sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Apresentação sobre hermenêutica no VI Congresso Continental de Direito Cooperativo. Montevideo, 18/11/2016.

O propósito desta apresentação é indagar pelas implicações de racionalidade nas relações de identidade e diferença que tensionam o fazer de uma justiça possível e que podem ser ilustradas no quiçá mais relevante julgamento da década passada em Tribunal brasileiro a respeito da tributação incidente sobre cooperativas.  Este julgamento se deu por causa de um litígio em que o último voto proferido foi memorável por um jogo de palavras entre pães, gatos, cooperativas e bancos.  É que o Ministro ocupou significativa parte de seu pronunciamento dissertando sobre gatos em seus contextos doméstico e arquetípico.  Isso para se conduzir à culminância de seu voto através das reminiscências de sua infância:  nas madrugadas frias, seu gato buscava conforto na cozinha.  Conclusão:  "Não por um gato dormir num forno quente que amanhece pão.  Cooperativa é cooperativa; banco é banco."  Importa questionar: o que estava em jogo e suscitou o então decano da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, diante da divergência entre seus pares sobre o tratamento jurídico adequado ao caso, a partir de uma narrativa, sintetizar seu voto numa formulação argumentativa A=A.B=B→A≠B ?[1]

Tanto mais relevante para o Direito Cooperativo se torna a indagação, quando a posição jurisprudencial uniformizada por aquele famoso julgamento, dez anos após, foi abalada por um outro julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal com repercussão geral sobre a mesma matéria de lei, no qual a singularidade das cooperativas face aos agentes de mercado foi colocada em xeque no que se refere aos seus significados operacionais.  O Min. Luiz Fux, presente em ambos os julgamentos, votou favoravelmente em ambas as teses opostas.  E como ele justificou isso? "Trago uma mudança de concepção (....) na gênese do cooperativismo havia realmente essa ideia de solidariedade, mas que já avançou e muito. (....)  Embora eu tenha achado muito sugestiva aquela afirmação (....) de que gato é gato, pão é pão; banco é banco e cooperativa é cooperativa, a verdade é que hoje há uma cortina de fumaça que não nos permite ver aquela velha cooperativa de outrora nas cooperativas de hoje". [2]

Para o que interessa à minha apresentação, do caso narrado, resta uma pergunta:  O que há de estrutural na orientação jurisprudencial?  A resposta proposta é esta: o imaginário acerca das cooperativas.
Na linguagem oral, uma palavra está sempre relacionada a seu sentido correspondente (alusão).  Uma vez que ela é pronunciada, ela atua não apenas como designação (significante) desse sentido (significado).  A palavra é a própria expressão do sentido.  A palavra e o sentido intencional se fundem na alusão.  Mas, se a palavra é escrita, ela se afasta dessa fusão.  Entre a palavra escrita e o sentido, aparece imediatamente uma autonomia da expressão.   Pois a palavra escrita não mais designa um sentido, mas designa signos.  A palavra escrita não estabelece uma relação imediata do tipo significante-significado.  Antes, estabelece uma relação significante-significante.  Isso quer dizer que um sentido intencional pode ou não estar presente na palavra escrita.  Outras vezes, há muitos sentidos possíveis.  Aliás, essa é a potência da palavra escrita, muito explorada pelos juízes e romancistas.
Pense na comunicação que se faz por mensagem de whatsapp®, e como é difícil identificar o tom da conversa. Por vezes, pode-se achar que a pessoa está sendo grosseira, mas ela está com pressa.  Por isso, os emoticons são ferramentas úteis numa linguagem empregada em redes sociais.
Talvez seja importante pontuar aqui: qualquer conduta humana já permite múltiplos sentidos. Só que todas as possibilidades já se apresentam na escrita: são suas leituras possíveis.  É preciso então não somente saber expressar, mas comunicar como que navegando por esses múltiplos sentidos, como se fossem rochedos para os quais vagas podem lançar sua fragata – é preciso ser como um velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar.  É preciso ser inequívoco na intenção expressa. É preciso ter algum domínio para deslizar sua intenção sobre as palavras escritas, porque elas são como o mar: têm sua correnteza, mas não têm cabelos onde se possa segurar.    

A constituição da sociedade cooperativa como objeto só pode aparecer nas relações de identidade e diferença; texto e contexto; percepção e comportamento.  O que se põe em questão é tanto a autossuficiência do dado, quanto a prioridade lógica e epistemológica do fatual sobre o possível.  O que se postula é  uma atividade constitutiva operante desde sempre.  O comportamento de uma coisa nos confrontos com outras coisas que constituem seu mundo circundante precisa ser pensado também em relação imediata aos corpos que percebem as relações entre as coisas.  E os confrontos entre as coisas percebidas e os corpos não são inteiramente explicitadas por efeitos de ações causais.  Sem o primado da consideração sincrônica, qualquer análise diacrônica[3] não encontra garantia para seu rigor[4].  Este é um sentido diacrítico[5] das madalenas de Marcel Proust com relação às literaturas jurídica e econômica que abordam mais comumente as cooperativas.


                "Quando se analisa o empreendimento cooperativo pode-se entender que há a necessidade de crescimento intrínseco dessas organizações em consequência da ´mão invisível do mercado´ e em razão da lógica econômica explicada e modelada pela economia neoclássica.
"Assim, percebe-se que cooperativas que se formaram como importantes coalizões de interesses em um mesmo grupo étnico, solidário e voluntário, com um forte código de ética, crescem economicamente impulsionadas pelo mercado e pela necessidade de geração de renda e riquezas, e nesta trajetória internalizam necessariamente a lógica econômica de maximização de resultados".
BIALOSKORSKI, Sigismundo. Economia e Gestão de Organizações Cooperativas


                "Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.  Mas, no mesmo instante em que aquele gole de envolta com as migalhas do bolo tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava extraordinário em mim.  Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa.  Esse prazer logo me torna indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo.  Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.  De onde me teria vindo aquela poderosa alegria?  Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza.  De onde vinha?  Que significava?  Onde apreendê-la?  Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos que o primeiro.  É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida.  É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.  A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar inato a minha disposição, para  um esclarecimento decisivo.  Deponho a taça e volto-me para meu espírito.  É a ele que compete achar a verdade.  Mas, como?  Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá.  Explorar?  Não apenas explorar: criar.  Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz."
PROUST, Marcel.  No Caminho de Swann em Busca do Tempo Perdido.

São textos muito distintos em seus propósitos, mas trazem em comum algo: o tempo perdido.   O tempo, que parece perdido para sempre nos textos informativos que são usuais para os operadores de Direito Cooperativo, é esse mesmo tempo buscado pelo Proust. 
        A linguística, a psicologia e a antropologia, em meados do século passado, apontaram que significados não aparecem só pela análise dos encadeamentos das razões, impressões e vontades, mas, ao contrário e sobretudo, nas descontinuidades inconscientes.  Então, é na perda do tempo como descontinuidade na análise de ambos os textos que aparecerá a própria estrutura do tempo.  

Como Ricoeur postula, "o tempo se torna humano na medida em que ele está articulado de maneira narrativa; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que se esboça os traços da experiência temporal" (1994, p. 15).  Essa medida a que se refere Ricoeur porém demanda uma longa e difícil conversação entre a historiografia, a crítica literária e a filosofia fenomenológica (1994, pp. 111-131).  No que interessa ao ajustamento das cooperativas e dos dramas de seus cooperados afetados pelo que foi decidido sobre a tributação em plenários  do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal num intervalo de dez anos, o comportamento cooperativo no confronto com o empresarial se mostra como referência para a ordem econômica constitucional, cujas ações causais elas e eles estão submetidos.  Mas a cooperação precisa também ser investigada como comportamento em relação ao corpo percepiente, que não é uma coisa como as outras, mas a locanda das relações entre as coisas.  Nos confrontos com a coisa percebida, o corpo não se limita a explicitar uma ação causal.  Há uma função transcendental que unifica a multiplicidade das matérias sensoriais que se encontra numa relação de fundação recíproca com esse estrato material.  Se essa função constitui o elemento formal no interior da vivência, com o qual se apreende a cooperativa como unidade sintética do vivido; por outro lado sua percepção tem seu campo de aplicação nos conteúdos primários, constituintes do estrato material.  As cooperativas (texto) que Ministros dos tribunais superiores brasileiros percebem num determinado momento e de uma perspectiva espacial (contexto) já são desde sempre a contração de todas as perspectivas temporais e espaciais que já tiveram, que terão ou que poderiam ter delas.  Uma contração que é possível pelos corpos como campos fenomênicos.  E seus corpos não deduzem uma cooperativa dos seus perfis, mas percebem imediatamente estes perfis como perfis dela, articulações de um todo.  Se o corpo procede à exploração da multiplicidade dos perfis da cooperativa para captá-las na complexidade de suas relações funcionais com o ambiente e com os outros, não há mero espelhamento na sua percepção. 

        A cooperativa entre a normalidade e a normatividade se define tanto pelas condições exteriores da percepção quanto o percebido é dependente de um texto alusivo.  Daí as madalenas de Proust terem a ver (numa hipérbole[6]) com as cooperativas na ordem econômica constitucional: a possível fundação da ideia de normalidade e normatividade na qual a norma jurídica interpretada não é só uma sedimentação de um passado informado com vistas a um futuro projetado, mas diz uma também de uma narrativa sempre a vivenciar no interior de sua própria estruturação.




[1] REsp 591.298/MG e REsp 616.219/MG.  Sessão de julgamento em 27.10.2004.
[2] RE 598.085-RG  e RE 599.362-RG.  Sessão de julgamento em 05.11.2014
[3] a diacronia é pensada para o aparecimento das descontinuidades perceptíveis nas diferenças que são reveladas pela comparação entre estruturas, e não como esqueleto inteligível ou uma sequência causal, em todo caso, uma razão de caráter universal.
[4]  Se uma estrutura já carrega uma sistemática, qualquer modificação de um elemento já acarreta a modificação de todos os outros, de modo que a imprescindibilidade de um dado originário (no caso, a cooperativa) já é um problema de rigor epistemológico.  Não é a razão que está no foco, mas aquilo que escapa do discurso em qualquer análise temática.
[5] Por uma função diacrítica das línguas, um sinal gráfico acrescentado a uma letra ou uma entonação distinta de uma vogal introduz uma ênfase que modifica o sentido do que se declara (p. ex.: - pô, pai, pó pará!).  A diacriticidade interdita que um termo esteja sempre restrito a uma única nuance temática.  É o alusivo a chave que abre possibilidades de uma constelação temática.
[6] Figura de pensamento em que a intenção expressiva aparece num excesso da expressão empregada.  Por exemplo, o enunciado "penso, logo existo" (cogito, ergo sum) é demonstrado pela dúvida hiperbólica:  se Descartes duvida de tudo (mesmo daquilo que não duvida de fato), ainda permanece para todos uma certeza apodítica - a de que duvida.  

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