https://www.youtube.com/watch?v=eC2buDpHEyk
Qual é a diferença entre um acordo de cooperação horizontal análogo a um ato de concentração e, portanto, presumidamente lícito; e um cartel, uma conduta ilícita por objeto que, no Brasil, tipificado como crime? Nem sempre a resposta será fácil, pois comporta uma série de nuances que precisam ser analisados empiricamente com o uso de métodos próprios do estatuto científico da Economia.
Talvez se possa dizer pitoresco no Direito Concorrencial como a sua teorização parte da regularidade e generalidade, enquanto se constate que a análise antitruste recorrentemente chega a soluções ad hoc. Ou seja, os juízos da autoridade administrativa sancionadora se exaurem com variações significativas caso a caso. Mesmo assim, é possível emprestar coerência entre a regularidade do modelo teórico e a prática casuística da autoridade antitruste. Bastante observar que seus pronunciamentos se voltam a situações que, justamente por serem excepcionais, marginais, atraem a sua alçada. Trocando em miúdo, trata-se de situações excepcionais com as quais a autoridade antitruste reafirma a validade dos pressupostos econômicos do Direito Concorrencial.
Mais fácil é a interpretação que as cúpulas das suas Igrejas sejam símbolo dos céus em paraíso. Conspiram para essa percepção os afrescos com que nossos olhos se maravilham. Não excludente a leitura (ao contrário!), prefiro sentir as cúpulas como ventres férteis e acolhedores de seus filhos. É a Igreja feminina, doce e gentil. Esposa de Cristo em veneração à mãe de Deus.
Cidade laica. Sem explicação de ordem política, só de lhe contemplar das suas colinas, se pode muito bem compreender Roma sendo a pacifica capital de um Estado Democrático de Direito. E ao mesmo tempo o sítio de um Estado teocrático absolutista - o Vaticano.
Gloria in excelsis Deo! Unimos nossos corações ao de uma mãe gestante no Advento. Ele veio encarnar entre nós criança. Pediu-nos hospitalidade e ternura. Tão pouco nos custa, quando tudo prometeu.
Crimes de perigo, bens jurídicos coletivos e criminal compliance são expressões que surgem face os perigos imaginários de um mundo vertiginoso. A partir da sua potência autônoma proclamada e de seu desejo por ela, o ser humano abismou-se ao criar padrões materiais para seu bem estar tanto quanto em gerar sofrimento e medo instantâneos e em larga escala. O contexto em que se dá este material apresenta-se num horizonte temporal que retroage aos anos 70, quando a volatilidade e a incerteza foram percebidas como dramáticas em séries estatísticas que vinham regredindo à média sem que ela se movimentasse sensivelmente para os agentes econômicos desde o fim da II Guerra Mundial, particularmente para agentes norte-americanos e europeus: preços de produtos primários, taxas de inflação, câmbio, juros e títulos públicos. Algo inteiramente novo também acontecia: uma circulação de informações com impressões impensáveis anteriormente através das redes de comunicação com transmissão de imagens via satélite. A derrota no Vietnã, a explosão dos preços de petróleo, o escândalo de Watergate, os reféns de Teerã produziram impressões da noite para o dia em milhões de pessoas que não estavam acostumadas a esse bombardeio televisivo nem analistas profissionais estavam preparados para responder sobre esses fenômenos de massa.
Em 2013, Richard Thaler foi
laureado com o prêmio Nobel por sua contribuição ao estudo da economia
comportamental, passando a ombrear com Daniel Kahneman, premiado em 2002 por
sua abordagem pioneira da Economia com foco no comportamento dos agentes
econômicos . Este campo de estudos é
transdisciplinar à psicologia e, entre outras coisas, estuda como a incerteza
influencia decisões dos agentes econômicos. O reconhecimento da
racionalidade limitada foi uma contribuição da economia comportamental para os
custos de transação. Uma das implicações do conceito é a inversão de
tendência pressuposta desde a economia clássica. Adam Smith e seus
colegas liberais pressupunham que a variância do mercado tendia necessariamente
ao equilíbrio. Isso, porque idealizaram o agente econômico como racional
(o que é próprio do imaginário dos Secs. XVIII e XIX), e não dotado de psiquê
com padrões inconscientes (sec. XX). Ou seja, a volatilidade do mercado
não tende necessariamente ao retorno do equilíbrio, mas também à maior
volatilidade, conquanto permaneça da escola clássica o ideal de que seja não só
possível como necessário que a economia volte à normalidade. Que
matematicamente corresponde a uma curva em forma de sino (curva de Gauss). A confluência da psicologia e da
lógica na economia indica o desafio permanente dos economistas: encontrar “novos
normais”. Em termos de gestão de riscos, permanecemos num meio termo
contingente entre duas regressões paradoxais, ambas descritas por matemáticos
do sec. XVII: a de Blaise Pascal (a regressão ao infinito) e a de Jakob
Bernoulli (regressão à média).
A natureza
estabeleceu padrões que dão origem à recorrência dos acontecimentos, mas nem
sempre. Doenças novas assolam a raça
humana; mesmo que se faça muitos experimentos com cadáveres, isso não impõe um
limite à natureza dos eventos que impediria a sua variação futura.
.Este “nem sempre” e sua ilustração patológica são significativos para compreender a função suplementar do Direito Penal Econômico ao Direito Administrativo Sancionador em termos corretivos e preventivos. Diante das evidências empíricas reunidas pelos estudos de economia comportamental, os agentes econômicos reconheceram em si mesmos uma fonte de incertezas que demandam medidas públicas protetivas ao positivarem segurança como bem jurídico da ordem econômica. No limite, admitem ser sua ação potencialmente criminogênica por disfunção extrema neste âmbito constitutivo da sociedade de livre mercado.
A gestão do risco nasceu de um problema hermenêutico. Sendo Direito e Teologia disciplinas essencialmente dogmáticas, é hermenêutica a base epistemológica para a abordagem de ambos. O diálogo entre ambas as disciplinas se mostrou fértil. Mas, as guerras religiosas e as revoluções sociais ensejaram o imaginário atual de que a Teologia e o Direito sejam campos totalmente separados pelo Estado laico. Em que pese a história do risco testemunhar a fertilidade intelectual do diálogo entre ambas.
A
morte, claro, é um tema recorrente nos apotegmas. Ela é recorrente também hoje, mas
sintomaticamente oblíqua através dos predicados saudável (perspectiva individual) e sustentável (perspectiva social).
Digo oblíqua, porque hoje abordamos normalmente a morte como algo a ser
prevenido e corrigido. Estamos “em luta contra” a morte; médicos “perdem” seus
pacientes assim. Então, como é evidente para
unidades complexas de carbono e hidrogenação catalítica, formamos um exército
sitiado pela morte. E que já sabe: todos
nós perderemos a vida nesta batalha, mas mesmo assim devemos resistir. Pelo quê?!
A felicidade ainda a ser buscada, mas que, neste estado de sítio, nos
escapa.
Desprovidos
de pensamento crítico, não há enfrentamento do tema: os apotegmas dissociam da
morbidez sua alusão direta à morte. O
que isso pode dizer sobre o compliance? A morbidez como sintoma estilístico do
enfrentamento temático contemporâneo tende a retratar a morte como um algo
voraz, disfuncional e implacável. A
morte assim retratada é liberdade despersonificada. Trata-se de uma projeção da performance vazia
de significado. Como resposta, a vida humana
autonômica, típica concepção humanista, corresponde a uma liberdade
performática contida pela normatividade.
As
sociedades democráticas de mercado se lançaram à aceleração das inovações
tecnológicas. Numa abordagem patológica,
um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é
rebento. E com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a
resiliência: a normatividade
inflacionária de marcos regulatórios da qual o compliance é colateral. Quanto mais o sujeito de direito for livre de
qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa
liberdade. Eis o paradoxo da liberdade
coercitiva em expansão.
Não
se trata de negar o caráter incontornável das práticas de compliance na ordem econômica.
Mas, tampouco é incontornável a necessidade de uma compreensão
patológica de qualquer funcionalidade.
Por exemplo, a patologia numa pandemia só se completa com a análise
funcional dos processos bioquímicos do seu vírus patogênico.
Eu compreendo a lógica entre diversificação proliferante e escalada do efêmero nos espaços democráticos. É uma questão de concorrência por espaços repercussivos de fala para uma pauta de transição cultural. Abre-se a seguinte perspectiva: ou o Papa incorpora a expressão sororidade junto à fraternidade, ou o seu magistério é desviado da sua finalidade contemplativa, escolástica por ter o seu texto derivado para mais um falatório interminável próprio dos espaços democráticos contemporâneos.
A pergunta é esta: À Igreja pode ser aplicada a mesma estratégia que é bem sucedida, quando se trata da indústria de entretenimento? Não por alguém que, de boa fé, se diga fiel da Santa Igreja, ainda que, por convicção políitca, abraçe a bandeira da sororidade.
A questão centra-se na expressão Apostólica que define a Igreja. Entre outras coisas, isso significa que predomina nela o caráter episcopal em relação ao congregacional. Trocando em miúdo, a Igreja nunca foi, não é e nem será um espaço de saturação democrática. Se isso for insuportável para alguém, ainda que seja cristã, há derivações predominantemente congregacionais no cristianismo. Paciência.
Autoridade para o compliance officer é a capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral. Sendo o compliance essencialmente um exercício sistemático de normatividade (autorregulação regulada), há (in)fusão (mimese) de instrução (injuntiva e prescritiva) numa narrativa (a trajetória memorável de uma atividade humana num enredamento dos acontecimentos para ser-o-que-tiver-que-ser ao fim e ao cabo). O sistema de gestão de compliance produz uma narrativa sistematicamente documentada. Isso porque existe uma diferença lógica entre mundos possíveis, que são vários [multiverso]; e mundo atual, que é universal. Todo perigo abre o mundo para diferentes narrativas possíveis.
Guilherme de Ockham foi
um estudioso da lógica que viveu no Sec.
XIV e morreu com a peste negra. Um dos
mais eficientes testes de lógica foi criado por ele e, por isso, é conhecido
como navalha de Ockham. Sua obra é
precursora do empirismo moderno, mas ele também foi influente na política pelo
resgate que fez da distinção fundamental entre potestade e autoridade;
distinção esta baseada no Duo Sunt ("Há Dois") - uma carta datada do sec. V que
versava sobre a relação e as respectivas competências na coexistência
complementar, pacífica e colaborativa entre um Papa e um Imperador. Para Ockham, por princípio moral, maior será
a autoridade quanto menor for a necessidade de enforcement para afirmá-la.
Uma aplicação do aprendido com Ockham? A função de compliance é a de catalisação. A catálise é uma aceleração de mudança material pela presença de um agente identificável nessa modificação. Ela se coloca ao lado das demais funções e em favor do propósito comum da organização. Em grande medida, o sucesso sustentável da equipe de compliance não é dado pelo poder que cumula da governança, mas pela autoridade que adquire por entre a média gerência e stakeholders. A autoridade aqui se efetiva como capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral.
Sabemos que a probabilística foi esboçada a propósito do jogo de dados numa troca de cartas entre Blaise Pascal, um matemático e Pierre de Fermat, um advogado, lá pelo meio do sec. XVII. Olhando mais de perto o interesse de Pascal pela incerteza, vamos notar que chegava ao nível da obsessão. Ou do acabrunhamento, se preferirem, para ser mais fiel ao que ele próprio chamou de effroi. Ele soube colocar em xeque a mais famosa proposição apodítica da razão. Pascal notou que, fora da geometria (foi aí que enganchou Descartes), uma demonstração discursiva de qualquer termo (na medida em que é, ela própria, composta por outros termos) também necessita de outras definições e demonstrações pressupostas para defini-lo e demonstrá-lo totalmente. Há uma regressão ao infinito imbricada nas próprias proposições, o que impossibilita um sobrevoo da razão por sobre um conceito evidenciado de infinito, eis que isso levaria a um acúmulo de complexidade da justificação da crença até o limite da sua totalização, que aí escapa do conhecimento: já se mostra inacessível por si mesmo.
Essa questão levou necessariamente (afinal, estamos lidando com pessoas que viviam no sec. XVII) a uma controvérsia acerca da relação entre razão e fé com todas as perigosíssimas implicações morais e de integridade física que tais especulações poderiam levar. Saiu-se da saia justa com uma solução tão genial quanto simples. A solução é conhecida como a aposta de Pascal. Ele formulou 3 proposições logicamente possíveis: [1] creio que Deus exista; [2] não creio que Ele exista; [3] não me decido que exista ou não exista. Aparentemente, a regressão pascalina ao infinito levaria à adoção da proposição 3, mas Pascal a refuta. Ele examina as consequências possíveis. [1] Se Deus existe e eu creio Nele, o ganho é significativo; [2] Se Ele existe e não creio, a perda é significativa; [3] se Ele não existe e eu creio, a perda é insignificante ; [4] se Ele não existe e tampouco creio, o ganho também é insignificante. Há na aposta de Pascal uma profunda repercussão ética para a gestão de riscos no que se refere à responsabilidade objetiva numa tomada de decisão e racional para o enforcement do Direito Penal.
http://www.cpjm.uerj.br/em-foco-opiniao-guilherme-kruger-4/
“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno ocorrido durante a dissolução da civilização romana cristianizada e aluvião das tribos pagãs. Há algum paralelo entre o que vivemos hoje e o que aconteceu há mais de um milênio e meio atrás. Para os cidadãos de então, como nós, havia sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural que predominavam sobre as de estabilidade, de continuidade e de coesão sociais.
Esses “padres do deserto” deram expressividade a essas sensações convulsivas como nenhum outro modo de pensar foi capaz até hoje. Esta expressividade nos foi legada através dos apotegmas, que são pequenas estórias nas quais uma frase atribuída a um padre do deserto lhe dá sentido. Historicamente, esses “padres do deserto”, pelo exemplo de vida e ensinamento, criaram o modelo das regras monásticas, tão importantes que foram para a preservação da memória civilizatória ao longo dos séculos de diluição proporcionada pelas chamadas “invasões bárbaras” às então correntes relações sociais citadinas; choques culturais em tempos de intensos fluxos migratórios num mundo conhecido como tal. Aliás, nenhuma imagem talvez capte tão bem estabilidade do que a de um mosteiro milenar encarapitado no alto de um penhasco.
A linguagem usual sobre ética nos treinamentos em compliance parece ser tributária de uma ideia de “salto para cima”. Que haja um estado ético culminante a ser aspirado pela organização social com o propósito de preservação de sua boa reputação. Não faltam apotegmas que coloquem em xeque a sinceridade e a autenticidade de propósitos moralizantes apresentados como metas voltadas à própria reputação. Os “padres do deserto”, quando falam de estabilidade, não dizem que ela esteja numa aspiração bem intencionada de algo proposto para além. Mas, em autossuportar, num sentido muito mais psicanalítico (cuidado de si) do que de desempenho performático: “Filho, se queres ter proveito, permanece em teu próprio claustro, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual. Pois, ao sair por aí não terias o mesmo progresso profícuo que no silêncio presente de seu lar.[1]”
Esta estabilidade no permanecer silenciosamente imóvel, que parece tão díspar do falatório preconizado pelos treinamentos de compliance a guisa de comunicação (ou pior, de transparência), está diretamente associada à anacorese. Esta palavra hoje é polissêmica, utilizada desde a biologia até a teologia. Mas, todos os empregos guardam em comum a noção de tornar um corpo resistente às externalidades. Daí que se ligue “padres do deserto” ao estereótipo de anacoretas: santos velhotes e magrelas; de barba hirsuta e cabeleira selvagem. O que remete imediatamente às práticas de ascese. Que são rotinas austeras no cuidado de si. Aqui e agora a cada vez que seja… aqui e agora.
Os anacoretas de antanho então nada teriam a dizer sobre compliance, além do abanar das suas cabeças, descrentes nas boas intenções apregoadas por empresas zelosas da própria reputação? Sim. Têm o que dizer. Em especial, aqui, quero apresentar algo muito prático, próprio da ascese e que tem afinidade com o compliance: Hypomnêmata. Parece grego. E é. Mas, para quem vive enfiando palavras em inglês no vernáculo pra falar de… compliance, a expressão pode ser até estranha num primeiro momento, mas será um indício de hipocrisia, se recusada desde já por indigesta.
Hypomnêmata nada mais é do que registro de rememoração. Mas, não num sentido de narrativas autobiográficas significativas do tipo “meu querido diário…” O termo remete à contabilidade antes mesmo que esta existisse; mais se parece a anotação de caderneta, ou seja, escrita “crua” de fatos cotidianos, mas que, ao serem relidos em conjunto e em voz alta, soam de alguma maneira. Este “soar” é a questão crucial que associa a prática ascética no uso da hypomnêmata desde a fundação dos mais antigos mosteiros no mundo ocidental às rotinas de conformidade que se esperam das empresas para que elas presenteiem as comunidades que impactam com sensações de estabilidade em tempos de insegurança retroalimentada pelas altas performances apregoadas como passos decisivos rumo à consumação de projetos pretensiosos, mas que se nos requisitam empatia por tomarem o nome de “sonhos”[2].
[1] Apotegma 878. Apophthegmata Patrum Aegyptiorum. Em The Sayings of the Desert Fathers. Trad. Benedicta Ward. Kalamazoo : Cistercian Publications, 1975. p. 227.
A stultitia [em Sêneca, veja cartas a Lucilius t. II, livro V, carta 52. §§ 1-2. ps. 41-42.] se define pela agitação da mente, pela instabilidade da atenção, pela mudança de opiniões e vontades, e consequentemente pela fragilidade diante de todos os acontecimentos que podem se produzir; caracteriza-se também pelo fato de dirigir a mente para o futuro, tornando-a ávida de novidades e impedindo-a de dar a si mesmo um ponto fixo na posse de uma verdade adquirida. A escrita dos hupomnêmata se opõe a essa dispersão fixando os elementos adquiridos e constituindo de qualquer forma com eles “o passado”, em direção ao qual é sempre possível retornar e se afastar. Essa prática deve ser encadeada a um tema muito comum na época; de qualquer maneira, ele é comum à moral dos estoicos e à dos epicuristas: a recusa de uma atitude de pensamento voltada para o futuro (que, devido à sua incerteza, suscita a inquietude e a agitação da alma) e o valor positivo atribuído à posse de um passado, do qual se pode gozar soberanamente e sem perturbação. A contribuição dos hupomnêmata é um dos meios pelos quais a alma é afastada da preocupação com o futuro, para desviá-Ia na direção da reflexão sobre o passado.
FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. Em Ditos e escritos V. Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). trad.: Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. v. 5. 144-162
Nos crimes de perigo abstrato em Direito Penal Econômico, é preciso ter muito cuidado com o manejo dos argumentos de autoridade. Sendo o Direito uma ciência dogmática, os argumentos de autoridade não trazem os mesmos perigos de falácia que podem carregar para as ciências empíricas, como é a Economia. Mas, muito mais perigo haverá em carregar argumentos de autoridade em Economia para o Direito. A primeira noção a ser considerada é a complexidade. Crimes econômicos podem assumir alta complexidade. E quanto mais complexo seja o conhecimento, mais um especialista estará baseado em outros num alongamento na cadeia de argumentos de autoridade. Não há exatamente um problema aqui. Afinal, conhecimento não combina com iconoclastia. Uma fonte substancial de conhecimento de alguém é outrem.
Os dogmas da Imaculada Conceição e da glorificação antecipada têm como raiz comum o Verbo Divino, quando a saudou: "Ave Maria, gratia plena!" A plenitude da graça foi um privilégio dado a Maria: a incorruptibilidade da sua carne. É um privilégio que nenhum de nós tivemos nem de perto semelhante. Isso acaso é revoltante? Em hipótese alguma. Assim é todo privilégio de nascença: um dom divino. Agora, o privilégio de Maria só completa seu sentido na sua unidade com a carne de Deus que foi silenciada em sua morte mergulhada na infâmia numa província periférica de um Império aparentemente invencível. O privilégio de Maria não alcança sentido sublime senão na sua dor de mãe que vê seu filho injustiçado num clamoroso erro de julgamento. Ser privilegiado não faz ninguém devedor de nada, pois é um dom. Mas, ele perde sentido salvífico, se for usado para alguém se eximir do sofrimento que é sentido na proximidade; se for pretexto para recusa em dar suporte com o próprio corpo às dores do mundo.
Er
nennt´s Vernunft und braucht-s allein,
Nur tierischer als jeder Tier zu sein[1]
Mefistofeles, de
Goethe
Em Ladrões de livros, Anders Rydell dá um retrato dramático da ambiguidade humana na Turíngia. Berço do Estado democrático de bem estar social, foi também, logo depois, onde o nacional-socialismo logrou seu primeiro ensaio de governo:
[Uma] ideia romântica de devoção à beleza, de adoração da natureza, e de poesia se tornou um aspecto importante da autopercepção alemã. No entanto, ao mesmo tempo parecia haver uma nódoa negra nessa ideia. Como era possível que, dentro de poucas gerações, os herdeiros dessa ideia estivessem enforcando, torturando e assassinando pessoas exatamente nas mesmas florestas em que Goethe sentava para escrever poemas? Essa imagem, por um lado radiante e por outro cheio de trevas, já foi chamada de “dicotomia Weimar-Buchenwald” Esses dois aspectos formam um microcosmo do dilema alemão, a face de Jano da Alemanha. [2]
Algumas décadas antes do advento da Alemanha moderna, Goethe deu feição a uma representação icônica dos alemães de seu tempo: Fausto. A personagem é concebida a partir da memória de um vilão, Johann Georg Faust, cuja biografia restava envolta em lenda desde o crepúsculo da época medieval. Na lenda, se manifesta uma audácia de saber que advém do abandono de uma atitude contemplativa de Deus pela autonomia em contratar com o Diabo. Este personagem, antes de chegar à obra de Goethe, se insinuou no imaginário moderno, quando em 1587 houve a impressão de Johann Spies: Historia von Dr. Johann Fausten, também conhecido como Faustbuch; primeiro registro substancial da lenda e referência para a primeira obra dramatúrgica protagonizada pelo personagem, The Tragical History of Doctor Faustus, de Christopher Marlowe, publicada no início do sec. XVII.
A reviravolta
dada por Goethe ao desfecho trágico das narrativas anteriores na segunda peça
que escreveu para o protagonista será marcante pela prevalência da autonomia
desejante numa destinação criativa sobre o destino sempre dado desde a criação
heteronômica, a causa sui. No Fausto finalmente refigurado por Goethe em
1832, o herói completa em sua personalidade e peripécia voltadas para o
desfecho inventivo uma relação paradigmática entre vontade e inteligência
humanas que se vinha se tornando típica do ideário moderno. Porém, permanece no Fausto de Goethe a
terrível ferocidade suprema do desejo humano por si mesmo, o que ele coloca na
boca do demônio tal como transcrito na epígrafe deste texto.
Inventividade e
desejo; vontade e sagacidade. As
vicissitudes nas múltiplas possibilidades do enredamento narrativo com o
dispositivo desses pares duplicados como locanda do enredo (seu enquadramento
sem qualquer fixação espaço-temporal de cena)
já eram notáveis nos antigos mitos gregos. Em particular, dois
personagens míticos carregam este enquadramento nas suas narrativas: Prometeu e
Sísifo. É verdade que os gregos
clássicos desconheciam a ideia de salvação.
Daí que as vicissitudes restem insuperáveis, o que é compatível com a
estrutura necessariamente circular do tempo em todo mito. Mas, a acuidade dos gregos nesse
enquadramento das vicissitudes será determinante para a origem da democracia
entre eles.
Essa
determinação é perceptível só por uma visada transversal da cultura ateniense
na época em que na cidade foi instituída a democracia. Porque será necessário considerar que a
origem da democracia seja indissociável de outra realização clássica dos
gregos: a dramaturgia trágica. A ágora
grega designa o lugar das transações de mercado e de deliberação
democrática. E também de encenação da
dramaturgia trágica. Os gregos
desconheciam a ideia de humanidade. Daí
que seja tão importante o deslizamento da narrativa mítica para a narrativa
dramatúrgica, pois foi com as tragédias que os gregos encontraram
expressividade para colocar os homens como preocupação em pensamento, o que dá
conta da característica primária da democracia: os homens decidem entre si e
estão ciosos disso. Sintomático que na
Oresteia de Ésquilo, o voto de Minerva tenha sido dirigido às Fúrias no
contexto de uma assembleia deliberativa de homens que estava presa a um
impasse. E Sófocles irá conformar a
preocupação de Ésquilo numa investigação nomológica, o que é patente no diálogo
entre Antígona e Creonte no fim das vicissitudes dramatúrgicas enfrentadas
pelos descendentes de Lábdaco e por essa linhagem ligados à fundação mítica da
cidade de Tebas. É sugestivo notar que a
investigação nomológica já insinue também uma estrutura linear de tempo na
trajetória dos descendentes; linha esta que vai escapando de um mito genético.
A investigação
nomológica de Sófocles em Antígona e Creonte indicia a sua preocupação com a
normatividade na democracia e se volta para a importância da dramaturgia
trágica na contenção da ferocidade do desejo humano entre os gregos reunidos em
assembleia. A suspeita de que
dramaturgia trágica, rígida em sua formulação perdia com a repetição seu efeito
catártico e que a democracia fosse afinal incapaz de lidar com os desejos tomou
uma expressão contundente no suicídio de Sócrates narrado por Platão e foi
expresso exaustivamente no diálogo com Protágoras: se a ferocidade for polida,
os desejos humanos tomam a forma de argumentos tão engenhosos como ardilosos. Essa questão foi finalmente posta a nu por
Nietzsche em sua Genealogia da Moral, na qual a vontade de poder vai se
travestindo na vontade de verdade, cuja relação entre elas é encoberta pelo
elogio à audácia de saber.
Correlacionando
peripécias dramatúrgicas paradigmáticas da cultura ocidental à vivência do
Direito em Ettersberg, pode-se suspeitar que nenhuma sofisticada atualização
teórica das formulações teleológicas para o Estado Democrático de Direito será
suficiente para prevenir uma perversão no manejo de ações persecutórias. A eficiência delas é necessária, mas é
prudente reconhecer que sempre será preciso mais do que uma teoria sobre a sua
funcionalidade para justificá-las.
As relações entre perigo e risco são limites entre mundo atual e mundos possíveis para o Direito Penal Econômico. A existência desses limites é aquilo que impede a unificação hermenêutica numa totalização metafísica do seu significado (ressalvada a presença de uma pessoa divina como necessidade). Nas estritas condições de laicidade, as relações entre perigo e risco sempre serão controversas para estigmatizar alguém. E isso é um problema ético incontornável para quem esteja destinado a operar com o DPE.
Tudo é possível. Esta frase certamente faz algum sentido. Mas, se tudo for possível, nada é no horizonte de indistinção de todo ser num tudo. Entretanto, algo ainda permanece para a significação: a ordem sintagmática da frase. Essa ordem é lógica. Tudo ser possível, isso é uma questão de lógica gramatical no limite do fenômeno, que é o aparecimento de algo ser diferente do horizonte de indistinção.
Uma roda pode ter infinitos raios. Esta frase também faz sentido. Mas, pela infinitude possível, “o” raio nunca toca “o” arco. E é exatamente a partir desse limite lógico que ocorre um fenômeno: uma roda gira.
Um limite é ambíguo para o conhecimento. Esta ambiguidade é “o” limite. Irmã desta ambiguidade é o sutil rastro de incerteza em uma certeza. Afinal, qual é “a” certeza que todo alguém possa ter do quê? Inexistir uma resposta que totalize a realidade é angustiante para uma tomada de decisão crucial. A angústia aí constitui o fundamento ético primordial para o Direito Penal Econômico; fundamento este que polariza sua epistemologia criminológica.
Ao fim do I Encontro Brasileiro de Pesquisadores do Cooperativismo, realizado em 09 de setembro de 2010, e na conferência magna do II EBPC, ocorrida em 30 de agosto de 2012,Roberto Rodrigues, Ministro da Agricultura entre 2003 e 2006, presidente da centenária Aliança Cooperativa Internacional entre 1997 e 2001 e Presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), nos atentou para a singular relevância da ideia de felicidade na compreensão da cooperativa como fenômeno social.
Dou aqui uma resposta a essa provocação. Mas, não uma resposta óbvia. Pois a felicidade em seu sentido teleológico como algo que se busca é uma ideia já bem banalizada. Banalizada, essa busca se revela como insaciedade de vida. E vida, como poder-ser feliz. E poder-ser feliz como recusa ao sofrimento e à morte. A insaciedade já aí se mostra como um mal-estar contemporâneo, um descontentamento que desestabiliza a reciprocidade com que alguém coopera com outro alguém – essa proximidade que é um pressuposto ontológico da própria cooperação. É aqui que há a oportunidade de pensar o paradoxo da felicidade no sentido da eudaimonia – o gênio (uma transcendência) em nossas motivações. Desmedidas a impaciência e a frustração, ele nos é hostil e há o encontro do sentido trágico da existência.
A cooperação aí já é mais uma solução, pois a alteridade, outro pressuposto ontológico da cooperação, tem de funcionar nessa busca. Então, na reflexão racional, a felicidade pode se reduzir a uma função de interesses individuais como grandeza em termos de riscos morais e custos de transação para a cooperativa. É a submissão da cooperação à técnica, pois a cooperativa precisa operar para que os seus sócios causem eficientemente suas felicidades. Entretanto, se a cooperação já não atende expectativas, a sua ruptura e abandono são aceitáveis, pois outra busca e, portanto, novas alternativas se impõem na medida em que a felicidade se diz direito.