No
Brasil, quando falamos de ato cooperativo, começamos a discutir incidências
tributárias. Isso tem acontecido há
tanto tempo que passa despercebida a pergunta pelo enquadramento dele no
Direito Civil desde a entrada em vigência do Código de 2002. Só que, evidentemente, qualquer resposta
consistente sobre a incidência tributária ao ato cooperativo passa pela sua
compreensão como negócio jurídico no interior do Direito Obrigacional
vigente.
A
unificação do Direito Obrigacional no Brasil, no corpo do Código Civil, foi
concebida por uma equipe coordenada pelo Prof. Miguel Reale, sendo ele o autor
da já muito estudada teoria tridimensional do Direito. E é dele a indicação expressa de que as
cooperativas foram mencionadas no Código Civil com o propósito de enquadramento
nas linhas gerais de um Direito Obrigacional unificado.
E
o que está escrito no Código Civil? Que
todas as cooperativas, das maiores cooperativas do nosso agronegócio à menor
cooperativa de catadores de material reciclável num aterro sanitário, são
sociedades simples. E como o Miguel
Reale define uma sociedade simples? Como uma sociedade não empresária.
Isso
pode ser verdade para os produtores rurais da COAMO à sombra de seu parque
industrial, quando a Aliança Cooperativa Internacional e a Organização das
Cooperativas Brasileiras definem a sociedade cooperativa como uma empresa
cooperativa? E como então os Ministros
do STF podem interpretar o comando constitucional para o adequado tratamento
tributário ao chamado ato cooperativo?
Para que uma verdade a esse respeito apareça para todos, é preciso
retomar o pensamento a partir de Miguel Reale.
Bom,
vocês já devem estar se perguntando se a projeção dessas imagens é só
decorativa, ou se tem alguma coisa a ver com que eu estou aqui falando. Sim. É
ilustrativa. Pois vou adotar, nesta
exposição, um dogma presente nas imagens projetadas. Fixarei uma plástica argumentativa em que se
postula um equilíbrio relacional entre linhas que integram e cores que
desagregam. Como as cores primárias
(vermelho, amarelo e azul) são absolutos materiais, são valores sensoriais.
Aplicando
o dogma à teoria tridimensional de Miguel Reale, assumo que as normas e os
fatos, pelo caráter formal que suportam, tendem ao fechamento. E os valores são
forças de segregação plástica. Pois
muito bem, tomando a cooperação como valor, posso então conceber um argumento
denso acerca do ato cooperativo com uma expressão simples.
Feito
esses parêntesis para matar eventual curiosidade sobre o propósito das imagens
projetadas, vamos voltar ao tema desta mesa.
Se for incontornável examinar a tributação adequada a um negócio
jurídico - o ato cooperativo – pelo seu enquadramento mais geral no Direito
Privado, tal como vige no Brasil, a empresa cooperativa precisa
“desaparecer”. Porque, se não
“desaparecer”, alguns julgamentos recentes havidos no Supremo Tribunal Federal,
restarão incompreensíveis.
A
cooperativa, em contraste com a sociedade empresária, lembra que as pessoas
articulam alternativamente valores, conforme suas respectivas percepções e
vivências e formulam diferentes projetos para a realização do bem comum. Em que pese sua constituição como um valor
atemporal e universal, a cooperação está sempre aberta a novos sentidos e
significados para os quais a vivência nas cooperativas se apresenta como
iniciação.
A
empresa, como é fixada no Código Civil, está intimamente ligada à ideia de
atividade habitual. E existe uma
diferença entre hábito e cultura. Hábito é uma coisa que fazemos com
frequência, porque percebemos algum valor nisso, manifesto em satisfação, isto
é, num sentimento de prazer ou de dever cumprido (mas, se for algo que fazemos
com frequência e percebemos um desvalor nisso, será um vício e então sentiremos
vergonha ou culpa). Hábito e valor
formam uma virtude. Uma cultura compartilha virtudes, tornando-as notáveis numa
comunidade (internalizando nela a força dos hábitos comuns).
Como
perceber o ato cooperativo numa cultura? Pelo hábito da cooperação. E para
compreendermos o ato cooperativo, então é primordial diferenciá-lo dos negócios
jurídicos habitualmente identificados com a empresa.
Um
ato é cooperativo, porque há nele um valor determinante consoante uma
hierarquia axiológica, tal como percebido pelos sentimentos e pelo qual se dá
preferência a ele em relação a outros coexistentes na ordem econômica. Trata-se de uma visão imediata e
compartilhada do bem da sociedade, isto é, de acordos de vontade que se
inclinam antes que ela venha produzir resultados econômicos, receber
incentivos, ou ensejar sanções disciplinares.
O
que há de necessário, permanente, invariante e íntegro na cooperação como valor
positivado no art. 146, III, c da Constituição Federal? (1) uma operação patrimonial (consumo,
produção, prestação de serviços, crédito etc.) como suporte, (2) mais de uma
pessoa atuante, que exercitam uma preferência, (3) um ânimo de servidão de uma
em relação à outra; e (4) reciprocidade em que ora uma serve a outra e ora
vice-versa, tudo em proveito econômico comum a ambas.
A
cooperação então é (diz de) uma vivência afetiva em sua originalidade no cerne
do ato de preferência constitutivo do que vem a ser cooperativo - vivência como uma iniciação para a descoberta
dos sentidos para essa expressão – como encontro que mergulha a cooperação na
temporalidade (seu aparecimento), mas que, como absoluto, não se dissolve no
tempo. Uma cooperação com a qual
necessariamente pessoas exercitarão a democracia na gestão de suas atividades
econômicas desempenhadas em comunhão, será gerada riqueza que circulará
necessariamente na comunidade local onde está estabelecida a sociedade
cooperativa economicamente ativa e resolverá ou minimizará ao menos os seus
problemas comuns com a imperfeição de mercado e com a escassez de capital. Sem isso, não há como pensar uma
possibilidade realizável como um ato cooperativo. Isto é, impossível pensar um negócio jurídico
cooperativo de outro modo: não há como suprimir a cooperação como ato de
preferência, sem destruir o ato cooperativo como um objeto do Direito Privado
unificado.
O sentido de servidão recíproca que há na cooperação
realça a ausência de interesses patrimoniais opostos em suas operações e a
autogestão exercida por quem pratica habitualmente atos cooperativos.
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