quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O que um padre do deserto teria a dizer sobre compliance? (2)


“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno histórico com o qual se pode estabelecer analogia ao tempo hodierno pelas sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural em tensão com as de estabilidade, de continuidade e de coesão social.  Outrossim, deram eles expressividade a essas sensações convulsivas através de um estilo: a apotegmata (breves narrativas em que lhes dá sentido um comentário atribuído a um padre do deserto).

A morte, claro, é um tema recorrente nos apotegmas.  Ela é recorrente também hoje, mas sintomaticamente oblíqua através dos predicados saudável (perspectiva individual) e sustentável (perspectiva social).   Digo oblíqua, porque hoje abordamos normalmente a morte como algo a ser prevenido e corrigido. Estamos “em luta contra” a morte; médicos “perdem” seus pacientes assim.  Então, como é evidente para unidades complexas de carbono e hidrogenação catalítica, formamos um exército sitiado pela morte. E que já sabe:  todos nós perderemos a vida nesta batalha, mas mesmo assim devemos resistir.    Pelo quê?!  A felicidade ainda a ser buscada, mas que, neste estado de sítio, nos escapa. 

Desprovidos de pensamento crítico, não há enfrentamento do tema: os apotegmas dissociam da morbidez sua alusão direta à morte.  O que isso pode dizer sobre o compliance?  A morbidez como sintoma estilístico do enfrentamento temático contemporâneo tende a retratar a morte como um algo voraz, disfuncional e implacável.  A morte assim retratada é liberdade despersonificada.  Trata-se de uma projeção da performance vazia de significado.    Como resposta, a vida humana autonômica, típica concepção humanista, corresponde a uma liberdade performática contida pela normatividade. 

As sociedades democráticas de mercado se lançaram à aceleração das inovações tecnológicas.  Numa abordagem patológica, um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é rebento. E com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a resiliência:  a normatividade inflacionária de marcos regulatórios da qual o compliance é colateral.  Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa liberdade.  Eis o paradoxo da liberdade coercitiva em expansão.

Não se trata de negar o caráter incontornável das práticas de compliance na ordem econômica.  Mas, tampouco é incontornável a necessidade de uma compreensão patológica de qualquer funcionalidade.  Por exemplo, a patologia numa pandemia só se completa com a análise funcional dos processos bioquímicos do seu vírus patogênico. 

Quero então apontar isso: o excesso de funcionalidades normativas que tomam forma de violências neuronais, dos quais o transtorno do burnout é um sintoma, constitui um limite hipotético para as políticas de compliance.

Nenhum comentário:

Postar um comentário