O
propósito desta apresentação é indagar pelas implicações de racionalidade nas relações
de identidade e diferença que tensionam o fazer de uma justiça possível e que
podem ser ilustradas no quiçá mais relevante julgamento da década passada em
Tribunal brasileiro a respeito da tributação incidente sobre cooperativas. Este julgamento se deu por causa de um
litígio em que o último voto proferido foi memorável por um jogo de palavras
entre pães, gatos, cooperativas e bancos.
É que o Ministro ocupou significativa parte de seu pronunciamento
dissertando sobre gatos em seus contextos doméstico e arquetípico. Isso para se conduzir à culminância de seu
voto através das reminiscências de sua infância: nas madrugadas frias, seu gato buscava
conforto na cozinha. Conclusão: "Não
por um gato dormir num forno quente que amanhece pão. Cooperativa é cooperativa; banco é
banco." Importa questionar: o
que estava em jogo e suscitou o então decano da 1ª Seção do Superior Tribunal
de Justiça, diante da divergência entre seus pares sobre o tratamento jurídico
adequado ao caso, a partir de uma narrativa, sintetizar seu voto numa
formulação argumentativa A=A.B=B→A≠B ?[1]
Tanto mais relevante para o Direito Cooperativo se torna a
indagação, quando a posição jurisprudencial uniformizada por aquele famoso
julgamento, dez anos após, foi abalada por um outro julgamento no plenário do
Supremo Tribunal Federal com repercussão geral sobre a mesma matéria de lei, no
qual a singularidade das cooperativas face aos agentes de mercado foi colocada
em xeque no que se refere aos seus significados operacionais. O Min. Luiz
Fux, presente em ambos os julgamentos, votou favoravelmente em ambas as teses
opostas. E como ele justificou isso? "Trago uma mudança de
concepção (....) na gênese do cooperativismo havia realmente essa ideia de
solidariedade, mas que já avançou e muito. (....) Embora eu tenha achado
muito sugestiva aquela afirmação (....) de que gato é gato, pão é pão; banco é
banco e cooperativa é cooperativa, a verdade é que hoje há uma cortina de
fumaça que não nos permite ver aquela velha cooperativa de outrora nas
cooperativas de hoje". [2]
Para o que interessa à minha apresentação, do caso narrado, resta uma pergunta: O que há de estrutural na orientação
jurisprudencial? A resposta proposta é
esta: o imaginário acerca das cooperativas.
Na linguagem oral,
uma palavra está sempre relacionada a seu sentido correspondente (alusão). Uma vez que ela é pronunciada, ela atua não
apenas como designação (significante) desse sentido (significado). A palavra é a própria expressão do
sentido. A palavra e o sentido
intencional se fundem na alusão. Mas, se
a palavra é escrita, ela se afasta dessa fusão.
Entre a palavra escrita e o sentido, aparece imediatamente uma autonomia
da expressão. Pois a palavra escrita
não mais designa um sentido, mas designa signos. A palavra escrita não estabelece uma relação
imediata do tipo significante-significado.
Antes, estabelece uma relação significante-significante. Isso quer dizer que um sentido intencional
pode ou não estar presente na palavra escrita.
Outras vezes, há muitos sentidos possíveis. Aliás, essa é a potência da palavra escrita,
muito explorada pelos juízes e romancistas.
Pense na comunicação
que se faz por mensagem de whatsapp®,
e como é difícil identificar o tom da conversa. Por vezes, pode-se achar que a pessoa está sendo grosseira, mas
ela está com pressa. Por isso, os emoticons são ferramentas úteis numa
linguagem empregada em redes sociais.
Talvez seja
importante pontuar aqui: qualquer conduta humana já permite múltiplos sentidos.
Só que todas as possibilidades já se apresentam na escrita: são suas leituras
possíveis. É preciso então não somente
saber expressar, mas comunicar como que navegando por esses múltiplos sentidos,
como se fossem rochedos para os quais vagas podem lançar sua fragata – é
preciso ser como um velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco
devagar. É preciso ser inequívoco na
intenção expressa. É preciso ter algum domínio para deslizar sua intenção sobre
as palavras escritas, porque elas são como o mar: têm sua correnteza, mas não
têm cabelos onde se possa segurar.
A
constituição da sociedade cooperativa como objeto só pode aparecer nas relações
de identidade e diferença; texto e contexto; percepção e comportamento. O que se põe em questão é tanto a
autossuficiência do dado, quanto a prioridade lógica e epistemológica do fatual
sobre o possível. O que se postula é uma atividade constitutiva operante desde
sempre. O comportamento de uma coisa nos
confrontos com outras coisas que constituem seu mundo circundante precisa ser
pensado também em relação imediata aos corpos que percebem as relações entre as
coisas. E os confrontos entre as coisas
percebidas e os corpos não são inteiramente explicitadas por efeitos de ações
causais. Sem o primado da consideração
sincrônica, qualquer análise diacrônica[3] não encontra garantia para
seu rigor[4]. Este é um sentido diacrítico[5] das madalenas de Marcel
Proust com relação às literaturas jurídica e econômica que abordam mais
comumente as cooperativas.
"Quando se analisa o
empreendimento cooperativo pode-se entender que há a necessidade de crescimento
intrínseco dessas organizações em consequência da ´mão invisível do mercado´ e
em razão da lógica econômica explicada e modelada pela economia neoclássica.
"Assim, percebe-se que
cooperativas que se formaram como importantes coalizões de interesses em um
mesmo grupo étnico, solidário e voluntário, com um forte código de ética, crescem
economicamente impulsionadas pelo mercado e pela necessidade de geração de
renda e riquezas, e nesta trajetória internalizam necessariamente a lógica
econômica de maximização de resultados".
BIALOSKORSKI,
Sigismundo. Economia e Gestão de
Organizações Cooperativas
"Em breve, maquinalmente,
acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia sombrio como o
primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço
de madalena. Mas, no mesmo instante em
que aquele gole de envolta com as migalhas do bolo tocou meu paladar,
estremeci, atento ao que se passava extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem
noção de sua causa. Esse prazer logo me
torna indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres,
ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa
essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente,
mortal. De onde me teria vindo aquela
poderosa alegria? Senti que estava
ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não
devia ser da mesma natureza. De onde
vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que me traz um pouco
menos que o primeiro. É tempo de parar,
parece que está diminuindo a virtude da bebida.
É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só
o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse
mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe
daqui a um instante e encontrar inato a minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu
espírito. É a ele que compete achar a
verdade. Mas, como? Grave incerteza, todas as vezes em que o
espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao
mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe
servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não
existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz."
PROUST,
Marcel. No Caminho de Swann em Busca do Tempo Perdido.
São
textos muito distintos em seus propósitos, mas trazem em comum algo: o tempo
perdido. O tempo, que parece perdido
para sempre nos textos informativos que são usuais para os operadores de
Direito Cooperativo, é esse mesmo tempo buscado pelo Proust.
A linguística, a psicologia e a
antropologia, em meados do século passado, apontaram que significados não
aparecem só pela análise dos encadeamentos das razões, impressões e vontades,
mas, ao contrário e sobretudo, nas descontinuidades inconscientes. Então, é na perda do tempo como
descontinuidade na análise de ambos os textos que aparecerá a própria estrutura
do tempo.
Como
Ricoeur postula, "o tempo se torna
humano na medida em que ele está articulado de maneira narrativa; em
compensação, a narrativa é significativa na medida em que se esboça os traços
da experiência temporal" (1994, p. 15). Essa medida a que se refere Ricoeur porém
demanda uma longa e difícil conversação entre a historiografia, a crítica
literária e a filosofia fenomenológica (1994, pp. 111-131). No que interessa ao ajustamento das
cooperativas e dos dramas de seus cooperados afetados pelo que foi decidido
sobre a tributação em plenários do
Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal num intervalo de dez
anos, o comportamento cooperativo no confronto com o empresarial se mostra como
referência para a ordem econômica constitucional, cujas ações causais elas e
eles estão submetidos. Mas a cooperação
precisa também ser investigada como comportamento em relação ao corpo
percepiente, que não é uma coisa como as outras, mas a locanda das relações
entre as coisas. Nos confrontos com a
coisa percebida, o corpo não se limita a explicitar uma ação causal. Há uma função transcendental que unifica a
multiplicidade das matérias sensoriais que se encontra numa relação de fundação
recíproca com esse estrato material. Se
essa função constitui o elemento formal no interior da vivência, com o qual se
apreende a cooperativa como unidade sintética do vivido; por outro lado sua
percepção tem seu campo de aplicação nos conteúdos primários, constituintes do
estrato material. As cooperativas
(texto) que Ministros dos tribunais superiores brasileiros percebem num
determinado momento e de uma perspectiva espacial (contexto) já são desde
sempre a contração de todas as perspectivas temporais e espaciais que já
tiveram, que terão ou que poderiam ter delas.
Uma contração que é possível pelos corpos como campos fenomênicos. E seus corpos não deduzem uma cooperativa dos
seus perfis, mas percebem imediatamente estes perfis como perfis dela,
articulações de um todo. Se o corpo procede
à exploração da multiplicidade dos perfis da cooperativa para captá-las na
complexidade de suas relações funcionais com o ambiente e com os outros, não há
mero espelhamento na sua percepção.
A cooperativa entre a normalidade e a
normatividade se define tanto pelas condições exteriores da percepção quanto o
percebido é dependente de um texto alusivo.
Daí as madalenas de Proust terem a ver (numa hipérbole[6]) com as cooperativas na
ordem econômica constitucional: a possível fundação da ideia de normalidade e
normatividade na qual a norma jurídica interpretada não é só uma sedimentação
de um passado informado com vistas a um futuro projetado, mas diz uma também de
uma narrativa sempre a vivenciar no interior de sua própria estruturação.
[1] REsp 591.298/MG e REsp 616.219/MG. Sessão de julgamento em 27.10.2004.
[2] RE
598.085-RG e RE 599.362-RG. Sessão de julgamento em 05.11.2014
[3] a
diacronia é pensada para o aparecimento das descontinuidades perceptíveis nas
diferenças que são reveladas pela comparação entre estruturas, e não como
esqueleto inteligível ou uma sequência causal, em todo caso, uma razão de
caráter universal.
[4] Se uma estrutura já carrega uma sistemática,
qualquer modificação de um elemento já acarreta a modificação de todos os
outros, de modo que a imprescindibilidade de um dado originário (no caso, a
cooperativa) já é um problema de rigor epistemológico. Não é a razão que está no foco, mas aquilo
que escapa do discurso em qualquer análise temática.
[5]
Por uma função diacrítica das línguas, um sinal gráfico acrescentado a uma
letra ou uma entonação distinta de uma vogal introduz uma ênfase que modifica o
sentido do que se declara (p. ex.: - pô, pai, pó pará!). A diacriticidade interdita que um termo
esteja sempre restrito a uma única nuance temática. É o alusivo a chave que abre possibilidades
de uma constelação temática.
[6] Figura de pensamento em que a intenção
expressiva aparece num excesso da expressão empregada. Por exemplo, o enunciado "penso, logo
existo" (cogito, ergo sum) é
demonstrado pela dúvida hiperbólica: se
Descartes duvida de tudo (mesmo daquilo que não duvida de fato), ainda permanece para todos uma certeza apodítica - a de
que duvida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário