quarta-feira, 20 de julho de 2022

Etnobotânica e vivências religiosas: Modos de vida

 


O DOCUMENTO SOBRE A FRATERNIDADE HUMANA  EM PROL DA PAZ MUNDIAL E DA CONVIVÊNCIA COMUM assinado nos Emirados Árabes Unidos pelo Papa Francisco e o Grão Imame Al-Tayyeb é um convite, um apelo, um testemunho e um símbolo.[1]

Convite  à reconciliação e à fraternidade entre todas as pessoas de boa vontade;

 Apelo a toda a consciência para que repudie a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo ao amor e aos valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões;

Testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações divididos e eleva a alma humana;

Símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam.

E o que este documento atesta?

·  A forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam: (1) a permanecer ancorados aos valores da paz; (2) apoiar os valores do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum; (3) restabelecer a sabedoria, a justiça e a caridade e (4)  despertar o sentido da religiosidade entre os jovens e defender as novas gerações do perigo das políticas da avidez do lucro desmesurado e da indiferença baseadas na lei da força e não na força da lei.

     A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Condenáveis as práticas de adesão forçada a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitem.

    A justiça baseada na misericórdia é o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano.

     O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuem significativamente para a redução de muitos problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do género humano.

  O diálogo entre crentes significa encontrar-se no espaço enorme dos valores espirituais, humanos e sociais comuns, e investir isto na propagação das mais altas virtudes morais que as religiões solicitam; significa também evitar as discussões inúteis.

     A proteção dos locais de culto é um dever garantido pelas religiões, pelos valores humanos, pelas leis e pelas convenções internacionais. Qualquer tentativa de atacar locais de culto ou de os ameaçar através de atentados, explosões ou demolições é um desvio dos ensinamentos das religiões, bem como uma clara violação do direito internacional.

    O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os.

     É uma necessidade indispensável reconhecer o direito da mulher à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos. Além disso, deve-se trabalhar para libertá-la das pressões históricas e sociais contrárias aos princípios da própria fé e da própria dignidade. Também é necessário protegê-la da exploração sexual e de a tratar como mercadoria ou meio de prazer ou de ganho económico. Por isso, devem-se interromper todas as práticas desumanas e os costumes triviais que humilham a dignidade da mulher e trabalhar para modificar as leis que impedem as mulheres de gozarem plenamente dos seus direitos.

     A tutela dos direitos fundamentais das crianças a crescer num ambiente familiar, à alimentação, à educação e à assistência é um dever da família e da sociedade. Tais direitos devem ser garantidos e tutelados para que não faltem e não sejam negados a nenhuma criança em nenhuma parte do mundo. É preciso condenar qualquer prática que viole a dignidade das crianças ou os seus direitos. Igualmente importante é velar contra os perigos a que estão expostas – especialmente no ambiente digital – e considerar como crime o tráfico da sua inocência e qualquer violação da sua infância.

     A proteção dos direitos dos idosos, dos vulneráveis, dos portadores de deficiência e dos oprimidos é uma exigência religiosa e social que deve ser garantida e protegida através de legislações rigorosas e da aplicação das convenções internacionais a este respeito.

Com relação às religiões de matriz africana, o magistério eclesiástico manifesta na sua Constituição dogmática Lumen Gentium que Deus não está longe, já que Ele quem da vida, respiração e tudo o mais.   Quanto ao modo como a graça salvífica de Deus atinge as pessoas que não professam a fé cristã, a Decreto Canônico Ad Gentes diz que isso acontece por caminhos que são por Ele, Deus, conhecidos[2], mesmo que ainda não tenhamos notado bem as suas sutilezas. A Declaração Dominus Iesus reconhece que a teologia católica ainda se esforça por aprofundar a questão,  mas atesta que não há mais dúvida que “as diversas tradições religiosas contêm e oferecem elementos de religiosidade que procedem de Deus8 e que fazem parte de  quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões.”[3] A Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não cristãs,  assinada durante o Concílio Vaticano II[4]  é assertiva neste sentido:  “Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que dela derivam”.

Essa Declaração Apostólica assevera que “os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos.”

A fenomenologia é um recurso filosófico e antropológico investigativo para compreendermos então a presença da religião em todas as culturas desde que suas brumas imemoriais começam a se dissipar.  O be-a-bá que qualquer estudante de ciênciais sociais de primeiro período de faculdade aprende é que isso nada tem a ver com algum sentido de imaturidade intelectual e civilizacional.  Mas, se esta ou aquela manifestação religiosa não for uma questão de ser primitivo ou refratário à verdade, o que todas têm de essencial?  O núcleo fundamental da existência humana na abertura religiosa é a pesquisa horizontal; pesquisa de potência e encontro com uma Potência, que preencha a expectativa de presença e a sua invocação; o desejo e a capacidade do ser humano por expandir-se, produzir e conhecer.[5]

É neste contexto teológico que pensei ser oportuno lembrarmos a Santa Hildegarda Von Bingen, que viveu no sec. XII. onde hoje fica a Alemanha.  Mulher de múltiplos talentos, a começar que era escritora numa época que poucos homens eram e quase nenhuma mulher.  E também compositora de cantos gregorianos.  Teve uma importância enorme para o amadurecimento da teologia medieval. Embora fosse mística, ou seja, sua experiência religiosa fosse marcada por relatos de suas epifanias, seus textos primavam pela clareza e praticidade para com questões e problemas cotidianos. 

Descreveu sistematicamente plantas medicinais e nutritivas.  Em dois livros de medicina que escreveu, propôs métodos de cura com inúmeras plantas, a prática regular do jejum e orientações higiênico-dietéticas.  Chamava de “Maravilhas do Senhor” suas receitas terapêuticas.  Práticas que descreveu foram confirmadas pela ciência e são empregadas ainda hoje.  Especialistas atestam que ela tinha amplo domínio da melhor prática médica disponível em sua época, mas não se sabe como ela adquiriu esse conhecimento.  E ainda teve criatividade e inovou frequentemente com base nesse conhecimento.[6] 

Décima filha de uma família nobre, foi entregue aos cuidados da Igreja ainda criança. Como dízimo. Teve a sorte de ter a Santa Jutta por tutora, o que lhe deu condições para que seus talentos se manifestassem.  Ela mesma tinha muitas dúvidas sobre a qualidade de seus textos.  Ela contava que ouvia vozes que diziam o que ela deveria escrever e que ficava doente, quando não escrevia.  Então, ela acabava escrevendo.  Mas, teve a iniciativa de enviar seus textos para São Bernardo de Claraval.  Monge cisterciense que já à época era reconhecido como o mais influente religioso de seu tempo.  Quando leu os textos, São Bernardo os enviou ao Papa recomendando atenção ao que estava escrito.  O Papa escreveu a Santa Hildegarda não somente o reconhecimento das qualidades de seu texto, mas autorização para que ela tornasse públicas a suas opiniões e estudos.   Ela foi proclamada Doutora da Igreja Católica por Bento XVI[7]. 

Noto na estória de Santa Hildegarda um padrão que se repetiu em Ávila e também em Fátima.  O mesmo padrão paradoxal de escala manifesta na anunciação à Nossa Senhora: a plenitude da graça é encontrada na presença feminina, essa grandeza da fé menor.  O que é essa fé menor?  Na época de Santa Hildegarda, acontecia a Primeira Cruzada e o aparecimento dos reinos cristãos no oriente.  Surge a Ordem Templária e o esforço de guerra atrai a atenção da Igreja.  Neste momento, numa pequena comunidade que não tinha a menor importância estratégica, o Espírito Santo se manifestou com grande eloquência mística e com significados teológicos surpreendentes.  Isso tudo para uma mulher de vida muito simples e aparentemente irrelevante.  No caso de Fátima coisa parecida aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, só que, através de Nossa Senhora, a três crianças, sendo duas delas, meninas.  E no caso de Santa Teresa d´Avila, muito sangue estava sendo derramado nas guerras religiosas na esteira Reforma protestante e nos confrontos com o Império Otomano.  Em todos os casos, essa eloquência teológica, todo o seu caráter inventivo é envolvido de doçura e voltado ao cuidado e acolhimento hospitalar mais cotidiano e pacífico.  A tal pedra de arrimo que nos tempos de muita turbulência histórica e social, volta a ser desprezada. 

Santa Tereza certa feita disse às suas irmãs de convento que via o rosto de Cristo no fundo de uma panela.  Eu às vezes medito sobre o que fiz no meu dia e acabo chegando à conclusão que a coisa mais importante que fiz foi ter lavado as panelas sujas que serviram para preparar o jantar para a minha família. 

Não há modelo mais eloquente de boa aventurança do que essas mulheres cuja vida cotidiana frequentemente sequer é valorizada até pelos seus filhos.  Elas estão lá sempre com um prato de comida preparada, uma cama limpa, um remédio disponível para os que estão aflitos ou revoltados.  Ou cheios de razão frente às grandes disputas de seu tempo.  Se formos atentos, essas devoções maternais discretas, anônimas, são fonte de grande inspiração para todos nós e então não vai importar tanto assim se ouvem música gospel, ou se são filhas de santo. 

É com este sentido que entendo a palavra do Papa Bento XVI em chancela  ao magistério de Santa Hildegarda: “a descrição mais exata da criatura humana é a de um ser a caminho, homo viator.”  Um caminho experiencial. 



[1] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-francesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html

 [2] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html

[3]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html

[4] https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html

[5] file:///C:/Users/guilh/Downloads/8967-37162-1-PB.pdf

[6] https://www.fcm.unicamp.br/boletimfcm/mais_historia/redescoberta-da-medicina-natural-de-hildegarda-de-bingen-doutora-da-igreja-do-seculo

[7] https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_letters/documents/hf_ben-xvi_apl_20121007_ildegarda-bingen.html


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