terça-feira, 26 de julho de 2022

Pensamento Contemporâneo

https://www.amazon.com.br/dp/B0B7PHXGQQ


 


Pensar é um deslizamento súbito que acontece em linguagens entre a percepção e a compreensão; mundo e existência. Há padrões em linguagens que, na cumulação dos pensamentos, vão variando significativamente de uma época para outra. 

O livro é como um plano de atravessamentos, um voo pelos campos da ética, estética e lógica no Século XX com os quais poderemos  notar variações entre o pensamento típico do séc. XIX e o do séc. XXI mesmo que iniciantes em Filosofia. 

ü  Como a performance prevaleceu sobre a disciplina?

ü  Por que aumentou a incidência de transtornos psíquicos?

ü  Existe diferença entre calcular riscos e lidar com incertezas?

ü  Por que ainda nos sentimos inseguros em ambientes saturados de funcionalidade?

ü  Por que quanto mais celebramos a nossa autonomia, aumentam os procedimentos, protocolos e regulamentos nos ambientes em que estamos?

ü  Com tanta informação sendo gerada e disponível, aumentaram as contradições?

ü  Quais as verdades acerca dessa simples palavra, “eu”?

ü  As artes se antecipam ao conhecimento empírico acerca dos acontecimentos de uma época?

ü  Qual a diferença entre os bens éticos e estéticos no bem estar?

ü  Há mesmo relação entre verdade, beleza e bondade?

ü  Há diferença entre cuidado e responsabilidade?

O livro se propõe a dar condições para que você reconheça seus pensamentos de outras atividades mentais que com eles se confundem no dia-a-dia: o raciocínio, o argumento, o discurso, o cálculo, o plano, o palpite, a oração e o solilóquio.    E, mais do que isso, cultivar a atividade de pensar. 

Ao pensar, ninguém está correndo atrás.  Porque já está lançado ao que venha a ser. 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Etnobotânica e vivências religiosas: Modos de vida

 


O DOCUMENTO SOBRE A FRATERNIDADE HUMANA  EM PROL DA PAZ MUNDIAL E DA CONVIVÊNCIA COMUM assinado nos Emirados Árabes Unidos pelo Papa Francisco e o Grão Imame Al-Tayyeb é um convite, um apelo, um testemunho e um símbolo.[1]

Convite  à reconciliação e à fraternidade entre todas as pessoas de boa vontade;

 Apelo a toda a consciência para que repudie a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo ao amor e aos valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões;

Testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações divididos e eleva a alma humana;

Símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam.

E o que este documento atesta?

·  A forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam: (1) a permanecer ancorados aos valores da paz; (2) apoiar os valores do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum; (3) restabelecer a sabedoria, a justiça e a caridade e (4)  despertar o sentido da religiosidade entre os jovens e defender as novas gerações do perigo das políticas da avidez do lucro desmesurado e da indiferença baseadas na lei da força e não na força da lei.

     A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Condenáveis as práticas de adesão forçada a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitem.

    A justiça baseada na misericórdia é o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano.

     O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuem significativamente para a redução de muitos problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do género humano.

  O diálogo entre crentes significa encontrar-se no espaço enorme dos valores espirituais, humanos e sociais comuns, e investir isto na propagação das mais altas virtudes morais que as religiões solicitam; significa também evitar as discussões inúteis.

     A proteção dos locais de culto é um dever garantido pelas religiões, pelos valores humanos, pelas leis e pelas convenções internacionais. Qualquer tentativa de atacar locais de culto ou de os ameaçar através de atentados, explosões ou demolições é um desvio dos ensinamentos das religiões, bem como uma clara violação do direito internacional.

    O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os.

     É uma necessidade indispensável reconhecer o direito da mulher à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos. Além disso, deve-se trabalhar para libertá-la das pressões históricas e sociais contrárias aos princípios da própria fé e da própria dignidade. Também é necessário protegê-la da exploração sexual e de a tratar como mercadoria ou meio de prazer ou de ganho económico. Por isso, devem-se interromper todas as práticas desumanas e os costumes triviais que humilham a dignidade da mulher e trabalhar para modificar as leis que impedem as mulheres de gozarem plenamente dos seus direitos.

     A tutela dos direitos fundamentais das crianças a crescer num ambiente familiar, à alimentação, à educação e à assistência é um dever da família e da sociedade. Tais direitos devem ser garantidos e tutelados para que não faltem e não sejam negados a nenhuma criança em nenhuma parte do mundo. É preciso condenar qualquer prática que viole a dignidade das crianças ou os seus direitos. Igualmente importante é velar contra os perigos a que estão expostas – especialmente no ambiente digital – e considerar como crime o tráfico da sua inocência e qualquer violação da sua infância.

     A proteção dos direitos dos idosos, dos vulneráveis, dos portadores de deficiência e dos oprimidos é uma exigência religiosa e social que deve ser garantida e protegida através de legislações rigorosas e da aplicação das convenções internacionais a este respeito.

Com relação às religiões de matriz africana, o magistério eclesiástico manifesta na sua Constituição dogmática Lumen Gentium que Deus não está longe, já que Ele quem da vida, respiração e tudo o mais.   Quanto ao modo como a graça salvífica de Deus atinge as pessoas que não professam a fé cristã, a Decreto Canônico Ad Gentes diz que isso acontece por caminhos que são por Ele, Deus, conhecidos[2], mesmo que ainda não tenhamos notado bem as suas sutilezas. A Declaração Dominus Iesus reconhece que a teologia católica ainda se esforça por aprofundar a questão,  mas atesta que não há mais dúvida que “as diversas tradições religiosas contêm e oferecem elementos de religiosidade que procedem de Deus8 e que fazem parte de  quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões.”[3] A Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não cristãs,  assinada durante o Concílio Vaticano II[4]  é assertiva neste sentido:  “Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que dela derivam”.

Essa Declaração Apostólica assevera que “os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos.”

A fenomenologia é um recurso filosófico e antropológico investigativo para compreendermos então a presença da religião em todas as culturas desde que suas brumas imemoriais começam a se dissipar.  O be-a-bá que qualquer estudante de ciênciais sociais de primeiro período de faculdade aprende é que isso nada tem a ver com algum sentido de imaturidade intelectual e civilizacional.  Mas, se esta ou aquela manifestação religiosa não for uma questão de ser primitivo ou refratário à verdade, o que todas têm de essencial?  O núcleo fundamental da existência humana na abertura religiosa é a pesquisa horizontal; pesquisa de potência e encontro com uma Potência, que preencha a expectativa de presença e a sua invocação; o desejo e a capacidade do ser humano por expandir-se, produzir e conhecer.[5]

É neste contexto teológico que pensei ser oportuno lembrarmos a Santa Hildegarda Von Bingen, que viveu no sec. XII. onde hoje fica a Alemanha.  Mulher de múltiplos talentos, a começar que era escritora numa época que poucos homens eram e quase nenhuma mulher.  E também compositora de cantos gregorianos.  Teve uma importância enorme para o amadurecimento da teologia medieval. Embora fosse mística, ou seja, sua experiência religiosa fosse marcada por relatos de suas epifanias, seus textos primavam pela clareza e praticidade para com questões e problemas cotidianos. 

Descreveu sistematicamente plantas medicinais e nutritivas.  Em dois livros de medicina que escreveu, propôs métodos de cura com inúmeras plantas, a prática regular do jejum e orientações higiênico-dietéticas.  Chamava de “Maravilhas do Senhor” suas receitas terapêuticas.  Práticas que descreveu foram confirmadas pela ciência e são empregadas ainda hoje.  Especialistas atestam que ela tinha amplo domínio da melhor prática médica disponível em sua época, mas não se sabe como ela adquiriu esse conhecimento.  E ainda teve criatividade e inovou frequentemente com base nesse conhecimento.[6] 

Décima filha de uma família nobre, foi entregue aos cuidados da Igreja ainda criança. Como dízimo. Teve a sorte de ter a Santa Jutta por tutora, o que lhe deu condições para que seus talentos se manifestassem.  Ela mesma tinha muitas dúvidas sobre a qualidade de seus textos.  Ela contava que ouvia vozes que diziam o que ela deveria escrever e que ficava doente, quando não escrevia.  Então, ela acabava escrevendo.  Mas, teve a iniciativa de enviar seus textos para São Bernardo de Claraval.  Monge cisterciense que já à época era reconhecido como o mais influente religioso de seu tempo.  Quando leu os textos, São Bernardo os enviou ao Papa recomendando atenção ao que estava escrito.  O Papa escreveu a Santa Hildegarda não somente o reconhecimento das qualidades de seu texto, mas autorização para que ela tornasse públicas a suas opiniões e estudos.   Ela foi proclamada Doutora da Igreja Católica por Bento XVI[7]. 

Noto na estória de Santa Hildegarda um padrão que se repetiu em Ávila e também em Fátima.  O mesmo padrão paradoxal de escala manifesta na anunciação à Nossa Senhora: a plenitude da graça é encontrada na presença feminina, essa grandeza da fé menor.  O que é essa fé menor?  Na época de Santa Hildegarda, acontecia a Primeira Cruzada e o aparecimento dos reinos cristãos no oriente.  Surge a Ordem Templária e o esforço de guerra atrai a atenção da Igreja.  Neste momento, numa pequena comunidade que não tinha a menor importância estratégica, o Espírito Santo se manifestou com grande eloquência mística e com significados teológicos surpreendentes.  Isso tudo para uma mulher de vida muito simples e aparentemente irrelevante.  No caso de Fátima coisa parecida aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, só que, através de Nossa Senhora, a três crianças, sendo duas delas, meninas.  E no caso de Santa Teresa d´Avila, muito sangue estava sendo derramado nas guerras religiosas na esteira Reforma protestante e nos confrontos com o Império Otomano.  Em todos os casos, essa eloquência teológica, todo o seu caráter inventivo é envolvido de doçura e voltado ao cuidado e acolhimento hospitalar mais cotidiano e pacífico.  A tal pedra de arrimo que nos tempos de muita turbulência histórica e social, volta a ser desprezada. 

Santa Tereza certa feita disse às suas irmãs de convento que via o rosto de Cristo no fundo de uma panela.  Eu às vezes medito sobre o que fiz no meu dia e acabo chegando à conclusão que a coisa mais importante que fiz foi ter lavado as panelas sujas que serviram para preparar o jantar para a minha família. 

Não há modelo mais eloquente de boa aventurança do que essas mulheres cuja vida cotidiana frequentemente sequer é valorizada até pelos seus filhos.  Elas estão lá sempre com um prato de comida preparada, uma cama limpa, um remédio disponível para os que estão aflitos ou revoltados.  Ou cheios de razão frente às grandes disputas de seu tempo.  Se formos atentos, essas devoções maternais discretas, anônimas, são fonte de grande inspiração para todos nós e então não vai importar tanto assim se ouvem música gospel, ou se são filhas de santo. 

É com este sentido que entendo a palavra do Papa Bento XVI em chancela  ao magistério de Santa Hildegarda: “a descrição mais exata da criatura humana é a de um ser a caminho, homo viator.”  Um caminho experiencial. 



[1] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-francesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html

 [2] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html

[3]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html

[4] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html

[5] file:///C:/Users/guilh/Downloads/8967-37162-1-PB.pdf

[6] https://www.fcm.unicamp.br/boletimfcm/mais_historia/redescoberta-da-medicina-natural-de-hildegarda-de-bingen-doutora-da-igreja-do-seculo

[7] https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_letters/documents/hf_ben-xvi_apl_20121007_ildegarda-bingen.html


domingo, 17 de julho de 2022

Pensando & Conhecendo LV

 Quando dizemos que nada há aí, já se nos abriu uma perspectiva de mundo.  Nada, ainda; por enquanto.  Há mundo que já-aí virá a preencher essa ausência com alguma presença possível.

Mas, o que é mundo? Há três possibilidades de se dizer mundo. 

  •      o campo das relações próprias de cada um de nós com o já-aí (mundo porvir)
  •      o meio ambiente e circundante das relações entre nós com tudo mais (mundo posto)
  •      o conjunto de relações horizontais entre algo e acontecimento (mundano)

É desse enredamento relacional que se pode afirmar que mundo seja  síntese de todos os horizontes ou campo genético, normatizante e normalizante de significados.  Ou o conjunto de significados articulado pela vivência de sentidos que sempre são históricos e sociais.  

Ou solo do qual somos constitutivamente estrangeiros; o deserto que somos convocados a atravessar.  Este deserto nos é familiar, nos é tão próximo que é a nossa pele.  Ou então, um abismo se abre  aí sob nossos pés como desterrritorialização, sempre já se reterritorializar eis que, sendo o abismo sentido da vertigem, é constitutiva numa aversão às ambiguidades e incertezas no nada que é este salto a nenhures.


  



sábado, 16 de julho de 2022

Pensando & Conhecendo LIV

 Qual a diferença entre a viagem delirante e a especulação filosófica?  O conceito.

Tal como o delírio paranoico ou o passional, o conceito recompõe horizontes  (planos e perspectivas) e articula fenômenos como acontecimentos que parecem difusos ou evidências sem relação entre si.  Mas, o conceito cria uma relação dinâmica de diferenciação e identificação (diferenças não identificadas antes ou identidades não diferenciadas antes), com que se muda a forma de perceber fenômenos e então há recomposição e articulação como entendimento.  Um conceito diferente torna possível argumentos serem originais,  o que é muito diferente do delírio que afete a percepção de fenômenos ao mudar a articulação das evidências, mas não traz qualquer fecundidade à argumentação.

Com o conceito, a produção da subjetividade é cartografada na sua relação com os planos de força e recalcitrâncias.  Não há um método, mas o hodos-metá, pois a descoberta não vem enfim com os meios empregados, mas aí no meio dos meios.  

Há no conceito uma ambiguidade entre sobrevoo na recomposição horizontal de perspectivas e mergulho na implicação e nos acessos.  Como disseram Deleuze e Guattari, " (....) ele é imediatamente copresente sem nenhuma distância (...) O conceito é um incorporal, embora se encarne ou se efetue  nos corpos (....) Não tem coordenadas espaço-temporais, mas apenas ordenadas intensivas".  (O que é a Filosofia? 2a ed.  Trad. Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz.   São Paulo : 34, p. 33).  Um conceito sempre diz da maneira como a intensidade se desenrola ou se anula num estado de coisas




terça-feira, 12 de julho de 2022

Pensando & Conhecendo LIII

É possível conhecimento sem se recorrer a métodos de domínio assegurado sobre estado de coisas e seus desdobramentos espaciais e temporais? Ao menos, razoável reconhecer que não haja conhecimento possível para além dos fenômenos.  Seja porque todo acesso a entes mundanos seja situacional, ou seja, em perspectiva; seja porque não haja meio de discernir no imediato da percepção, a presença sensorial ou sensacional da coisa da distorção, delírio ou ilusão presentes.   É até possível admitir existência para além dos fenômenos. Mas aí, a fé.  Por outro lado, também será forçoso admitir que todo acesso racional não seja originária, mas sempre será reflexiva. 

O conhecimento é correlativo.  Há correlação entre percepção e presença.  Sendo que a percepção tenha suas próprias relações, e a presença tenha as suas.  São esses padrões relacionais que se correlacionam.  Essa correlação é compositiva e imediata, de modo que não haja precedência, causalidade e consequência para se analisar nas correlações, mas somente a partir delas.  Correlação aqui é performance dinâmica originária na relação entre ser humano e mundo.    

O mundo então é uma totalidade complexa de relações constituídas por forças que atravessam uma multiplicidade de planos entrecortados por referências, sensações e conceitos:  Força e plano são elementos relacionais constitutivos arranjados historicamente como modos encarnados; carne é a presença de corpo e campo em que esses modos se configuram para uma análise topológica dessas relações. 




quarta-feira, 6 de julho de 2022

Pensando & Conhecendo LII


Ethos  é caráter, costume e moradia.  Na ética, um modo de ser de alguém como o abrigo da sua humanidade em si, com que toca, afeta outrem (pathos) na conjugação do verbo (logos). Na ontologia,  ethos se refere à presença dando-lhe consistência ao seu modo de ser, o que é imediatamente afeta (pathos), vez que já seja coexistência necessária no mundo.  As linguagens tornam mundo um comum-pertencer; é linguagem a mesmidade entre pensar e ser.  Sem o logos, coexistência seria uma homeostase caótica, já que institui a distinção imaginária entre permanência e performance no existir. Ethos e Pathos estabelecem uma relação biunívoca no logos.  

No logos,possibilia e sensibilia –  possibilidades e sensibilidades virtuais, mas existentes para além dos sujeitos e objetos, não somente no reino das deduções e induções (alética), mas também no devir de si-mesmo no reino das sensações e sensos (hilética).  Para o devir, lançaram-se Deleuze e Guattari no ensaio  Percepto, Afecto e Conceito.  Para eles, conceituar é bordejar entrelaçamentos binários.  Partindo da estética, vez que lide com a mais transitória das vivências – as sensoriais,  nela melhor se demonstra as materialidades do devir:

O ser da sensação, o bloco do percepto e do afecto, aparecerá como a unidade ou a reversibilidade daquele que sente e do sentido, seu íntimo entrelaçamento, como mãos que se apertam. (...) Não é esta a definição do percepto em pessoa: tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo e que nos afetam, nos fazem devir? 

 No plano das forças para o devir no ser da sensação, realidade entre possibilia no reino da lógica e a possibilidade no reino dos fatos.




sexta-feira, 1 de julho de 2022

Cooperativas, Justiça & Cultura

 


https://www.amazon.com.br/dp/B0B5F9LV66


Descrição do livro:


A cooperativa como universalmente justa para a ordem econômica constitucional é o imaginário temporal partilhado e instituinte do que passa pela centralidade do homem face ao capital e ao mercado. Ser capaz de dizer dessa humanidade é um desafio para a insistência na percepção pessoal e singular das cooperativas universalmente identificadas no mundo da vida.

Para dizerem dessa centralidade, os cooperativistas amiúde enfatizam a singular relevância da ideia de felicidade na compreensão da cooperativa como fenômeno social.  O livro assume essa ênfase como uma provocação e responde a isso.  Não uma resposta banal, mas enredada num percurso pelo pensamento contemporâneo: a busca por um sentido de Justiça que dê conta da pretensão de legitimar e ampliar a experiência cooperativa é o leitmotiv dessa jornada na companhia de Pascal, Kant, Goethe, Hegel, Kierkegaard, Dostoiévski, Melville, Proust, Heidegger, teóricos da Gestalt, Lévinas, Castoriadis, Deleuze, Ricoeur e Lipovetski cujos filosofemas e narrativas se imiscuem ao longo de todo o livro.  Há densidade, mas não dificuldade: a prosa é clara e amiúde dispensa os léxicos pela simples persistência do autor para que o leitor compreenda o ponto em questão antes de partir para outra incursão vertiginosa, qual montanha russa..    

O prefácio antecipa que o fio condutor do livro é qual uma navalha na carne:  na cooperativa, assim como em todo fenômeno cultural, o normal e o patológico não se opõem um ao outro como dois contrários, mas sim como duas partes de um mesmo todo.  Então, ao invés de capítulos, fica melhor em falar em cortes, recortes e retalhos.

O primeiro retalho tem por título O que identifica uma união de pessoas como cooperativa? . É uma apresentação da cooperativa numa abordagem fenomenológica transcendental com a qual a cooperação se faz presente como valor.  Toda fenomenologia é um começo.  Mas, que nada tem de superficial: em se tratando de fenomenologia, o mais profundo é a pele.    E para fulgurar a cooperação como valor num sentido tão imediato como a que se dá pelo tato, o segundo retalho Amor, Justiça e Verdade é teológico. Essa abordagem pouco usual já se faz presente no tipo literário :  uma epístola.   Em que textos canônicos e o magistério dos Papas Bento XVI e Francisco articulam a presença forçosa das cooperativas na atualidade da Doutrina Social da Igreja Católica Romana.  

Do espírito às vísceras.  O terceiro corte Sonhos interrompidos e os rostos humanos transita para a fenomenologia existencial e a temática resvala para a economia da saúde.  Com isso, o leitor identifica  a morada do normal e do patológico que se apresentam como lábios fendidos de um corte por bisturi.  O quarto corte já sangra: em Cooperativas e Madalenas, o fenômeno das cooperativas de médicos especialistas em procedimentos de alta complexidade é correlacionada com  crimes de cartel.  Uma aguda tensão a abismar o leitor: como ideias tão díspares podem estar tão próximas na economia da saúde?  Se aí a abordagem é ontológica, no quinto, outro recorte, já é lógica aplicada ao conhecimento:  A agência epistêmica face os argumentos de autoridade.

Mais 3 retalhos, a esquizoanálise e os cortes se fazem metodológicos. Em Cooperativas sem degredados, a ideia de felicidade é separada da funcionalidade.  Já em O carro de Jagrená por entre palácios de cristal, é o risco e a transparência em gestão que assumem o horizonte de primeiro plano.  O texto então culmina na psicossociologia e a análise institucional em Por que a norma deveria ser a regra?  Como o primeiro retalho é encimado com uma pergunta, também é epigrafado o último.  Como que indicando ao leitor ser ele quem deve concluir a obra com a sua leitura.  O texto quase nada ensina, mas muito insinua a ele.  Então, o posfácio que faz um exercício de aplicação prática de tudo que foi insinuado. No caso, o corpo se faz cooperativas de crédito.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Pensando & Conhecendo LI

A esquizoanálise é um esforço filosófico de distinguir.  Em termos metodológicos, ela dá voz da recalcitrância à escuta.  É uma trilha pelo qual se perde a marcha  em vista do horizonte inicial de uma pesquisa e se encontra o passo que não estava previsto.    Uma hipótese no meio de outra hipótese.  Outras possibilidades de compreensão do fenômeno e diálogo que desorganizam e reorganizam os dados na medida em que o pesquisador redescobre o alfabeto. 

A expressão-chave da esquizoanálise é transversalidade.  A transversalidade distingue hierarquias (verticalidades) e corpos (horzontalidades) organizados.  Atravessa, desmancha e (re)institui territórios como quem desfez e refaz interações entre os múltiplos pontos de uma carta geográfica.     Não se trata de uma refutação da hipótese inicial, mas dos pressupostos dela, à formulação do problema, das articulações entre agentes e coisas.  Não se trata de chegar ao elementar; mas, o oposto:  ao complexo - à ampliação de espectro dos determinantes, uma rede heterogênea de concorrentes nos campos de forças dinâmicas em realização aí de um plano comum, mas já diferente. 

A esquizoanálise é envover-se pelo lusco-fusco, dar-se ao movediço; sentir a vertigem e a surpresa de todo acontecimento criativo na produção de saberes.    






terça-feira, 21 de junho de 2022

Pensando & Conhecendo L

Pode-se dizer um marco do séc XX algo que diferencie significativamente características  sociais e históricas do séc XIX do XXI.  Um marco assim foi epistemológico.  É a compreensão de que estamos sempre em busca de um padrão para compreendermos algo que se nos apresente à percepção.  Se essa busca não começa a partir da consciência, mas do corpo, já se dá ao nível biofísico.  No entanto, não há uma relação entre o que se estabelece nesse nível e a compreensão.  Se assim fosse, haveria algum tipo de predeterminação, mas isso não acontece, porque vigoram correlações.  Ou seja, há imbricações entre a fisiologia cerebral e os fenômenos tanto para a consciência como para o inconsciente.

Essas correlações são transversais, oscilantes e circulantes entre a consciência e a inconsciência em relações biunívocas por entre entrelaçamentos binários.  O que transversa, ele mesmo é tão somente presença.  Que não pode nem ser figurada ou representada, senão já oscilante e circulante.     Então, a realidade é incontornavelmente aberta e dialogal, ainda que existam padrões mais persistentes do que outros para dizer da presença, que só pode se dar já relacionada com a existência como entrelaçada com a identidade e diferença; natureza e forma; eu e mim mesmo (self); conceito e noção; texto e contexto. 





sexta-feira, 10 de junho de 2022

Pensando & Conhecendo XLIX

Há entre validade e verdade uma relação biunívoca por entre entrelaçamentos binários.  O mais moderno dos critérios para a relação é o da correspondência entre o conhecimento produzido e o objeto estudado.  A correspondência é a representação da realidade; representação figurada em normas e procedimentos incidentes sobre o controle de variáveis em funções para verificação ou refutação de hipóteses predeterminadas. 

Há, outrossim, o critério da criação.  Neste caso, acompanhar é um verbo preponderante sobre observar, pois este pode mais das vezes, ser significativamente substituído por intervir.  Neste caso, estaremos então diante de um processo de singularização para além das formas individuadas, pois lidaremos com a produção de subjetividades.  Forças e agências, e não funções e estados.    A validação então não lidará estritamente com dados, análises e resultados, mas com acessos, encontros e efeitos.  O acesso tem a ver com habitar o campo; atenção e abertura.  O primado é o dos processos e atos, e não das metas e objetos. Os encontros, ao nível da percepção, da narrativa e do entendimento são conceitos, articulações de fenômenos que pareciam dispersos, insignificantes, ou sem padrão e relação na linguagem.  É o avesso da pesquisa a sugerir linhas de continuidade tanto para os pesquisados, como para o pesquisador e seus pares.  No lugar do controle e correspondência figurativa, contato e consistência performativa.  Quanto aos efeitos, trata-se de expectativas e recalcitrâncias. 




quinta-feira, 2 de junho de 2022

Pensando & Conhecendo XLVIII

 Há algo diante de mim.  Está aí.  Posso vê-lo.  Uma cadeira.  Posso ouvi-lo, uma máquina;  cheirá-lo, um assim assado.  Tocá-la...  é minha esposa, sal na vida; já alguém, e não algo.  Esse estar aí para mim é acontecimento, mas remete a uma permanência para além de minha intencionalidade.  Distraio-me,  recalcitra, estabelece-se uma fronteira existencial entre mim e o mundo.  Recalcitra, mas também se deixa restar: está aí.

Entre mim e mundo, o que há?  Estou sujeito a uma existência situacional na qual recorrentemente me ocorrem seres objetando por serem o que têm de ser por si.  Diferentes a cada vez.  Em todo caso, há uma correspondência identitária-conjuntiva para mim de um mundo sendo sempre assim.  Detenho-me, pergunto-me, observo, reflito (ou vice-versa), e logro respostas.  Experimento, a existência dispõe-se; consuma-se ao fato.  Tomo a cognição de algo por representação e figuração, os dados decompõem-se em componentes, partes, linhas, curvas, relações e interações.  Análise e experiência: o objeto por ponto de partida e o sujeito por acesso.  Nem a análise nem a experiência instituem um novo objeto nesse início, pois percebo uma existência transcendente a mim mesmo que me afeta e dou sentido a isso. 

Mas, o acesso modula toda a experiência, mesmo que formalizada nalgum procedimento dado.  Por isso, há sim uma dimensão participativa na constituição dos objetos.  Daí que a análise pode então voltar-se para essa participação, as suas condições de emergência do objeto, uma gênese.  Isso é coextensivo a modo de problematizar: o problema não é dado, a experiência por assim dizer então cria novos problemas na multiplicação de sentidos.  Implicações.  Zonas de ambiguidades.   Cultivo, ao invés de coleta. 




terça-feira, 24 de maio de 2022

Pensando & Conhecendo LXVII

 

O mito de Teseu marca a transição do grego arcaico para o clássico.  Historicamente, houve um deslocamento geográfico da hegemonia cultural: da ilha de Creta  para o Peloponeso.  Esta transição é singular, porque com ela houve um deslizamento da linguagem mítica para a filosófica.  A Europa acontece. 

No mito, Teseu se voluntaria para o tributo de terror pelo qual jovens gregos deveriam se perder no labirinto do Minotauro.  Ele se propõe a matar o Minotauro e com isso dar fim ao tributo, ainda que admitisse: missão suicida.  Teseu é um herói clássico.   Aconteceu que Ariadne se apaixonasse por Teseu. Para que ele não permanecesse no labirinto para sempre, entrega-lhe um novelo com o qual poderia entrar e sair do labirinto. Aí, o Minotauro.  O fio é caminho.  Em grego, odo.  Falar sobre esse fio? Método.  

 O labirinto é a existência em que ser brinca de esconde-esconde; em cada acontecimento que se mostra, algo aí já se esconde também: fenômeno e horizonte de indistinção.  Todo mito institui alguma dobra do labirinto.  Em cada dobra, a filosofia pode  encontrar o fio pelo qual se entra e se sai do labirinto: a filosofia não é saber, mas se interessa sobre saber.  A ciência segue o fio.  Mas, cuidado!  Um foco obsessivo no fio tira o olho do labirinto.  A ciência se degenera nalgum relativismo.  O fio só faz sentido nas dobras da existência, não as pode desdobrar; dobra com ela.  Este sentido é entregue pela filosofia, pois se ela encontra o fio no labirinto, é porque nela, acontece e se mostra a dobra. 






Pensando & Conhecendo XLVI

Há 100 anos, a primeira aplicação de insulina numa enfermaria com crianças desenganadas foi espantosa: a dramaticidade da narrativa fez refulgir a semelhança genealógica do Homem a Deus – em poucas situações outras uma descoberta científica pôde ser comparável a um milagre.  Tanto que já no ano seguinte, Frederick Banting e John Macleod - os responsáveis pelos experimentos com a insulina foram agraciados com o Prêmio Nobel em Medicina.  Por iniciativa própria, eles dividiram o prêmio com Charles Best, um estudante e James Collip, químico. Esse dado aponta para uma concepção compartilhada entre eles, mas que começou com Claude Bernard décadas antes; culminando no evento tão notável.   O acontecimento dessa concepção ultrapassa os estritos liames do diabetes, pois fertilizou visões de mundo no séc. XX até seu impacto pelo viés epistêmico no atual estado das artes do Direito Penal Econômico.    

Desde a ciência moderna, particularmente a partir de Pasteur,  o conceito de anomalia oscilou entre presença de um ente patogênico (pressuposto ontológico) e um desequilíbrio  ou disfunção patológica (pressuposto sistêmico).   Do estudo da diabetes emergiu no imaginário que estes dois pressupostos não sejam excludentes, mas radicalmente coexistentes no mundo da vida.   A coexistência se presta a ampliar pela transversalidade o espectro de hipóteses a serem consideradas com métodos diferentes na clínica e terapêutica.  Em todo caso, permanece a sombra de Francis Bacon: somos condenados a distinguir entre os melhores e os piores raciocínios indutivos sem que se tenha necessariamente um postulado axiomático a fundar; um a priori que nos livre de quaisquer dúvidas quanto ao que seja certo ou errado num contexto.  A restauração do normal em toda situação não será sempre redutível a uma certeza normativa já instituída.  Há a possibilidade de uma descoberta por fazer circular a normatividade e a normalidade.



terça-feira, 19 de abril de 2022

Pensando & Conhecendo XLV

 Anton Tchekhóv é o mais celebrado dramaturgo do Teatro de Arte de Moscou para o qual escreveu 4 peças impactantes.  Não é acaso, ele também se notabilizou por servir-se de um gênero literário até então considerado menor - o conto - como suporte para textos inesquecíveis.  Pois, Tchekhóv nunca deixou de exercer medicina.  Dizia que ela era a sua esposa; a literatura de ficção, sua amante.   Longe de constituírem atmosferas rivais por onde ele transitava, elas eram um mesmo ambiente vivido.  A esposa era amiga da amante.  O realismo dos textos de Tchekhóv era manejado em tal modo que o leitor é convocado a subjetivar, sem o quê o sentido do texto não se lhe apresenta. 

O seu longo texto intitulado Ilha de Sacalina,  uma mescla de relatório de pesquisa de campo e ensaio jornalístico traz características que bem indicam o estilo do autor.  E, não por acaso, também antecipa em décadas implicações epistemológicas que viriam a ser postuladas pela etnografia entre observação e narração; entre drama e anamnese.  Ilha de Sacalina se constitui como um diário de bordo de uma viagem-intervenção.  Se apresentando no campo como pesquisador, mas escrevendo como jornalista, o texto é narrado em primeira pessoa.  O recurso linguístico tem um enorme significado.   Sem em nenhum momento deixar de realizar um relato metódico, as descrições tampouco recalcam as impressões no acontecimento que é a observação.  Tchekhóv tem em mente que trata de duas vivências integradas:  a que é descrita (1) e a do descrever (2).  É um estranho íntimo. 

A produção científica requer uma objetividade necessária.  Mas, a genialidade de Tchekhóv foi antever que a objetividade não se reduz a um objetivismo formal.   A impressão é sempre parte integrante do processo de produção de um texto descritivo.  René Lourau notará muitos anos depois que um texto assim escrito como esse que o Tchekhóv publicou enuncia a sua própria produção, liberando-se da pretensão de um conhecimento definitivo sobre o objeto.  É um devir feminino do texto que é liberado, quando no texto se inclui o seu fora, porque cria um plano em que pesquisadores e pesquisados se dissolvem como entidades definitivas e pré-constituídas.