maior será a autoridade quanto menor for a necessidade de enforcement para afirmá-la. 

Uma aplicação do aprendido com Ockham? A função de compliance é a de catalisação.  A catálise é uma aceleração de mudança material pela presença de um agente identificável nessa modificação.  Ela se coloca ao lado das demais funções e em favor do propósito comum da organização.  Em grande medida, o sucesso sustentável da equipe de compliance não é dado pelo poder que cumula da governança, mas pela autoridade que adquire por entre a média gerência e stakeholders.  A autoridade aqui se efetiva como capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Pensando & Conhecendo X

Dez frases de Blaise Pascal pelo seu aniversário de nascimento

Sabemos que a probabilística foi esboçada a propósito do jogo de dados numa troca de cartas entre Blaise Pascal, um matemático e Pierre de Fermat, um advogado, lá pelo meio do sec.  XVII.    Olhando mais de perto o interesse de Pascal pela incerteza, vamos notar que chegava ao nível da obsessão.  Ou do acabrunhamento, se preferirem, para ser mais fiel ao que ele próprio chamou de effroi.  Ele soube colocar em xeque a mais famosa proposição apodítica da razão.  Pascal notou que, fora da geometria (foi aí que enganchou Descartes), uma demonstração discursiva de qualquer termo (na medida em que é, ela própria, composta por outros termos) também necessita de outras definições e demonstrações pressupostas para defini-lo e demonstrá-lo totalmente. Há uma regressão ao infinito imbricada nas próprias proposições, o que impossibilita um sobrevoo da razão por sobre um conceito evidenciado de infinito, eis que isso levaria a um acúmulo de complexidade da justificação da crença até o limite da sua totalização, que aí escapa do conhecimento: já se mostra inacessível por si mesmo.

Essa questão levou necessariamente (afinal, estamos lidando com pessoas que viviam no sec. XVII) a uma controvérsia acerca da relação entre razão e fé com todas as perigosíssimas implicações morais e de integridade física que tais especulações poderiam levar.  Saiu-se da saia justa com uma solução tão genial quanto simples.  A solução é conhecida como a aposta de Pascal.  Ele formulou 3 proposições  logicamente possíveis:  [1] creio que Deus exista;   [2] não creio que Ele exista; [3] não me decido que exista ou não exista.  Aparentemente, a regressão pascalina ao infinito levaria à adoção da proposição 3, mas Pascal a refuta.  Ele examina as consequências possíveis.  [1] Se Deus existe e eu creio Nele, o ganho é significativo; [2] Se Ele existe e não creio, a perda é significativa; [3] se Ele não existe e eu creio, a perda é insignificante ;  [4] se Ele não existe e tampouco creio, o ganho também é insignificante.   Há na aposta de Pascal uma profunda repercussão ética para a gestão de riscos no que se refere à responsabilidade objetiva numa tomada de decisão e racional para o enforcement do Direito Penal.

O que um padre do deserto teria a dizer sobre compliance? (1)

 


http://www.cpjm.uerj.br/em-foco-opiniao-guilherme-kruger-4/

“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno ocorrido durante a dissolução da civilização romana cristianizada e aluvião das tribos pagãs.  Há algum paralelo entre o que vivemos hoje e o que aconteceu há mais de um milênio e meio atrás.  Para os cidadãos de então, como nós, havia sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural que predominavam sobre as de estabilidade, de continuidade e de coesão sociais.

Esses “padres do deserto” deram expressividade a essas sensações convulsivas como nenhum outro modo de pensar foi capaz até hoje.   Esta expressividade nos foi legada através dos apotegmas, que são pequenas estórias nas quais uma frase atribuída a um padre do deserto lhe dá sentido.  Historicamente, esses “padres do deserto”, pelo exemplo de vida e ensinamento, criaram o modelo das regras monásticas, tão importantes que foram para a preservação da memória civilizatória ao longo dos séculos de diluição proporcionada pelas chamadas “invasões bárbaras” às então correntes relações sociais citadinas; choques culturais em tempos de intensos fluxos migratórios num mundo conhecido como tal.  Aliás, nenhuma imagem talvez capte tão bem estabilidade do que a de um mosteiro milenar encarapitado no alto de um penhasco.

A linguagem usual sobre ética nos treinamentos em compliance parece ser tributária de uma ideia de “salto para cima”.  Que haja um estado ético culminante a ser aspirado pela organização social com o propósito de preservação de sua boa reputação.  Não faltam apotegmas que coloquem em xeque a sinceridade e a autenticidade de propósitos moralizantes apresentados como metas voltadas à própria reputação.   Os “padres do deserto”, quando falam de estabilidade, não dizem que ela esteja numa aspiração bem intencionada de algo proposto para além. Mas, em autossuportar, num sentido muito mais psicanalítico (cuidado de si) do que de desempenho performático:  “Filho, se queres ter proveito, permanece em teu próprio claustro, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual.  Pois, ao sair por aí não terias o mesmo progresso profícuo que no silêncio presente de seu lar.[1]

Esta estabilidade no permanecer silenciosamente imóvel, que parece tão díspar do falatório preconizado pelos treinamentos de compliance a guisa de comunicação (ou pior, de transparência), está diretamente associada à anacorese.  Esta palavra hoje é polissêmica, utilizada desde a biologia até a teologia.  Mas, todos os empregos guardam em comum a noção de tornar um corpo resistente às externalidades.  Daí que se ligue “padres do deserto” ao estereótipo de anacoretas: santos velhotes e magrelas; de barba hirsuta e cabeleira selvagem.  O que remete imediatamente às práticas de ascese.  Que são rotinas austeras no cuidado de si.  Aqui e agora a cada vez que seja… aqui e agora.

Os anacoretas de antanho então nada teriam a dizer sobre compliance, além do abanar das suas cabeças, descrentes nas boas intenções apregoadas por empresas zelosas da própria reputação?  Sim.  Têm o que dizer.  Em especial, aqui, quero apresentar algo muito prático, próprio da ascese e que tem afinidade com o compliance:  Hypomnêmata.  Parece grego.  E é.  Mas, para quem vive enfiando palavras em inglês no vernáculo pra falar de… compliance, a expressão pode ser até estranha num primeiro momento, mas será um indício de hipocrisia, se recusada desde já por indigesta.

Hypomnêmata nada mais é do que registro de rememoração.  Mas, não num sentido de narrativas autobiográficas significativas do tipo “meu querido diário…”  O termo remete à contabilidade antes mesmo que esta existisse; mais se parece a anotação de caderneta, ou seja, escrita  “crua” de fatos cotidianos, mas que, ao serem relidos em conjunto e em voz alta, soam de alguma maneira.  Este “soar” é a questão crucial que associa a prática ascética no uso da hypomnêmata desde a fundação dos mais antigos mosteiros no mundo ocidental às rotinas de conformidade que se esperam das empresas para que elas presenteiem as comunidades que impactam com sensações de estabilidade em tempos de insegurança retroalimentada pelas altas performances apregoadas como passos decisivos rumo à consumação de projetos pretensiosos, mas que se nos requisitam empatia por tomarem o nome de “sonhos”[2].

[1] Apotegma 878.  Apophthegmata Patrum Aegyptiorum. Em The Sayings of the Desert Fathers.  Trad.  Benedicta Ward.  Kalamazoo : Cistercian Publications, 1975.  p. 227.

[2] 

     A stultitia [em Sêneca, veja cartas a Lucilius  t. II, livro V, carta 52. §§ 1-2. ps. 41-42.] se define pela agitação da mente, pela instabilidade da atenção, pela mudança de opiniões e vontades, e consequentemente pela fragilidade diante de todos os acontecimentos que podem se produzir; caracteriza-se também pelo fato de dirigir a mente para o futuro, tornando-a ávida de novidades e impedindo-a de dar a si mesmo um ponto fixo na posse de uma verdade adquirida.  A escrita dos hupomnêmata se opõe a essa dispersão fixando os elementos adquiridos e constituindo de qualquer forma com eles “o passado”, em direção ao qual é sempre possível retornar e se afastar. Essa prática deve ser encadeada a um tema muito comum na época; de qualquer maneira, ele é comum à moral dos estoicos e à dos epicuristas: a recusa de uma atitude de pensamento voltada para o futuro (que, devido à sua incerteza, suscita a inquietude e a agitação da alma) e o valor positivo atribuído à posse de um passado, do qual se pode gozar soberanamente e sem perturbação. A contribuição dos hupomnêmata é um dos meios pelos quais a alma é afastada da preocupação com o futuro, para desviá-Ia na direção da reflexão sobre o passado.

FOUCAULT, Michel.  A Escrita de Si. Em Ditos e escritos V. Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). trad.: Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. v. 5. 144-162

domingo, 16 de agosto de 2020

Pensando & Conhecendo IX

 

Nos crimes de perigo abstrato em Direito Penal Econômico, é preciso ter muito cuidado com o manejo dos argumentos de autoridade. Sendo o Direito uma ciência dogmática, os argumentos de autoridade não trazem os mesmos perigos de falácia que podem carregar para as ciências empíricas, como é a Economia. Mas, muito mais perigo haverá em carregar argumentos de autoridade em Economia para o Direito. A primeira noção a ser considerada é a complexidade. Crimes econômicos podem assumir alta complexidade. E quanto mais complexo seja o conhecimento, mais um especialista estará baseado em outros num alongamento na cadeia de argumentos de autoridade. Não há exatamente um problema aqui. Afinal, conhecimento não combina com iconoclastia. Uma fonte substancial de conhecimento de alguém é outrem.


Por outro lado, em ciência empírica, é preciso admitir que todo argumento de autoridade é um acesso indireto a provas e seu manejo estabelece uma cadeia probatória. Em se tratando de economia e finanças, há que se ter prudência no manejo desse recurso no processo penal. Pois ele se dá fora do ambiente acadêmico e, portanto, por lócus, já descontextualizará uma proposição. No ambiente acadêmico haverá mais pessoas (pesquisadores) com o acesso direto às provas e mais gente em condições de perceber eventuais problemas metodológicos a serem considerados na delimitação adequada das conclusões a que se chegou um especialista. Isso é particularmente escorregadio em processo penal, porque um argumento de autoridade em economia e finanças estará sendo manejado por quem é autoridade em Direito. Autoridade é epistemologicamente específica, mas não é transferível por sua citação. A prudência cognitiva se manifestará em responder a si honestamente duas perguntas: “o que sei do que ela sabe?” e “sei como ela soube o que sabe?”.


As obras de autoria de Celito Medeiros reproduzidas na série Pensando & Conhecendo tiveram reprodução previamente autorizada exclusivamente para atividades do CPJM para cujas redes sociais a série é originalmente publicada.

Privilégio e Justiça na Assunção de Maria ao céu

O cão que fuma...: Assunção de Nossa SenhoraOs dogmas da Imaculada Conceição e da glorificação antecipada têm como raiz comum o Verbo Divino, quando a saudou: "Ave Maria, gratia plena!" A plenitude da graça foi um privilégio dado a Maria: a incorruptibilidade da sua carne. É um privilégio que nenhum de nós tivemos nem de perto semelhante. Isso acaso é revoltante? Em hipótese alguma. Assim é todo privilégio de nascença: um dom divino. Agora, o privilégio de Maria só completa seu sentido na sua unidade com a carne de Deus que foi silenciada em sua morte mergulhada na infâmia numa província periférica de um Império aparentemente invencível. O privilégio de Maria não alcança sentido sublime senão na sua dor de mãe que vê seu filho injustiçado num clamoroso erro de julgamento. Ser privilegiado não faz ninguém devedor de nada, pois é um dom. Mas, ele perde sentido salvífico, se for usado para alguém se eximir do sofrimento que é sentido na proximidade; se for pretexto para recusa em dar suporte com o próprio corpo às dores do mundo.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Funcionalidade e prudência para o Direito Penal Econômico por uma estória contada por Goethe

 

Er nennt´s Vernunft und braucht-s allein,

Nur tierischer als jeder Tier zu sein[1]

Mefistofeles, de Goethe

 

 

Em Ladrões de livros, Anders Rydell dá um retrato dramático da ambiguidade humana na Turíngia.  Berço do Estado democrático de bem estar social, foi também, logo depois, onde o nacional-socialismo logrou seu primeiro ensaio de governo:

[Uma] ideia romântica de devoção à beleza, de adoração da natureza, e de poesia se tornou um aspecto importante da autopercepção alemã. No entanto, ao mesmo tempo parecia haver uma nódoa negra nessa ideia. Como era possível que, dentro de poucas gerações, os herdeiros dessa ideia estivessem enforcando, torturando e assassinando pessoas exatamente nas mesmas florestas em que Goethe sentava para escrever poemas? Essa imagem, por um lado radiante e por outro cheio de trevas, já foi chamada de “dicotomia Weimar-Buchenwald” Esses dois aspectos formam um microcosmo do dilema alemão, a face de Jano da Alemanha. [2]

 

Algumas décadas antes do advento da Alemanha moderna, Goethe deu feição a uma representação icônica dos alemães de seu tempo: Fausto.  A personagem é concebida a partir da memória de um vilão, Johann Georg Faust, cuja biografia restava envolta em lenda desde o crepúsculo da época medieval.  Na lenda, se manifesta uma audácia de saber que advém do abandono de uma atitude contemplativa de Deus pela autonomia em contratar com o Diabo.    Este personagem, antes de chegar à obra de Goethe, se insinuou no imaginário moderno, quando em 1587 houve a impressão de Johann Spies: Historia von Dr. Johann Fausten, também conhecido como Faustbuch; primeiro registro substancial da lenda e referência para a primeira obra dramatúrgica protagonizada pelo personagem, The Tragical History of Doctor Faustus, de Christopher Marlowe, publicada no início do sec. XVII. 

 

A reviravolta dada por Goethe ao desfecho trágico das narrativas anteriores na segunda peça que escreveu para o protagonista será marcante pela prevalência da autonomia desejante numa destinação criativa sobre o destino sempre dado desde a criação heteronômica, a causa sui.  No Fausto finalmente refigurado por Goethe em 1832, o herói completa em sua personalidade e peripécia voltadas para o desfecho inventivo uma relação paradigmática entre vontade e inteligência humanas que se vinha se tornando típica do ideário moderno.  Porém, permanece no Fausto de Goethe a terrível ferocidade suprema do desejo humano por si mesmo, o que ele coloca na boca do demônio tal como transcrito na epígrafe deste texto.

 

Inventividade e desejo; vontade e sagacidade.  As vicissitudes nas múltiplas possibilidades do enredamento narrativo com o dispositivo desses pares duplicados como locanda do enredo (seu enquadramento sem qualquer fixação espaço-temporal de cena)  já eram notáveis nos antigos mitos gregos. Em particular, dois personagens míticos carregam este enquadramento nas suas narrativas: Prometeu e Sísifo.  É verdade que os gregos clássicos desconheciam a ideia de salvação.  Daí que as vicissitudes restem insuperáveis, o que é compatível com a estrutura necessariamente circular do tempo em todo mito.  Mas, a acuidade dos gregos nesse enquadramento das vicissitudes será determinante para a origem da democracia entre eles.

 

Essa determinação é perceptível só por uma visada transversal da cultura ateniense na época em que na cidade foi instituída a democracia.  Porque será necessário considerar que a origem da democracia seja indissociável de outra realização clássica dos gregos:  a dramaturgia trágica. A ágora grega designa o lugar das transações de mercado e de deliberação democrática.   E também de encenação da dramaturgia trágica.  Os gregos desconheciam a ideia de humanidade.  Daí que seja tão importante o deslizamento da narrativa mítica para a narrativa dramatúrgica, pois foi com as tragédias que os gregos encontraram expressividade para colocar os homens como preocupação em pensamento, o que dá conta da característica primária da democracia: os homens decidem entre si e estão ciosos disso.  Sintomático que na Oresteia de Ésquilo, o voto de Minerva tenha sido dirigido às Fúrias no contexto de uma assembleia deliberativa de homens que estava presa a um impasse.  E Sófocles irá conformar a preocupação de Ésquilo numa investigação nomológica, o que é patente no diálogo entre Antígona e Creonte no fim das vicissitudes dramatúrgicas enfrentadas pelos descendentes de Lábdaco e por essa linhagem ligados à fundação mítica da cidade de Tebas.  É sugestivo notar que a investigação nomológica já insinue também uma estrutura linear de tempo na trajetória dos descendentes; linha esta que vai escapando de um mito genético.

 

A investigação nomológica de Sófocles em Antígona e Creonte indicia a sua preocupação com a normatividade na democracia e se volta para a importância da dramaturgia trágica na contenção da ferocidade do desejo humano entre os gregos reunidos em assembleia.  A suspeita de que dramaturgia trágica, rígida em sua formulação perdia com a repetição seu efeito catártico e que a democracia fosse afinal incapaz de lidar com os desejos tomou uma expressão contundente no suicídio de Sócrates narrado por Platão e foi expresso exaustivamente no diálogo com Protágoras: se a ferocidade for polida, os desejos humanos tomam a forma de argumentos tão engenhosos como ardilosos.  Essa questão foi finalmente posta a nu por Nietzsche em sua Genealogia da Moral, na qual a vontade de poder vai se travestindo na vontade de verdade, cuja relação entre elas é encoberta pelo elogio à audácia de saber.

 

Correlacionando peripécias dramatúrgicas paradigmáticas da cultura ocidental à vivência do Direito em Ettersberg, pode-se suspeitar que nenhuma sofisticada atualização teórica das formulações teleológicas para o Estado Democrático de Direito será suficiente para prevenir uma perversão no manejo de ações persecutórias.  A eficiência delas é necessária, mas é prudente reconhecer que sempre será preciso mais do que uma teoria sobre a sua funcionalidade para justificá-las.



[1] Dá-lhe o nome de razão e a usa afinal/apenas para ser mais feroz que toda fera.

[2] Tradução de Rogério Calindo (São Paulo : Planeta do Brasil, 2018) , p. 61.

sábado, 1 de agosto de 2020

Pensando & Conhecendo VIII

As relações entre perigo e risco são limites entre mundo atual e mundos possíveis para o Direito Penal Econômico.  A existência desses limites é aquilo que impede a unificação hermenêutica numa totalização metafísica do seu significado (ressalvada a presença de uma pessoa divina como necessidade).  Nas estritas condições de laicidade, as relações entre perigo e risco sempre serão controversas para estigmatizar alguém.   E isso é um problema ético incontornável para quem esteja destinado a operar com o DPE.

Tudo é possível.  Esta frase certamente faz algum sentido.  Mas, se tudo for possível, nada é no horizonte de indistinção de todo ser num tudo.  Entretanto, algo ainda permanece para a significação:  a ordem sintagmática da frase.  Essa ordem é lógica.  Tudo ser possível, isso é uma questão de lógica gramatical no limite do fenômeno, que é o aparecimento de algo ser diferente do horizonte de indistinção.

Uma roda pode ter infinitos raios.  Esta frase também faz sentido.  Mas, pela infinitude possível, “o” raio nunca toca “o” arco.  E é exatamente a partir desse limite lógico que ocorre um fenômeno: uma roda gira.

Um limite é ambíguo para o conhecimento.  Esta ambiguidade é “o” limite.  Irmã desta ambiguidade é o sutil rastro de incerteza em uma certeza.  Afinal, qual é “a” certeza que todo alguém possa ter do quê?  Inexistir uma resposta que totalize a realidade é angustiante para uma tomada de decisão crucial.  A angústia aí constitui o fundamento ético primordial para o Direito Penal Econômico; fundamento este que polariza sua epistemologia criminológica.      

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Cooperativas e a banalidade do mal







Se você for um cooperativista, taí uma indicação de leitura. Trata-se da experiência da Gleichschaltung (sincronização) das cooperativas alemãs durante o III Reich. Se lembrarmos das leis raciais de Nuremberg, podemos imaginar desde já quais as implicações das cooperativas gleichen sich an (se alinharem).
Trata-se menos de denunciar; mais de compreender.
Sendo você um cooperativista, poderá se perguntar abismado como as cooperativas alemãs à época se permitiram abandonar tantos cooperados seus à própria sorte. Não será surpresa essa resposta à pergunta: Por quê?! - "Acreditávamos". Como acreditar é um verbo transitivo indireto, a pergunta seguinte será: Em quê?! E a resposta quase invariável será: "ou nós, ou eles".
A preciosa lição do cooperativismo alemão na experiência da Gleichschaltung é que não bastam termos bons propósitos e compartilharmos valores de bem comum. Se não desconfiarmos de qualquer crença que seja sintetizada na chave de "ou nós, ou eles" .(tem uma variante dela: se você não for parte da solução, já é parte do problema), estaremos muito provavelmente nos rendendo ao mal e promovendo o pior de nós mesmos.

Eu havia feito uma investigação disso há alguns anos atrás e escrevi um artigo chamado O fim das Cooperativas na madrugada dos mortos. Na época, sendo eu brasileiro e por uma questão de deferência, não quis abordar o tema de maneira explícita sob o viés histórico dos fatos ocorridos. Então tratei da hermenêutica e apresentei no Congresso Continental de Direito Cooperativo que aconteceu em 2013. Os 3 parágrafos iniciais do artigo já dão um panorama de significação desses fatos históricos num contexto atual. 


Ao fim do I Encontro Brasileiro de Pesquisadores do Cooperativismo, realizado em 09 de setembro de 2010, e na conferência magna do II EBPC, ocorrida em 30 de agosto de 2012,Roberto Rodrigues, Ministro da Agricultura entre 2003 e 2006, presidente da centenária Aliança Cooperativa Internacional entre 1997 e 2001 e Presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), nos atentou para a singular relevância da ideia de felicidade na compreensão da cooperativa como fenômeno social.
Dou aqui uma resposta a essa provocação. Mas, não uma resposta óbvia. Pois a felicidade em seu sentido teleológico como algo que se busca é uma ideia já bem banalizada. Banalizada, essa busca se revela como insaciedade de vida. E vida, como poder-ser feliz. E poder-ser feliz como recusa ao sofrimento e à morte. A insaciedade já aí se mostra como um mal-estar contemporâneo, um descontentamento que desestabiliza a reciprocidade com que alguém coopera com outro alguém – essa proximidade que é um pressuposto ontológico da própria cooperação. É aqui que há a oportunidade de pensar o paradoxo da felicidade no sentido da eudaimonia – o gênio (uma transcendência) em nossas motivações. Desmedidas a impaciência e a frustração, ele nos é hostil e há o encontro do sentido trágico da existência.
A cooperação aí já é mais uma solução, pois a alteridade, outro pressuposto ontológico da cooperação, tem de funcionar nessa busca. Então, na reflexão racional, a felicidade pode se reduzir a uma função de interesses individuais como grandeza em termos de riscos morais e custos de transação para a cooperativa. É a submissão da cooperação à técnica, pois a cooperativa precisa operar para que os seus sócios causem eficientemente suas felicidades. Entretanto, se a cooperação já não atende expectativas, a sua ruptura e abandono são aceitáveis, pois outra busca e, portanto, novas alternativas se impõem na medida em que a felicidade se diz direito.