Er
nennt´s Vernunft und braucht-s allein,
Nur tierischer als jeder Tier zu sein[1]
Mefistofeles, de
Goethe
Em Ladrões de livros, Anders Rydell dá um retrato dramático da ambiguidade humana na Turíngia. Berço do Estado democrático de bem estar social, foi também, logo depois, onde o nacional-socialismo logrou seu primeiro ensaio de governo:
[Uma] ideia romântica de devoção à beleza, de adoração da natureza, e de poesia se tornou um aspecto importante da autopercepção alemã. No entanto, ao mesmo tempo parecia haver uma nódoa negra nessa ideia. Como era possível que, dentro de poucas gerações, os herdeiros dessa ideia estivessem enforcando, torturando e assassinando pessoas exatamente nas mesmas florestas em que Goethe sentava para escrever poemas? Essa imagem, por um lado radiante e por outro cheio de trevas, já foi chamada de “dicotomia Weimar-Buchenwald” Esses dois aspectos formam um microcosmo do dilema alemão, a face de Jano da Alemanha. [2]
Algumas décadas antes do advento da Alemanha moderna, Goethe deu feição a uma representação icônica dos alemães de seu tempo: Fausto. A personagem é concebida a partir da memória de um vilão, Johann Georg Faust, cuja biografia restava envolta em lenda desde o crepúsculo da época medieval. Na lenda, se manifesta uma audácia de saber que advém do abandono de uma atitude contemplativa de Deus pela autonomia em contratar com o Diabo. Este personagem, antes de chegar à obra de Goethe, se insinuou no imaginário moderno, quando em 1587 houve a impressão de Johann Spies: Historia von Dr. Johann Fausten, também conhecido como Faustbuch; primeiro registro substancial da lenda e referência para a primeira obra dramatúrgica protagonizada pelo personagem, The Tragical History of Doctor Faustus, de Christopher Marlowe, publicada no início do sec. XVII.
A reviravolta
dada por Goethe ao desfecho trágico das narrativas anteriores na segunda peça
que escreveu para o protagonista será marcante pela prevalência da autonomia
desejante numa destinação criativa sobre o destino sempre dado desde a criação
heteronômica, a causa sui. No Fausto finalmente refigurado por Goethe em
1832, o herói completa em sua personalidade e peripécia voltadas para o
desfecho inventivo uma relação paradigmática entre vontade e inteligência
humanas que se vinha se tornando típica do ideário moderno. Porém, permanece no Fausto de Goethe a
terrível ferocidade suprema do desejo humano por si mesmo, o que ele coloca na
boca do demônio tal como transcrito na epígrafe deste texto.
Inventividade e
desejo; vontade e sagacidade. As
vicissitudes nas múltiplas possibilidades do enredamento narrativo com o
dispositivo desses pares duplicados como locanda do enredo (seu enquadramento
sem qualquer fixação espaço-temporal de cena)
já eram notáveis nos antigos mitos gregos. Em particular, dois
personagens míticos carregam este enquadramento nas suas narrativas: Prometeu e
Sísifo. É verdade que os gregos
clássicos desconheciam a ideia de salvação.
Daí que as vicissitudes restem insuperáveis, o que é compatível com a
estrutura necessariamente circular do tempo em todo mito. Mas, a acuidade dos gregos nesse
enquadramento das vicissitudes será determinante para a origem da democracia
entre eles.
Essa
determinação é perceptível só por uma visada transversal da cultura ateniense
na época em que na cidade foi instituída a democracia. Porque será necessário considerar que a
origem da democracia seja indissociável de outra realização clássica dos
gregos: a dramaturgia trágica. A ágora
grega designa o lugar das transações de mercado e de deliberação
democrática. E também de encenação da
dramaturgia trágica. Os gregos
desconheciam a ideia de humanidade. Daí
que seja tão importante o deslizamento da narrativa mítica para a narrativa
dramatúrgica, pois foi com as tragédias que os gregos encontraram
expressividade para colocar os homens como preocupação em pensamento, o que dá
conta da característica primária da democracia: os homens decidem entre si e
estão ciosos disso. Sintomático que na
Oresteia de Ésquilo, o voto de Minerva tenha sido dirigido às Fúrias no
contexto de uma assembleia deliberativa de homens que estava presa a um
impasse. E Sófocles irá conformar a
preocupação de Ésquilo numa investigação nomológica, o que é patente no diálogo
entre Antígona e Creonte no fim das vicissitudes dramatúrgicas enfrentadas
pelos descendentes de Lábdaco e por essa linhagem ligados à fundação mítica da
cidade de Tebas. É sugestivo notar que a
investigação nomológica já insinue também uma estrutura linear de tempo na
trajetória dos descendentes; linha esta que vai escapando de um mito genético.
A investigação
nomológica de Sófocles em Antígona e Creonte indicia a sua preocupação com a
normatividade na democracia e se volta para a importância da dramaturgia
trágica na contenção da ferocidade do desejo humano entre os gregos reunidos em
assembleia. A suspeita de que
dramaturgia trágica, rígida em sua formulação perdia com a repetição seu efeito
catártico e que a democracia fosse afinal incapaz de lidar com os desejos tomou
uma expressão contundente no suicídio de Sócrates narrado por Platão e foi
expresso exaustivamente no diálogo com Protágoras: se a ferocidade for polida,
os desejos humanos tomam a forma de argumentos tão engenhosos como ardilosos. Essa questão foi finalmente posta a nu por
Nietzsche em sua Genealogia da Moral, na qual a vontade de poder vai se
travestindo na vontade de verdade, cuja relação entre elas é encoberta pelo
elogio à audácia de saber.
Correlacionando
peripécias dramatúrgicas paradigmáticas da cultura ocidental à vivência do
Direito em Ettersberg, pode-se suspeitar que nenhuma sofisticada atualização
teórica das formulações teleológicas para o Estado Democrático de Direito será
suficiente para prevenir uma perversão no manejo de ações persecutórias. A eficiência delas é necessária, mas é
prudente reconhecer que sempre será preciso mais do que uma teoria sobre a sua
funcionalidade para justificá-las.
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