sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Apresentação sobre hermenêutica no VI Congresso Continental de Direito Cooperativo. Montevideo, 18/11/2016.

O propósito desta apresentação é indagar pelas implicações de racionalidade nas relações de identidade e diferença que tensionam o fazer de uma justiça possível e que podem ser ilustradas no quiçá mais relevante julgamento da década passada em Tribunal brasileiro a respeito da tributação incidente sobre cooperativas.  Este julgamento se deu por causa de um litígio em que o último voto proferido foi memorável por um jogo de palavras entre pães, gatos, cooperativas e bancos.  É que o Ministro ocupou significativa parte de seu pronunciamento dissertando sobre gatos em seus contextos doméstico e arquetípico.  Isso para se conduzir à culminância de seu voto através das reminiscências de sua infância:  nas madrugadas frias, seu gato buscava conforto na cozinha.  Conclusão:  "Não por um gato dormir num forno quente que amanhece pão.  Cooperativa é cooperativa; banco é banco."  Importa questionar: o que estava em jogo e suscitou o então decano da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, diante da divergência entre seus pares sobre o tratamento jurídico adequado ao caso, a partir de uma narrativa, sintetizar seu voto numa formulação argumentativa A=A.B=B→A≠B ?[1]

Tanto mais relevante para o Direito Cooperativo se torna a indagação, quando a posição jurisprudencial uniformizada por aquele famoso julgamento, dez anos após, foi abalada por um outro julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal com repercussão geral sobre a mesma matéria de lei, no qual a singularidade das cooperativas face aos agentes de mercado foi colocada em xeque no que se refere aos seus significados operacionais.  O Min. Luiz Fux, presente em ambos os julgamentos, votou favoravelmente em ambas as teses opostas.  E como ele justificou isso? "Trago uma mudança de concepção (....) na gênese do cooperativismo havia realmente essa ideia de solidariedade, mas que já avançou e muito. (....)  Embora eu tenha achado muito sugestiva aquela afirmação (....) de que gato é gato, pão é pão; banco é banco e cooperativa é cooperativa, a verdade é que hoje há uma cortina de fumaça que não nos permite ver aquela velha cooperativa de outrora nas cooperativas de hoje". [2]

Para o que interessa à minha apresentação, do caso narrado, resta uma pergunta:  O que há de estrutural na orientação jurisprudencial?  A resposta proposta é esta: o imaginário acerca das cooperativas.
Na linguagem oral, uma palavra está sempre relacionada a seu sentido correspondente (alusão).  Uma vez que ela é pronunciada, ela atua não apenas como designação (significante) desse sentido (significado).  A palavra é a própria expressão do sentido.  A palavra e o sentido intencional se fundem na alusão.  Mas, se a palavra é escrita, ela se afasta dessa fusão.  Entre a palavra escrita e o sentido, aparece imediatamente uma autonomia da expressão.   Pois a palavra escrita não mais designa um sentido, mas designa signos.  A palavra escrita não estabelece uma relação imediata do tipo significante-significado.  Antes, estabelece uma relação significante-significante.  Isso quer dizer que um sentido intencional pode ou não estar presente na palavra escrita.  Outras vezes, há muitos sentidos possíveis.  Aliás, essa é a potência da palavra escrita, muito explorada pelos juízes e romancistas.
Pense na comunicação que se faz por mensagem de whatsapp®, e como é difícil identificar o tom da conversa. Por vezes, pode-se achar que a pessoa está sendo grosseira, mas ela está com pressa.  Por isso, os emoticons são ferramentas úteis numa linguagem empregada em redes sociais.
Talvez seja importante pontuar aqui: qualquer conduta humana já permite múltiplos sentidos. Só que todas as possibilidades já se apresentam na escrita: são suas leituras possíveis.  É preciso então não somente saber expressar, mas comunicar como que navegando por esses múltiplos sentidos, como se fossem rochedos para os quais vagas podem lançar sua fragata – é preciso ser como um velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar.  É preciso ser inequívoco na intenção expressa. É preciso ter algum domínio para deslizar sua intenção sobre as palavras escritas, porque elas são como o mar: têm sua correnteza, mas não têm cabelos onde se possa segurar.    

A constituição da sociedade cooperativa como objeto só pode aparecer nas relações de identidade e diferença; texto e contexto; percepção e comportamento.  O que se põe em questão é tanto a autossuficiência do dado, quanto a prioridade lógica e epistemológica do fatual sobre o possível.  O que se postula é  uma atividade constitutiva operante desde sempre.  O comportamento de uma coisa nos confrontos com outras coisas que constituem seu mundo circundante precisa ser pensado também em relação imediata aos corpos que percebem as relações entre as coisas.  E os confrontos entre as coisas percebidas e os corpos não são inteiramente explicitadas por efeitos de ações causais.  Sem o primado da consideração sincrônica, qualquer análise diacrônica[3] não encontra garantia para seu rigor[4].  Este é um sentido diacrítico[5] das madalenas de Marcel Proust com relação às literaturas jurídica e econômica que abordam mais comumente as cooperativas.


                "Quando se analisa o empreendimento cooperativo pode-se entender que há a necessidade de crescimento intrínseco dessas organizações em consequência da ´mão invisível do mercado´ e em razão da lógica econômica explicada e modelada pela economia neoclássica.
"Assim, percebe-se que cooperativas que se formaram como importantes coalizões de interesses em um mesmo grupo étnico, solidário e voluntário, com um forte código de ética, crescem economicamente impulsionadas pelo mercado e pela necessidade de geração de renda e riquezas, e nesta trajetória internalizam necessariamente a lógica econômica de maximização de resultados".
BIALOSKORSKI, Sigismundo. Economia e Gestão de Organizações Cooperativas


                "Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.  Mas, no mesmo instante em que aquele gole de envolta com as migalhas do bolo tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava extraordinário em mim.  Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa.  Esse prazer logo me torna indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo.  Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.  De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?  Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza.  De onde vinha?  Que significava?  Onde apreendê-la?  Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos que o primeiro.  É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida.  É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.  A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar inato a minha disposição, para  um esclarecimento decisivo.  Deponho a taça e volto-me para meu espírito.  É a ele que compete achar a verdade.  Mas, como?  Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá.  Explorar?  Não apenas explorar: criar.  Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz."
PROUST, Marcel.  No Caminho de Swann em Busca do Tempo Perdido.

São textos muito distintos em seus propósitos, mas trazem em comum algo: o tempo perdido.   O tempo, que parece perdido para sempre nos textos informativos que são usuais para os operadores de Direito Cooperativo, é esse mesmo tempo buscado pelo Proust. 
        A linguística, a psicologia e a antropologia, em meados do século passado, apontaram que significados não aparecem só pela análise dos encadeamentos das razões, impressões e vontades, mas, ao contrário e sobretudo, nas descontinuidades inconscientes.  Então, é na perda do tempo como descontinuidade na análise de ambos os textos que aparecerá a própria estrutura do tempo.  

Como Ricoeur postula, "o tempo se torna humano na medida em que ele está articulado de maneira narrativa; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que se esboça os traços da experiência temporal" (1994, p. 15).  Essa medida a que se refere Ricoeur porém demanda uma longa e difícil conversação entre a historiografia, a crítica literária e a filosofia fenomenológica (1994, pp. 111-131).  No que interessa ao ajustamento das cooperativas e dos dramas de seus cooperados afetados pelo que foi decidido sobre a tributação em plenários  do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal num intervalo de dez anos, o comportamento cooperativo no confronto com o empresarial se mostra como referência para a ordem econômica constitucional, cujas ações causais elas e eles estão submetidos.  Mas a cooperação precisa também ser investigada como comportamento em relação ao corpo percepiente, que não é uma coisa como as outras, mas a locanda das relações entre as coisas.  Nos confrontos com a coisa percebida, o corpo não se limita a explicitar uma ação causal.  Há uma função transcendental que unifica a multiplicidade das matérias sensoriais que se encontra numa relação de fundação recíproca com esse estrato material.  Se essa função constitui o elemento formal no interior da vivência, com o qual se apreende a cooperativa como unidade sintética do vivido; por outro lado sua percepção tem seu campo de aplicação nos conteúdos primários, constituintes do estrato material.  As cooperativas (texto) que Ministros dos tribunais superiores brasileiros percebem num determinado momento e de uma perspectiva espacial (contexto) já são desde sempre a contração de todas as perspectivas temporais e espaciais que já tiveram, que terão ou que poderiam ter delas.  Uma contração que é possível pelos corpos como campos fenomênicos.  E seus corpos não deduzem uma cooperativa dos seus perfis, mas percebem imediatamente estes perfis como perfis dela, articulações de um todo.  Se o corpo procede à exploração da multiplicidade dos perfis da cooperativa para captá-las na complexidade de suas relações funcionais com o ambiente e com os outros, não há mero espelhamento na sua percepção. 

        A cooperativa entre a normalidade e a normatividade se define tanto pelas condições exteriores da percepção quanto o percebido é dependente de um texto alusivo.  Daí as madalenas de Proust terem a ver (numa hipérbole[6]) com as cooperativas na ordem econômica constitucional: a possível fundação da ideia de normalidade e normatividade na qual a norma jurídica interpretada não é só uma sedimentação de um passado informado com vistas a um futuro projetado, mas diz uma também de uma narrativa sempre a vivenciar no interior de sua própria estruturação.




[1] REsp 591.298/MG e REsp 616.219/MG.  Sessão de julgamento em 27.10.2004.
[2] RE 598.085-RG  e RE 599.362-RG.  Sessão de julgamento em 05.11.2014
[3] a diacronia é pensada para o aparecimento das descontinuidades perceptíveis nas diferenças que são reveladas pela comparação entre estruturas, e não como esqueleto inteligível ou uma sequência causal, em todo caso, uma razão de caráter universal.
[4]  Se uma estrutura já carrega uma sistemática, qualquer modificação de um elemento já acarreta a modificação de todos os outros, de modo que a imprescindibilidade de um dado originário (no caso, a cooperativa) já é um problema de rigor epistemológico.  Não é a razão que está no foco, mas aquilo que escapa do discurso em qualquer análise temática.
[5] Por uma função diacrítica das línguas, um sinal gráfico acrescentado a uma letra ou uma entonação distinta de uma vogal introduz uma ênfase que modifica o sentido do que se declara (p. ex.: - pô, pai, pó pará!).  A diacriticidade interdita que um termo esteja sempre restrito a uma única nuance temática.  É o alusivo a chave que abre possibilidades de uma constelação temática.
[6] Figura de pensamento em que a intenção expressiva aparece num excesso da expressão empregada.  Por exemplo, o enunciado "penso, logo existo" (cogito, ergo sum) é demonstrado pela dúvida hiperbólica:  se Descartes duvida de tudo (mesmo daquilo que não duvida de fato), ainda permanece para todos uma certeza apodítica - a de que duvida.  

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Apresentação sobre o ato cooperativo no VI Congresso Continental de Direito Cooperativo em Montevideo, 16/11/2016

No Brasil, quando falamos de ato cooperativo, começamos a discutir incidências tributárias.  Isso tem acontecido há tanto tempo que passa despercebida a pergunta pelo enquadramento dele no Direito Civil desde a entrada em vigência do Código de 2002.  Só que, evidentemente, qualquer resposta consistente sobre a incidência tributária ao ato cooperativo passa pela sua compreensão como negócio jurídico no interior do Direito Obrigacional vigente. 
A unificação do Direito Obrigacional no Brasil, no corpo do Código Civil, foi concebida por uma equipe coordenada pelo Prof. Miguel Reale, sendo ele o autor da já muito estudada teoria tridimensional do Direito.  E é dele a indicação expressa de que as cooperativas foram mencionadas no Código Civil com o propósito de enquadramento nas linhas gerais de um Direito Obrigacional unificado. 

E o que está escrito no Código Civil?  Que todas as cooperativas, das maiores cooperativas do nosso agronegócio à menor cooperativa de catadores de material reciclável num aterro sanitário, são sociedades simples.  E como o Miguel Reale define uma sociedade simples? Como uma sociedade não empresária. 
Isso pode ser verdade para os produtores rurais da COAMO à sombra de seu parque industrial, quando a Aliança Cooperativa Internacional e a Organização das Cooperativas Brasileiras definem a sociedade cooperativa como uma empresa cooperativa?  E como então os Ministros do STF podem interpretar o comando constitucional para o adequado tratamento tributário ao chamado ato cooperativo?  Para que uma verdade a esse respeito apareça para todos, é preciso retomar o pensamento a partir de Miguel Reale.
Bom, vocês já devem estar se perguntando se a projeção dessas imagens é só decorativa, ou se tem alguma coisa a ver com que eu estou aqui falando.  Sim.  É ilustrativa.  Pois vou adotar, nesta exposição, um dogma presente nas imagens projetadas.  Fixarei uma plástica argumentativa em que se postula um equilíbrio relacional entre linhas que integram e cores que desagregam.  Como as cores primárias (vermelho, amarelo e azul) são absolutos materiais, são valores sensoriais.  
Aplicando o dogma à teoria tridimensional de Miguel Reale, assumo que as normas e os fatos, pelo caráter formal que suportam, tendem ao fechamento. E os valores são forças de segregação plástica.  Pois muito bem, tomando a cooperação como valor, posso então conceber um argumento denso acerca do ato cooperativo com uma expressão simples.
Feito esses parêntesis para matar eventual curiosidade sobre o propósito das imagens projetadas, vamos voltar ao tema desta mesa.  Se for incontornável examinar a tributação adequada a um negócio jurídico - o ato cooperativo – pelo seu enquadramento mais geral no Direito Privado, tal como vige no Brasil, a empresa cooperativa precisa “desaparecer”.  Porque, se não “desaparecer”, alguns julgamentos recentes havidos no Supremo Tribunal Federal, restarão incompreensíveis.
A cooperativa, em contraste com a sociedade empresária, lembra que as pessoas articulam alternativamente valores, conforme suas respectivas percepções e vivências e formulam diferentes projetos para a realização do bem comum.    Em que pese sua constituição como um valor atemporal e universal, a cooperação está sempre aberta a novos sentidos e significados para os quais a vivência nas cooperativas se apresenta como iniciação.
A empresa, como é fixada no Código Civil, está intimamente ligada à ideia de atividade habitual.  E existe uma diferença entre hábito e cultura. Hábito é uma coisa que fazemos com frequência, porque percebemos algum valor nisso, manifesto em satisfação, isto é, num sentimento de prazer ou de dever cumprido (mas, se for algo que fazemos com frequência e percebemos um desvalor nisso, será um vício e então sentiremos vergonha ou culpa).  Hábito e valor formam uma virtude. Uma cultura compartilha virtudes, tornando-as notáveis numa comunidade (internalizando nela a força dos hábitos comuns).
Como perceber o ato cooperativo numa cultura? Pelo hábito da cooperação. E para compreendermos o ato cooperativo, então é primordial diferenciá-lo dos negócios jurídicos habitualmente identificados com a empresa.
Um ato é cooperativo, porque há nele um valor determinante consoante uma hierarquia axiológica, tal como percebido pelos sentimentos e pelo qual se dá preferência a ele em relação a outros coexistentes na ordem econômica.  Trata-se de uma visão imediata e compartilhada do bem da sociedade, isto é, de acordos de vontade que se inclinam antes que ela venha produzir resultados econômicos, receber incentivos, ou ensejar sanções disciplinares. 
O que há de necessário, permanente, invariante e íntegro na cooperação como valor positivado no art. 146, III, c da Constituição Federal?  (1) uma operação patrimonial (consumo, produção, prestação de serviços, crédito etc.) como suporte, (2) mais de uma pessoa atuante, que exercitam uma preferência, (3) um ânimo de servidão de uma em relação à outra; e (4) reciprocidade em que ora uma serve a outra e ora vice-versa, tudo em proveito econômico comum a ambas. 
A cooperação então é (diz de) uma vivência afetiva em sua originalidade no cerne do ato de preferência constitutivo do que vem a ser cooperativo  -  vivência como uma iniciação para a descoberta dos sentidos para essa expressão – como encontro que mergulha a cooperação na temporalidade (seu aparecimento), mas que, como absoluto, não se dissolve no tempo.  Uma cooperação com a qual necessariamente pessoas exercitarão a democracia na gestão de suas atividades econômicas desempenhadas em comunhão, será gerada riqueza que circulará necessariamente na comunidade local onde está estabelecida a sociedade cooperativa economicamente ativa e resolverá ou minimizará ao menos os seus problemas comuns com a imperfeição de mercado e com a escassez de capital.  Sem isso, não há como pensar uma possibilidade realizável como um ato cooperativo.  Isto é, impossível pensar um negócio jurídico cooperativo de outro modo: não há como suprimir a cooperação como ato de preferência, sem destruir o ato cooperativo como um objeto do Direito Privado unificado.  
O sentido de servidão recíproca que há na cooperação realça a ausência de interesses patrimoniais opostos em suas operações e a autogestão exercida por quem pratica habitualmente atos cooperativos.


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A CARTA ABERTA AOS PROFESSORES DE MEU FILHO NO PEDRINHO


Permitam-me insistir um pouco mais sobre o Prof. Kantorek. 

Mas, antes é importante se descolar do contexto de sua época para olhar para porque, pela obra de Remarque, Kantorek ainda vive. Há na memória e na reflexão de Paul Bäumer : 
"Vejo-o ainda à minha frente, e lembro-me de como o seu olhar cintilava através dos óculos, quando, com a voz embargada, perguntava: 
― Vocês vão todos, não é, companheiros? 

Esses educadores têm sempre os seus sentimentos prontos, na ponta da língua, e os ficam espalhando a todo instante, sob a forma de lições." 
Também é importante lembrar que muitos pais concordavam com Kantorek. O professor não era mal intencionado. Acreditava muito em suas próprias convicções e pensava estar fazendo o melhor pelos seus alunos. Quem poderia dizer que ele, e os pais, não tinham razão? 

Talvez eu perceba melhor o que tudo isso quer dizer, porque, como toda família de alemães, também guardo na lembrança um Bäumer bem próximo. Sim, meu avô recebeu sua cruz de ferro. Jovem e bravo. E lembro-me de sua casa, quando era criança e ele, um ancião. Sempre silenciosa e envolta na penumbra. Nas memórias das famílias alemãs, esse silêncio está muito presente e ainda hoje é lembrado.

 Meu avô lutou em trincheira por quatro anos. Um sobrevivente. E viveu uma vida de luto. O livro de Remarque ganhou uma transposição que se tornou um clássico do cinema. Seu fim é uma síntese do perigo de se incentivar jovens para a luta: Bäumer perdeu sua vida ao tocar uma borboleta.

Por que insisto com Nada de Novo no Front? Parece um ambiente oposto do que acontece no CPII. Mas há algo comum, na realidade. Estamos submetendo as narrativas de nossos filhos aos encadeamentos da razão. 

Trocando em miúdo, quando estimulamos nossos filhos a viverem no CPII seus dias de sonho em Woodstock (a utopia), não poderemos evitar que vivam as noites infernais de Altamont (a distopia): foi sob o olhar impotente de Mick Jagger que aconteceu o que John Lennon declarará: "O sonho acabou". 














O que quero dizer? Construímos um futuro melhor para nossas crianças, quando "nada" acontece. Faz "toda" diferença. Num cotidiano pacato de nossas casas e na regularidade da vida escolar, damos aos nossos filhos uma memória afetiva encantadora, na estabilidade das suas relações face-a-face. 

Mas, o que estamos fazendo? Jogando o CPII, e nossos filhos junto, no epicentro dos confrontos políticos de ocasião. Somos pais, não deuses! Não temos poder para livrar nossos filhos de desfechos trágicos, quando o sonho acabar. E, somos adultos! Nossos filhos ainda não sabem, mas nós já aprendemos que os sonhos são sonhos, porque acabam.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

CARTA ABERTA AOS PROFESSORES DE MEU FILHO NO PEDRINHO

Prezados Professores!


Não questiono as razões da greve, mas os convido a lembrarem de algumas das mais belas páginas da literatura alemã: as desventuras de Paul Bäumer em Nada de Novo no Front.  Por que tenho tido a impressão de que, nesses dias de ocupação estudantil dos campi, o Prof. Kantorek ainda leciona no CPII? Ele se enchia de razão e assim perdeu seus alunos nos descaminhos da intemperança.

Quero lhes pedir que reflitam sobre a interrupção do processo pedagógico do primeiro ciclo do ensino fundamental. Chamo-lhes à responsabilidade objetiva na continuidade da assistência aos seus alunos como usuários do serviço público essencial de educação. Responsabilidade objetiva aqui quer dizer que meu filho Bernardo, de 10 anos e que lhes confiei como aluno na esperança de que ele teria os melhores professores que poderia ter, não pode ser objetivado numa pauta deliberativa de seu sindicato.  

Peço que não paralisem as atividades escolares no Pedrinho.  Desde já, grato pela compreensão de vocês.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Uma carta do pai



Bê, meu filho:

Lembra da estória de Pí?  Sim, daquele filme em que o garoto indiano perdeu os pais no navio que afundou.  Aí, ele dividiu um barco com um tigre... lembra?


É assim.  Às vezes, isso acontece.  A gente perde muito na vida e nem é porque fizemos alguma coisa errada.  Nem precisa acontecer um acidente.  Ou uma guerra.  Ou um apocalipse zumbi.  Pode ser uma grande injustiça.  E a gente se sente esmagado, triste, abandonado, revoltado.  E se pergunta “por que?”.

De tudo que te dei até hoje, as pizzas e os sushis, escola, meu carinho e meus beijos... de tudo mesmo, o que é mais importante?

O mais importante é uma estória que eu faço questão que te contem.  A mesma estória que ouvi de quem viveu antes de mim e sua mãe. E que agora é você quem a escuta.  A estória de Deus, que morreu por amor a todos nós.  E que esse amor é bom, belo e verdadeiro, porque só o amor tudo vence.  Vence a própria morte e a injustiça. Esta é a graça da estória: só quando tudo se perde, descobrimos que nem tudo se perdeu.  O mais bonito, o melhor e o mais verdadeiro de tudo, ficou.  Ficou bem juntinho de você. 

Pois é, garoto.  Tudo isso num pedacinho de pão molhado no vinho. Parece até mentira.  Deus tem algum senso de humor, pelo visto.

Agora, é sério.  Eu posso morrer.  Todo mundo morre um dia.  E mesmo antes de morrer, posso perder minha saúde, meu juízo, meu dinheiro...  Isso pode acontecer com qualquer um.  Mas, essa estória, que agora também será sua, ninguém pode mais tirar de você.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Yom Kippur

Na intenção da celebração do Yom Kippur, transcrevo a palestra do amigo Abraham dada no I seminário Estado Laico e Liberdade Religiosa, que ocorreu dia 5/10 na FND.



Boa noite a todos os presentes.

Agradeço o convite que me foi dirigido pelo Dr. Paulo Horn, Presidente da Associação dos Antigos Alunos da FND da UFRJ, através de quem saúdo todos os membros desta mesa assim como desta prestigiosa Associação e Universidade.

Agradeço o meu novo Amigo Guilherme Krueger, moderador desta mesa. Agradeço a presença de todos e todas neste encontro, especialmente organizado para abordarmos um tema que, cada vez mais, vem ocupando espaço central no noticiário e nas imagens de nossos televisores. Nos defrontando tanto com notícias alegres, notícias positivas, noticias de alento e de esperança no ser humano, em sua sociedade e país, mas, também, por outro lado nos expõe a cenas que nos faz crer ser difícil de acreditar que ainda são possíveis em plena segunda década do século XXI.

Hoje, é 05 de outubro de 2016, e 03 do mês de Tishrei de 5777. O primeiro mês do calendário lunar judaico. Acabamos de celebrar, há 3 dias atrás o inicio do nosso novo ano Judaico. Como a tradição nos ensina, estamos nos 10 primeiros dias dedicados à nossa retrospecção e avaliarmos o que fizemos de bem e o que fizemos de errado e do que nos arrependemos.  No próximo dia 12 de outubro, ou 10 do mês de Tishrei seremos julgados pelos nossos atos por D’us e ninguém mais, no dia do Perdão, dia do Yom Kippur.

Assim, vir nesta noite, abordar o tema de Liberdade Religiosa em face do Estado Laico é um tema muito próprio, também para a ocasião do Calendário Judaico. Pois nos leva a pensar e considerar. Avaliar, entender e, se me permitirem até a sugerir uma ação que me parece ser muito adequada para o propósito deste encontro.

Primeiramente, gostaria de salientar que não sou um advogado. Sou um engenheiro … pois é, ninguém é perfeito …  Assim, fico a alguma distancia das especificidades das leis e de seus desdobramentos. Mas como cidadão e como membro da Associação Beneficente e Cultural B’nai B’rith, creio que posso abordar esta relevante questão do Angulo do Direito e Dever Humano. B’nai B’rith quer dizer FILHOS DA ALIANÇA, lembrando a aliança de D’us com Abraão ao estabelecer a crença do monoteísmo ético.

A B’nai B’rith foi fundada em 1843, na cidade de Nova York, Estados Unidos, por 12 jovens judeus de origem alemã e que viviam na confusa sociedade novaiorquina da época. Onde proliferavam grupos de etnias , religiões e origens distintas. Com influencia dos valores universais do judaismo, e uma referencia à ordem da Maçonaria, fundam uma organização que tinha como objetivo ser um forum onde todas as diferentes vertentes que compunham e ainda compõem a comunidade Judaica pudessem encontrar-se, discutir as suas idéias, suas narrativas e atuassem para o bem da sociedade. Sua primeira atividade foi a criação de um fundo de apoio aos órfãos, viúvas e idosos.

O simbolo da nossa entidade é o candelabro de 7 braços, o mesmo que s registros históricos e bíblicos, indicam o seu uso no Templo Sagrado de Jerusalém. A cada braço, na B’nai B’rith damos um valor universal judaico, que cito : Beneficência, Harmonia, Fraternidade, Luz, Paz, Justiça e Verdade.

A entidade cresceu, expandiu-se e hoje tem presença em cerca de 54 países, é membro, como ONG, desde a fundação da Organização das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e outros. Defendemos os Direitos Humanos, a democracia, contra a discriminação, o desrespeito e, totalmente a favor de uma continua educação multidisciplinar, livre, humana e ampla.

Presente no Brasil, desde 1932 e ininterruptamente, no Rio de Janeiro, desde 1934. Assim, apesar de não ser advogado, assim como uma boa parte dos membros de nossa entidade, no Brasil, a questão dos Direitos Humanos não pode ser entendida, promovida e praticada senão podemos conviver num ambiente de Liberdade democrática, de Liberdade de Expressão, e certamente, não poderia deixar de ter, a Liberdade Religiosa.

Liberdade religiosa deriva da liberdade de pensamento, uma vez que, quando é exteriorizada torna-se uma forma de manifestação do pensamento e principalmente, do sentimento. Ela compreende três outras liberdades: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. Abrange a liberdade de escolha da religião, liberdade de mudar de religião, liberdade de não aderir a
religião alguma e liberdade de ser ateu. A liberdade de culto, abrange a liberdade de orar e a de praticar atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público.

E, principalmente, respeitar a manifestação do outro. Outro que compõe a sociedade que vive, o povo do país. A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelos 58 estados membros conjunto das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot em Paris, (França), definia a liberdade de religião e de opinião no seu artigo 18, citando que "Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião".

A Constituição de nosso país, Brasil promulgada em 1988, no seu artigo 5o. inciso VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Ela deixa muito claro que a Liberdade religiosa e suas múltiplas formas de manifestação podem ser praticadas em convivência harmoniosa com todas as manifestações dos cidadãos e cidadãs.

Embora a nossa Constituição declara termos um governo laico, agradece a D’us pela sua condução na elaboração de nossa Carta Magna. Observo que a Liberdade Religiosa de forma ampla apenas consta, pela primeira vez na Constituição de 1988. A anterior, de 1924, permitia a prática das religiões, mas em ambiente doméstico.

Dizer que, em nosso país, Brasil, temos a Liberdade Religiosa ampla, é faltar com a verdade. Temos sim a legalidade, dentro de limites de resoluções pétreas, o direito de praticar a nossa religião. Temos sim a Liberdade de construir os nossos patrimônios religiosos, como templos, sinagogas, igrejas, catedrais e outros espaços, mas há algo que faltamos. Pois sermos um estado Laico não nos assegura a real Liberdade Religiosa. Não nos assegura o respeito a uma convivência harmoniosa entre as diferentes manifestações. E temos visto momentos de grande intolerância e desrespeito entre grupos de matriz Africana, notadamente, e outros grupos religiosos. Temos visto uma atuação com desconfiança contra Judeus. Temos convivido com um novo antissemitismo disfarçado de antissionismo, de anti-Israel.

A Europa, influenciada pela pressão belicosa socialmente, de grupos fundamentalistas muçulmanos, tem acordado o seu antissemitismo e convivido com ações de discriminação que relembramos praticados há mais de cem anos de ações que levaram, de 1933 a 1945, à política da raça pura, até lembrando a lei da pureza do sangue promovida pela inquisição ibérica, nos quase 300 anos a partir do final do século XV.

A política da raça pura, a Ariana, levou à morte, de forma organizada, determinada e até, pasmem, científica, milhões de crianças, jovens, adultos de todas as origens territoriais onde os exércitos nazistas passassem a dominar. Matou 6 milhões de Judeus apenas por serem Judeus, centenas de milhares de ciganos, centena de milhar de testemunhas de Jeová e dezena de milhares de outros, inclusive padres católicos que não aceitaram a política do estado nazista.

Vemos na Europa, em paises, onde o Estado é declaradamente laico, manifestações e ações de discriminação, inclusive física, contra grupos minoritários. E, o Estado, dito laico e universal, fica impossibilitado de tomar ações determinantes e contra pois sente-se limitado pelo Direito de Expressão, pela Liberdade de pensar.

No entanto, creio que devemos sempre lembrar que antes do Direito vem o DEVER. No judaísmo, o DEVER vem primeiro. Para você ter o seu DIREITO, voce precisa cumprir o seu DEVER. É exatamente neste ponto que o Estado Democrático deve ou melhor deveria ser mais definitivo.

Não é necessário ser um Estado Laico para que a população consiga ter a sua prática de Liberdade religiosa assegurada. Há exemplos de países cujos governos têm uma posição religiosa declarada, como Israel, Dinamarca, Finlândia, Espanha, Argentina, Polônia e tantos outros.  O que importa é o Estado ser democrático no sentido amplo da definição. Pois ser democrático não é apenas ter eleições, mas ter Liberdade e interdependência entre os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Além de ter atitudes e leis que protegem todos os cidadãos que compõem o mosaico social, tanto grupos majoritários como minoritários. Numa verdadeira democracia, os deveres e direitos de todos são iguais perante a lei. Seja maioria ou minoria.  No Brasil, somos oficialmente, um pais de governo laico, mas que tem o crucifixo na maioria das salas dos legislativos e judiciários, independente da religião dos que o compõem. Temos ainda sim, discriminação, temos ainda sim a prática de segregações entre grupos de todas as naturezas, sejam religiosas, étnicas, sociais ou politicas. 

No entanto, dizem que vivemos num ambiente de discriminação tolerante.  Uma figura diferente nas definições das estruturas sociais existentes. Mas, temos que atuar para evitar que esta tolerância se transforme. Pois tudo vai indo bem, quando as coisas estão aceitáveis. Mas, tudo pode mudar. E o que devemos e podemos fazer. A mais duradoura, eficiente, de baixo custo e de simples implementação é a educação. Apenas, às vezes, leva um pouco mais de tempo para ter os seus efeitos percebidos. O desconhecimento, a ignorância, o ouvir dizer de fonte intencional são as principais formas de eternizar e até ampliar o desconforto da convivência. Por isso, educar a todos os jovens, sem discriminação de religião, etnia, cor, preferência social ou outra, a conhecer de forma transparente, honesta e harmoniosa o outro. Visitando o outro, ouvindo o outro, os outros.

Desta forma poderemos ter uma verdadeira chance de superarmos as nossas eventuais dificuldades de harmonia social. Pois de nada adianta apenas termos e fazermos e aperfeiçoarmos LEIS, procedimentos, regulamentos, etc,,, etc …. Se a população tem enraizada preconceitos oriundos do desconhecimento e da distorção da fértil imaginação de alguns.

Assim, meus caros amigos advogados presentes. Ajudem para que possamos educar os nossos filhos de forma ampla, honesta, transparente, democrática e saudável.

Grato pela oportunidade e espero que um engenheiro, preocupado e ativista dos Direitos Humanos e preocupado com o futuro de nossos cidadãos e país, possa ter contribuído com esta vossa honrosa iniciativa,

Shalom,

Abraham Goldstein

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

I Seminário Estado Laico e Liberdade Religiosa


(Fala de abertura do painel que mediei.)

Boa tarde!  Chamo-me Guilherme Krueger e sou um antigo aluno desta Faculdade.  Em nome do Presidente de nossa associação, meu querido amigo Paulo Horn, contemporâneo de movimento estudantil, com quem tive a honra de ser diretor no CACO, saúdo a todos os presentes.  E porque o CACO integra a minha biografia, eu peço licença para cumprimentar os alunos desta Casa nas pessoas do atuais diretores do Centro Acadêmica.  Saúdo o Diretor Flavio e dirijo essa saudação também aos professores e funcionários da Faculdade.  Por fim, cumprimento meus amigos desta mesa, Renato, Jorge e Abraham, agradecendo-lhes sinceramente a resposta presente ao chamado para esta nossa conversa aqui.

Peço que atentem que a termo chave para esta mesa é “em face de”, se considerarmos em cotejo o termo chave da mesa seguinte: “mecanismos”.  A mesa que nos seguirá tem um objeto claro:  a faticidade das políticas públicas de contenção e repressão à intolerância religiosa.  Mas, esta mesa aqui tem clara uma relação pessoal, um face-a-face: a possibilidade de coexistência dos símbolos, das narrativas, das linguagens e dos fundamentos religiosos no espaço público.  Será que a afirmação do Estado Democrático de Direito passará sempre pela  retração da vivência religiosa à vida privada?  O espaço democrático exclui o espaço teocrático?  Essas perguntas remetem ao imaginário de terror evocado em Paris pelo Estado Islâmico.  Evidência de uma obviedade que pode ser posta em perspectiva se eu convidar a todos para pensarem um pouco na experiência contemporânea da cidade de Roma.  Roma não é somente a capital do Estado italiano, mas, em seu seio acolhe, nada menos do que um outro Estado - o Estado do Vaticano.  E não é outro Estado democrático.  Sim, um Estado teocrático.  E  Roma, tal como ela é, contradiz a evidência de necessidade potente de conflagração e opressão na inarredável presença não só ostensiva, mas institucional da religião no espaço da cidadania por excelência: a cidade.  A cidade de Roma hoje retoma uma antiga expressão e o relança com um novo significado: a pax romana.  

Eu já me alonguei bastante nessa introdução e deixo a palavra ao meu amigo Renato, porque sei que ele acabou de voltar de lá.  Renato...

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Por que o dia de Corpus Christi é feriado?

Porque, em linguagem metafisica, o corpo eucarístico remete ao paradoxo entre pessoa e mundo.  O corpo encarnado evidencia que nada nos separa do mundo, mas paradoxalmente entre pessoa e mundo há um abismo:  animais são mundo, mas só pessoas não se confundem com o mundo - pessoas têm potência para se perceberem destacadas do mundo e isso acontece ao atribuírem um sentido textual para si mesmas, para outrem e para as coisas além da pura e simples vivência - a sobrevivência e a sucumbência  como sentidos de transitoriedade: conhecer, lembrar e imaginar como saber viver e morrer.  O corpo neste texto é expressão de uma ambiguidade em que ser humano é nebuloso. Tem (e não tem) corpo; é (e não é) corpo. Nem a consciência é sempre ser; nem o corpo é sempre morada do ser. Na percepção do comportamento humano com a abertura a plúrimos temas entre ser e ter corpo, este emerge na realização do real. 

Qualquer narrativa dramática encontra aqui o seu sentido originário e ela culmina numa perplexidade: a justiça perfeita não se mostra sem que antes se mostre a angústia extrema, que se expressa num brado de abandono. A justiça perfeita assume para si todo o sofrimento, toda a necessidade de ajuda da humanidade inteira.    Assim, não é que haja nada além do Direito; há alguém cujo sofrimento é motor pela empatia a atrair à justiça o Direito por reflexão. 

Se para o pensamento, tudo deixa vestígios do Nada, o acontecimento ético é o aparecimento do Outro que nada deixa para o Nada ao ocupar toda a vazies existencial.  O vestígio então é anúncio de alteridade.  Só na ausência impossível de si, reconhece-se totalmente o Outro, o que torna carne a visão plena do invisível.  


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Cooperativas e Madalenas

Abaixo, link para a Revista Brasileira de Educação e Cultura, na qual, em seu número XII, de jul-dez 2015, publiquei o artigo Cooperativas e Madalenas.


http://periodicos.cesg.edu.br/index.php/educacaoecultura/article/view/220/309





A constituição da sociedade cooperativa como objeto só pode aparecer nas relações de identidade e diferença; texto e contexto; percepção e comportamento. O que se põe em questão é tanto a autossuficiência do dado, quanto a prioridade lógica e epistemológica do fatual sobre o possível. O que se postula é uma atividade constitutiva operante desde sempre. O comportamento de uma coisa nos confrontos com outras coisas que constituem seu mundo circundante precisa ser pensado também em relação imediata aos corpos que percebem as relações entre as coisas. E os confrontos entre as coisas percebidas e os corpos não são inteiramente explicitadas por efeitos de ações causais. Sem o primado da consideração sincrônica, qualquer análise diacrônica não encontra garantia para seu rigor. Este é um sentido diacrítico das madalenas de Marcel Proust com relação à literatura jurídica e econômica que abordam as cooperativas. Apresentando a diferença nos julgamentos ocorridos num intervalo de 10 anos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre a mesma matéria de Direito Tributário aplicada às sociedades cooperativas, o artigo recorre aos conceitos de empatia proposto por Max Scheler, mimese na dramaturgia clássica e o tu em Martin Buber. Mesmo reconhecendo que as cooperativas sejam um meio sustentável para a felicidade, a ética utilitarista presente nos argumentos usuais a esse respeito é limitada para uma resposta fenomenológica ao problema implícito de identidade nos julgamentos ocorridos nos Tribunais.