sábado, 19 de dezembro de 2015
terça-feira, 3 de novembro de 2015
Casamento e Familia nos Dias de Sempre
A XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que ocorreu no Vaticano, acabou em 25 de outubro. Sua pauta foi A Vocação da Família na Igreja e no Mundo Contemporâneo. Durante a Santa Missa para seu encerramento, o Papa Francisco falou de duas tentações:
(1) uma espiritualidade da miragem - "podemos
caminhar através dos desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente
existe, mas o que nós gostaríamos de ver; somos capazes de construir visões do
mundo, mas (....) [aceitamos] uma fé que não sabe radicar-se na vida das
pessoas, permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos".
(2) uma fé de tabela - "podemos caminhar
com o povo de Deus, mas temos já a nossa tabela de marcha, onde tudo está
previsto: sabemos aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os
nossos ritmos e qualquer inconveniente perturba-nos. Corremos o risco de (....) [perdermos] a
paciência (...). Jesus, pelo contrário, quer incluir, sobretudo quem está
relegado para a margem e grita por Ele. Estes, (....), têm fé, porque saber-se
necessitado de salvação é a melhor maneira para encontrar Jesus".
Com a Sagrada Família, aprendemos a correspondência permanente entre a inventiva do Espírito Santo e o acolhimento hospitalar que torna cada família esperança nossa de futuro para a humanidade. Mesmo que brutos assaltem as nossas casas. Que a madrugada amanheça afogada em terror.
Diálogo e contexto, diz o Papa Francisco. Em meu contexto, a partir de soluções pragmáticas, casamento e família podem muito bem ser nomes dados a diversas relações afetivas e domésticas, mas com iguais efeitos jurídicos e sociais. Se alguém me diz casado ou parte dessa ou daquela família e assim deve ser tratado por normas de convívio civilizado, rezo para que encontre nesse seu "sim" o sentido mais nobre. Mas, também será o mais servil. Digo isso consciente de que expressões como "autoestima" e "busca da felicidade" podem ocultar vazies, impiedade, vaidade e egoísmo. Males que magoam e condenam qualquer um à solidão em meio à multidão.
Se casamento ou a maternidade/paternidade existem para minha felicidade, é porque alguém escolheu me fazer feliz. Não por amizade. Não por cidadania. Família só é esperança, e não um arranjo, porque alguém nunca desistiu de mim. Morreu assim. Não foi porque se sentisse preparado para isso, nem porque gostasse disso. Simplesmente, porque era quem foi, fez de mim, mais do que eu mesmo, quem sou.
O fundamento ético da família não se manifesta num afeto duradouro ou em direitos reconhecidos ou em fatos científicos. Ele se manifesta no embrião que ninguém pediu. Aconteceu. Vingou em cada progrom. E, por isso mesmo, como ele é, está destinado a vencer a pior das desgraças. É o angustiante paradoxo que se manifesta em toda a sua grandeza na verdade heroica da fé.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Ser Pai no Intransitivo
Se hoje me perguntarem por onde andei, direi: "vendo meus filhos crescerem." Já quis ser muita coisa. Mas, só hoje sei quem sou. Sou pai. E isso basta. Mas, o que é ser pai? É ser para a morte. Trocando em miúdo, ser pai é pensar, apesar de toda angústia de nada mais ser, que vive e morre por, com e para seus filhos. Se eu morrer antes de meus filhos, serei pai em assim ter pensado viver. E minha vida e morte terão sido criadoras da memória em meus filhos de assim bem querer viver e morrer. Mas, se algum de meus filhos morrer antes de mim, fechar-me-ei em luto e a angústia me tomará. Mas, não serei infeliz na confortante lembrança de que ele pôde contar com o pai por todos os dias de sua vida.
Ser pai é assim: inicia-se com vida nova, mas só se consuma na morte. Só que a morte não é o fim de ser pai.
Meus filhos, eis-me aqui! Ouvem a voz e fazem a vontade de seu pai! Tomem-me por inteiro de mim mesmo! Pois, sou quem sou, sendo, ao mesmo tempo, pai e filho de meu pai.
Sicut erat in principio et nunc et semper et in saecula saeculorum.
domingo, 2 de agosto de 2015
Economia da felicidade e a ética da gratidão
Uma nota característica do utilitarismo é a felicidade como o fim de toda utilidade. Há dois séculos legitimamos a economia de mercado a partir desse postulado ético. Ultimamente, a felicidade está articulada com a sustentabilidade, de modo que a ética utilitarista também considera a felicidade de nossos filhos num retorno do moderno a uma preocupação arcaica de continuidade genealógica. Só que esta continuidade é percebida não só na herança de direitos pessoais, patrimoniais e sociais, mas agora também está consubstanciada num comportamento individual correto para a consciência, porque esta, ao voltar-se para o coletivo, percebe a existência positiva de interesses difusos, nem que seja pela coatividade das normas jurídicas de proteção ambiental.
Mas, o utilitarismo também nos legou uma noção: a economia se manifesta nalgum sistema de trocas de bens. Quiçá então seja um problema do utilitarismo exilar da economia um bem em sua absoluta gratuidade: a gratidão. O exílio se dá exatamente na gratuidade absoluta: a gratidão não conta. E se não conta, não há utilidade para a gratidão suportada num objeto de troca.
A implicação ética desse exílio se positiva no sentido agora ordinário de sucesso na economia de mercado. Se a qualificação de um empreendimento econômico se mede pela sua agregação de valor, a medida do seu sucesso se dá pela margem resultante em função de quanto dinheiro e quantas pessoas estão dispostas a pagar por essa agregação.
O problema é que tal medida tende a tornar o empreendimento, até mesmo por conta de toda responsabilidade social e ambiental exigíveis, potencialmente inflacionário, porque é um acelerador na circulação da moeda numa sociedade afetada pela insaciedade que só a gratidão pode aplacar num horizonte sabático de felicidade.
Quero ilustrar essa afirmativa a partir da vulgarização dos neologismos experienciação e desconstrução numa relação específica de consumo. Em qualquer manual do empreendedor voltado para a gastronomia, o sucesso em desconstruir um prato de comida vai se traduzir na fazeção com que mais pessoas estejam dispostas a pagar mais caro para experienciar o seu consumo.
No Rio de Janeiro, essa vulgaridade mereceu nos seus dias de euforias eikeana e pressálica a criação jocosa de uma moeda alternativa: o $urreal. A criação do humor carioca apontou para a medida de sucesso dos empreendimentos gastronômicos que aceitam o convite utilitarista a um frenesi na circulação da moeda, uma vez que a felicidade é prometida na experienciação de serviços desconstruídos a preços surreais. Isso se torna pressão inflacionária, quando vai acontecendo até mesmo com a pipoca vendida sem vergonha em cinemas plex qualquer coisa no bairro, ou com o pedaço de bolo que agora é cup cake na padaria da esquina de casa... O utilitarismo é cego à questão ética aí, porque a encara apenas sob a perspectiva instrumental da oferta de crédito e dos custos de oportunidade.
Mas, o que a (ausência de) gratidão tem a ver com isso?
Em Roma, diante de porta discreta, havia um suporte que atraía pelo anúncio com preços de pasta que eram competitivos com um Big Mac. Fettuccini alla puttanesca, spaghetti all´alfredo, fusilli alle bolognese... enfim nada indicava qualquer experienciação. Desconstrução, muito menos. Mas, elas se insinuaram num pequeno cartaz visível logo que entrei no estabelecimento acanhado: "Aqui se propõe uma experiência gastronômica. Não espere por serviço." Ora, a tabuleta contraria qualquer manual de empreendedorismo do Sebrae... Eu fui ao balcão sem qualquer pretensão e pedi uma porção de massa e molho ao dono do lugar. Ela foi servida num prato plástico descartável desses mais vagabundos, tipo de servir bolo em parabéns na escola de meu filho. E recebi um copo igual aos que ficam ao lado do bebedouro de qualquer escritório por aí. Bebida, eu peguei o vinho que queria. Preço de água mineral. E você me pergunta: e daí? Aí, a massa... na primeira garfada apreendi com a língua o significado da tabuleta! No paladar, não deixava nada a dever a qualquer restaurante estrelado em Roma. Quem já foi dono de restaurante sabe a trabalheira e a arte que é produzir um prato com aquela qualidade na degustação. E o enorme desafio um cozinheiro tem ao propôr uma experiência gastronômica marcante ao elaborar um prato com receitas ordinárias. Qual o sentido de desconstrução? Na proporção do sentimento de gratidão na relação de consumo que se estabelece com quem entra naquele estabelecimento. Pelo preço que paguei para comer aquele prato divino de macarrão, nada mais podia fazer do que levantar-me da mesa e descartar o prato e o copo como um gesto não tanto de cidadão consciente do que seja politicamente correto, mas alguém sinceramente agradecido pela sorte de ter entrado naquela porta. E isso seja economia.
Se tal empreendimento pode não parecer um exemplo didático de sucesso para um instrutor do Sescoop, a mim pareceu-me mais que legítimo. Sobretudo porque vinha de uma missa que assisti casualmente na Igreja de São Luís dos Franceses num dia qualquer de semana. Entrei e topei com afrescos de Caravaggio. Mas, na missa, mesmo... tinham mais padres no presbitério do que leigos na nave! Porque a igreja estava vazia, maravilhei-me com a alegria com que os padres estavam celebrando a Eucaristia. Ao final, foram cumprimentar e confraternizar com os poucos fiéis presentes. Falavam francês, eles e os leigos. Eu entendia muito pouco do que diziam Mas os sorrisos com que me dirigiam o olhar não deixavam dúvida da gratidão por eu ter-me sentado com eles lá. Senti-me plenamente recompensado com o prato de macarrão que comi ao sair dali. E eu, carioca, não pude deixar de imaginar que só numa metrópole com tanta profusão de arte sacra e missas, um dono de restaurante vai querer seu próprio sucesso na gratidão silenciosa de turistas anônimos como eu.
quinta-feira, 9 de julho de 2015
As razões estão em jogo nas cooperativas financeiras
Num movimento de redefinição da
identidade, entes cooperativos passam a reivindicar para si uma terminologia
própria: cooperativas financeiras,
cooperativismo financeiro e sistema financeiro cooperativo. Toda literatura que apresentou essa mudança
no "cartão de visita" explicita razões mercadológicas e se
desinteressa por qualquer fundamentação, pois o logos está evidentemente voltado a um projeto funcional: a
otimização da eficácia competitiva. Não
é acaso que a terminologia, em seu próprio logos,
reforça o alinhamento concorrencial desses entes com os empresariais diversos
que fazem funcionar o mercado de capitais e são usualmente denominados como
instituições financeiras - universo em que os fundos globais de investimentos
ocupam uma posição mais que proeminente - verdadeiramente se revestem de uma
imagem icônica.
Longe de criticar essa opção
estratégica, o propósito aqui é tão somente indagar pelas implicações de
racionalidade nas relações de identidade e diferença que tensionam o fazer de uma
justiça possível e que podem ser ilustradas no quiçá mais relevante julgamento da
década passada em Tribunal para esses entes cooperativos. Este julgamento se deu por causa de um
litígio em que o último voto proferido foi memorável por um jogo de palavras
entre pães, gatos, cooperativas e bancos. É que o Ministro ocupou significativa parte de
seu pronunciamento dissertando sobre gatos em seus contextos doméstico e
arquetípico. Isso para se conduzir à
culminância de seu voto através das reminiscências de sua infância: nas madrugadas frias, seu gato buscava
conforto na cozinha. Conclusão: "Não
por um gato dormir num forno quente que amanhece pão. Cooperativa é cooperativa; banco é
banco." Importa questionar: o
que estava em jogo e suscitou o então decano da 1ª Seção do Superior Tribunal
de Justiça, diante da divergência entre seus pares sobre o tratamento jurídico
adequado ao caso, a sintetizar seu voto numa formulação argumentativa A=A; B=B?
Tanto mais relevante para o Direito
Cooperativo se torna a indagação, quando a posição jurisprudencial uniformizada
por aquele famoso julgamento, dez anos após, foi abalada por um outro
julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal com repercussão geral sobre
a mesma matéria de lei, no qual a singularidade das cooperativas face aos
agentes de mercado foi colocada em xeque no que se refere aos seus significados
operacionais. O Min. Luiz Fux, presente em ambos os julgamentos, votou favoravelmente em ambas as teses opostas. E como ele justificou isso? "Trago uma mudança de concepção (....) na gênese do cooperativismo havia realmente essa ideia de solidariedade, mas que já avançou e muito. (....) Embora eu tenha achado muito sugestiva aquela afirmação (....) de que gato é gato, pão é pão; banco é banco e cooperativa é cooperativa, a verdade é que hoje há uma cortina de fumaça que não nos permite ver aquela velha cooperativa de outrora nas cooperativas de hoje".
Ora, uma evidência de que uma questão de
imaginário social instituinte perpassa ambos os julgamentos é o aparecimento da
neologia neocooperativismo, que no
tempo em que se reivindica a identidade cooperativa
financeira, expressa com ela uma relação tensa, eis que o neologismo se
presta à reivindicação de alteridade por entes cooperativos que recusam uma
subordinação de sua própria identidade ao logos
do mercado financeiro, quando assumem sua afinidade com a economia
solidária. Sintomático que o
neocooperativismo se afirme resgatando uma identidade originária que, suposta como uma verdade nua e crua no plenário do Supremo Tribunal Federal, está meio que perdida dentro de uma cortina de fumaça.
Se lembrarmos que Parmênides e Heráclito têm em
comum a identidade e diferença como preocupação com a qual erigiram há 26
séculos uma linguagem que deslizou da narrativa e do mito para dizerem verdades, esse julgamento no STF, no confronto com que julgara o STJ, sugere que as razões estão em jogo no interior das cooperativas financeiras.
terça-feira, 19 de maio de 2015
A ÉTICA DA COOPERAÇÃO EM DIÁLOGO ENTRE O DISCURSO DA ALIANÇA COOPERATIVA INTERNACIONAL E O MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
Sob
a perspectiva do discurso institucional da Aliança Cooperativa Internacional
positivado na sua Declaração sobre a Identidade Cooperativa publicada em 1995, "as cooperativas se baseiam nos valores
da ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e
solidariedade. Seguindo a tradição de
seus fundadores, seus membros creem nos valores éticos de honestidade,
transparência, responsabilidade social e preocupação pelos demais." Juan Luis Moreno, debruçado sobre o Informe (Analítico) da ACI sobre a
Declaração sobre a Identidade Cooperativa,
esclareceu que "com relação a
sua ética normativa, a ACI é utilitarista e entende os valores cooperativos
como meios para alcançar um valor último, condições ótimas de vida
humana".[i]
Ocorre que a Declaração
sobre a Identidade Cooperativa não explicitara qual é este valor último, que em
um discurso utilitarista se evidenciaria se expressas quais seriam essas
condições ótimas de vida humana. Em
2013, a ACI então publicou seu Plano de Ação para uma Década Cooperativa, no
qual afirma: "Em 2020, teremos de ser capazes de voltar a olhar para 2012 como
representando o ponto de viragem no ideal cooperativo, e o contributo que deu
para a segurança, bem estar e felicidade das pessoas." No discurso institucional da ACI, portanto, a
felicidade se apresenta então como o valor último, o norte polar para o qual se
voltam as práticas utilitaristas de otimização das condições de vida humana - a
economia da felicidade a que se
refere o documento da ACI.
Qual sentido de
felicidade que pode articular o discurso institucional da ACI e a ética pelo
magistério eclesiástico? O descanso da
vontade na consecução (participativa) do que for percebido como bem comum
duradouro (sustentável). Na tradição
aristotélica, a definição do bem é determinada por um plano racional de vida
que uma pessoa escolhe (vontade manifesta) a partir de um grupo superior de
planos. Daí, o bem de uma pessoa é a
execução bem-sucedida de um plano racional de vida. A felicidade então é reconhecida como bem último
por ser autossuficiente:
Um
plano racional, quando implementado com confiança, torna a escolha de uma vida
totalmente válida e não exige mais nada.
Quando as circunstâncias são particularmente favoráveis, e a execução
especialmente bem-sucedida, nossa felicidade é completa. Na concepção geral que buscamos seguir, não
falta nada de essencial, e não existe possibilidade de melhorá-la de forma
significativa.[ii]
Portanto, essa felicidade
escatológica, radicalmente pessoal, não está reduzida à consecução de um bem
incognoscível. Ao contrário, recorrendo
à tradição aristotélica, os bens humanos mostram-se numa teleologia com a qual
as atividades assumem um lugar de destaque nos planos racionais. Trata-se de um pressuposto ético
regido pela relação racional entre meios e fins. Essa ética formalizada pela razão, no
entanto, não dá conta da carga emotiva que polariza a decisão de constituir uma
cooperativa.
Fica, outrossim, pendente
de solução encontrar uma felicidade pessoal que venha a ser completa em comunidade. Se as heteronomias inerentes às diversidades
existenciais reconhecíveis nas sociedades contemporâneas colocam em xeque
soluções exclusivamente utilitaristas, antes de falar em subjetividades, posto
que o sujeito é plural, a chave ética está na alteridade que não se reduz a um
imperativo ético, mas que aponta para a possibilidade de pensar a felicidade
completa como uma dimensão sabática da existência, horizonte de gratuidade, de
encontro de uma relação dialógica entre o "eu" e o "tu" que
se enriquecem mutuamente. Tanto quanto o
sujeito é plural, outros são o "tu".
É o "tu" totalmente outro quem dirige todo o processo de
realização do "eu" pela diversidade
de sua vigência. Na presença espectral de um terceiro, "Eu" e
"Tu" se constituem reciprocamente num evento ontológico de identidade
e diferença [iii].
Daí, a advertência de
Martin Heidegger na sua memorável conferência proferida na Universidade de
Freiburg em 27.06.1957 sobre o Princípio
da Identidade:
A
fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A, não diz apenas:
cada A é ele mesmo o mesmo. Em cada
identidade reside a relação "com", portanto, uma mediação, uma
ligação, uma síntese: a união numa unidade.
Por isso, a identidade aparece, através da história do pensamento
ocidental, com o caráter da unidade.
Mas, esta unidade não é absolutamente o insípido vazio daquilo que, em
si mesmo desprovido de relações, persiste na monótona uniformidade." [iv]
Necessariamente através de linguagens plurais e multiformes que o ser humano vai
sendo descoberto no fluxo da existência.
Tanto quanto o ser humano conduz uma linguagem, as linguagens o lançam
na pluralidade de suas relações pessoais,
nas quais alguém vai percebendo nuances disso ou daquilo por interagir e
assim se revelar para si mesmo a partir
da presença dos outros. Este sentido é
encontrado no parágrafo vestibular da monumental obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, que se mostra relevante
para o Direito por sua evidente implicação hermenêutica:
"Adormeço". (....) não havia cessado de
refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma
feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o
livro: uma igreja, um quarteto, a
rivalidade entre Francisco I e Carlos V.
Essa crença (....) não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu
sobre os olhos (....). Depois (....) o tema da obra destacava-se de mim,
ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele (....)."
De modo que a felicidade
completa não provém de todo com uma adequação formal de meios à sua realização
finalística, senão na realidade do "nós". Pois as linguagens, moradas
do ser, tornam mundo um comum-pertencer: a mesmidade entre pensar e ser.
É pertinente notar que
padres costumam ser lembrados em estórias de mobilização de comunidades para a
criação de cooperativas que são bem-sucedidas.[v] Há uma resposta possível a essa questão na
encíclica Caritas in Veritate: “Se o
amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma
previdente e justa competência como significativamente indicam muitas
experiências no campo do crédito cooperativo (....)” (§65). Neste sentido, o Papa Francisco discursou em 28
de fevereiro de 2015 aos representantes da Confederação Cooperativa
Italiana: "Não digo que não se deve crescer no rendimento, mas isso não é
suficiente: é necessário que a empresa gerida pela cooperativa cresça
deveras de modo cooperativo, ou seja, envolvendo todos. Um mais um é igual a
três! Esta é a lógica."
O magistério eclesiástico
colabora com a ordem econômica constitucional ao reconstituir essa escolha
original, imaginária, em que ser sócio de cooperativa é algo que remete, de
alguma forma, a uma devoção de vida e uma vocação, ambas dirigidas ao proveito
comum. E não simplesmente algo
resultante de contas cambiantes de vantagens e ônus, incentivos e sanções
disciplinares, custos e margens. E, mais
importante, que ambos os sentidos não são excludentes, mas complementares.
A lógica a que se referiu
o Papa Francisco à propósito das cooperativas não é razão formal, daí seu jogo
de palavras. Mas, é razão primordial -
uma imagem estritamente metafísica da perfeição, que é um princípio genético
de liberdade e poder e, ao mesmo tempo, encarnado num apaixonado, alguém
arrebatado por um amor escatológico, que vem a ser ágape, conforme a Encíclica Deus Caritas Est:
"Em
contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo
exprime a experiência do amor que agora
se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta
que antes claramente prevalecia. Agora, o amor torna-se cuidado do outro e pelo
outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da
felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto
ao sacrifício, antes procura-o". (§ 6°)
Pensar em ágape como
felicidade completa e fundamento primeiro e fim último do bem comum - "Conjunto de condições da vida social que
permitem, tanto aos grupos como a cada pessoa humana em comunidade alcançar
mais plena e facilmente a própria perfeição" (Constituição Vaticana
Felicidade e Esperança) - é resgatar para o cidadão
organizado em cooperativa a nobreza em sua servidão que consubstancia a
preocupação com a comunidade como princípio universal de identidade cooperativa. Algo transcendente aos direitos e obrigações
e aos cálculos de utilidade. Então, já não é o Estado, nem a cooperativa
os promitentes de uma felicidade pessoal sempre posta adiante; construtores de
uma utopia. Uma comunidade organizada em cooperativa sob o Estado
soberano já vem a ser esse lugar, ainda que prenhe de esperança por dias
melhores.
Para dar materialidade
à ética, e com isso, evidenciar a cooperação numa escolha que constitui a
cooperativa em sua originalidade, é preciso primeiro admitir o postulado de que
a qualidade dos bens, as aspirações ou a necessidade não fundam os valores, mas
são valores que dão aos bens qualidades, orientam as aspirações e dão sentido
às preferências face às necessidades sentidas.
Dito
em outras palavras, a questão dos valores que qualifica uma sociedade como
cooperativa e que constitui sua adequação é, depois de mais nada, um
reaprendizado em ver o ato constitutivo de uma relação jurídica societária
cooperativa como um ato de preferência.
A materialização da ética pelo sentimento permite revelar o que de
essencialmente válido existe na cooperativa.
Se for verdade que os
valores são reais e transcendem a afetividade, eles só aparecem na medida em
que a eles se voltam os sentimentos.
Outrossim, precisam ser refletidos para uma análise transcendental, ou
seja, para a tomada de consciência de si mesmo como ser racional, dos valores
que visam e da hierarquia axiológica que sintetizam.
Mas, essa consciência
imediata do bem do ato que é cooperativo nem sempre se realiza no cotidiano dos
negócios das cooperativas, pois as escolhas ocorrem num emaranhado de símbolos,
pensamentos, informações, discursos, desejos, as circunstâncias. Por isso, é necessário o recurso a enunciados
lógico-formais do dever-ser e as
prescrições como referências para o discernimento da moral em sua
historicidade.
Em que pese a utilidade
do recurso, e até por sua contingência, não se pode prescindir de voltar para
os valores, em seus absolutos e para a hierarquia axiológica que o fundam aquém
e além dos homens, que variam de sensibilidade, seja individualmente, seja coletivamente.
Só então se poderá salvaguardar a cooperação, sendo garantida também a
existência das cooperativas como uma possibilidade.
Desde
já então fica evidente que a cooperação é um valor vital existente para o
Direito antes mesmo de qualquer positivação e que é suportada por normas
jurídicas. A cooperação é o
valor com o qual pessoas se afetam para servirem umas às outras. Não se está aqui se referindo a um sentido
hoje mais comum de prestação de serviços, como atividade de circulação de bens
imateriais no mercado, mas exatamente a sua reversão, conquanto originalmente a
servidão contrasta com a idéia de mercado.
É
essa servidão recíproca (mútua) a suficiência, o afeto bastante, a escolha
vital, livre e digna de que a cooperação diz.
É essa servidão recíproca o sentido integrativo na originalidade de uma
vivência que remete à nobreza, à democracia, à solidariedade.
[i] MORENO, Juan Luis:
"Los valores según la Alianza Cooperativa Internacional". CIRIEC. Revista
Juridica de Economía Social y Cooperativa, n° 25, 2014. p. 20
[ii] RAWLS,
John: Uma teoria da justiça. Trad.
Almiro Pisetta e Lenita Maria Rimole Esteves.
Martins Fontes, São Paulo, 2002. pp.
611-612
[iii] BRIGHENTI,
Agenor. "A ação pastoral em tempos
de mudança: modelos obsoletos e balizar de um novo paradigma". Paulus.
Vida Pastoral. n° 302.
Ano 56. Mar-abr 2015.p. 33
[iv] HEIDEGGER,
Martin: Que é isto - a filosofia; identidade e diferença. trad. Ernildo
Stein.
Duas Cidades, São Paulo, 1978. pp. 50-51
[v] SCHNEIDER. José Odelso.
"A relevante herança social de Pe. Amstad SJ" Instuto Humanitas/Unisinos. Cadernos IHU Ideias., n° 213, vol 12, ano 12, 2014 . pp. 17-20
segunda-feira, 18 de maio de 2015
IV CAMINHADA COM MARIA RUMO AO REDENTOR
Ontem foi um domingo em que celebramos com a Congregação Mariana do Hospital-Colônia de Curupaiti a ascensão de Cristo aos céus, representado no Redentor do Corcovado do Rio de Janeiro.
Lembrando os 40 dias em que a Idéia perfeita de Deus de Si mesmo habitou entre nós na plenitude de Sua revelação, saímos da Igreja da Ressurreição no Arpoador e O reencontramos em carne e sangue em Ipanema, Lagoa, Botafogo e Laranjeiras.
O Amor nos uniu além da diversidade étnica e de gênero. Muitas intenções, um credo, uma adoração em 3 Pessoas e uma devoção por aquela que, liberando seu corpo, liberou a humanidade inteira. E o liberou dizendo SIM à vida. Pois mesmo que pudesse ser renegada por sua família, repudiada e denunciada por seu noivo e apedrejada até a morte por seus vizinhos, ela, uma mulher como todas, gestou vida eterna e nos legou o Amor com o qual mesmo na mais marginalizada condição que uma mulher pudesse estar, dela (apesar de nossas próprias limitações e incompreensões) somos todos capazes de dizer: bendita entre todas as mulheres; bendito o fruto de seu ventre!
terça-feira, 24 de março de 2015
Intercoop edita os Anais do V Congresso Continental de Direito Cooperativo
Os artigos de minha autoria que estão publicados nos Anais:
- O fim das cooperativas na madrugada dos mortos. (Eixo Direito Constitucional)
- Os sentidos de generalidade e adequação ao tratamento tributário ao ato cooperativo. (Eixo Direito Tributário)
- O mico de uma comunidade organizada em cooperativa subcapitalizada vai para o ombro de quem? (Eixo Direito Civil)
- A promessa de amor com cooperação na defesa do consumidor passa pela concorrência. (Eixo Direito Econômico)
- A integridade é hercúlea, mas é possível criar a partir do impossível. (Eixo Direito do Trabalho)
Para acessar a publicação:
http://intercoop.coop/catalogo/congreso-continental-de-derecho-cooperativo-guaruja-san-pablo-brasil-8-9-y-10-de-octubre-2013/
sábado, 14 de março de 2015
Diálogo e Tempo
O mito de Prometeu diz que
humanidade é admirar as estrelas. É que
desde seu primórdio, a humanidade já estava marcada pelos temores da fome,
sede, frio, escuridão e morte. Mas,
abrindo o abismo entre si e o mundo,
desde sempre, percebeu que, no movimento dos astros, especialmente no solstício, um ente inalcançável lhe falava pessoalmente
acerca desses temores. Desde sempre,
homens perceberam que na relação entre eles e as estrelas (especialmente o sol) existiam misteriosos
signos de algo mais do que a morte... a sobrevida: o tempo.
A diferença entre mistério e
problema é essa: o sentido de um
problema se esgota na resposta certa a ser encontrada. Mas o sentido do mistério está na pergunta
insistente, mesmo que já encontrada alguma resposta. O tempo é misterioso na relação entre as
estrelas e o si da humanidade. O tempo é o acontecimento que de certo modo
dominamos num fluxo contínuo, imutável que vem do passado em direção ao futuro,
mas que de modo surpreendente nos escapa em saltos, rupturas e suspensões entre
a lembrança e a esperança.
As horas são expressões
desse mistério. Hoje, estamos
acostumados a vê-las como números que regulam as rotinas de nossas atividades
diárias, quando o dia é a expressão mais tangível do presente. Mas, no dizer das horas, guardamos a
lembrança e a esperança vindas de deusas muito antigas. Filhas de Zeus, as Horas disseram
desse paradoxo do tempo. Pois eram
ambíguas em seus nomes: ora eram
bucólicas - (Hora de ) germinar, crescer e fortificar (Thallô, Auxô e Carpô);
ora eram cívicas - disciplinar, justificar e pacificar (Eunomia, Diké e
Eiréne).
As Horas só não são tão
antigas quanto a própria memória. Tisífone (castigo), Megera (rancor) e Alecto
(cólera), todas Eríneas, são nascidas do
sangue derramado sobre Gaia, quando o avô das Horas, Cronos, castrou Urano, o
céu, seu pai. Ao castrar o céu, Cronos é o tempo que recusa a memória. Tendo castrado seu pai, Cronos devora seus
filhos e assim recusa qualquer esperança: Cronos é só temor. Sem memória e sem esperança, o tempo nadifica
ao nos restar o acerto de contas dos sofrimentos, ressentimentos e ofensas.
Mas, eis que as Eríneas
também são ambíguas e, como memória, foram chamadas Eumênides, as guardiãs da
cidade. Entre as mesmas deusas serem
chamadas Eríneas e Eumênides, houve um acontecimento singular: a Palavra - o
Voto de Minerva.
Agamemnon sacrificara sua
própria filha, Ifigênia, o que motivou sua morte pelas mãos traiçoeiras de sua
esposa, Clitemnestra; gesto contra o qual Electra ergue o seu clamor; ela também
filha do patriarca na casa dos Átridas. É este clamor que leva Orestes a matar
sua mãe. Em todos esses acontecimentos,
movem-se as Eríneas. Mas, ao ouvirem uma
palavra sábia, vão residir e preservar a cidade que viria a ser o berço da
democracia. Dialógica, essa palavra
comove até mesmo deusas, mas não o faz senão reafirmando no caso o patriarcado:
a violência contra a mãe não recebeu o mesmo peso que a morte do pai.
Tudo isso é uma linguagem
originária que nos leva ao que vem desde a origem: o logos - o verbo que nos conduz até o fim. Esse verbo é dialógico como o tempo. Dele
surge tanto o Big Bang da física
quântica quanto o Fiat Lux da
tradição abrâmica. Entre um e outro, a humanidade. É a palavra que deriva em pura forma - a
lógica e pura matéria - o axios (o valor).
A forma pura é sempre a
mesma, não importa a matéria. 2 + 2 está
fora da história, já que não muda pelo de quê.
Assim também é a matéria pura. O que nos vale é o que é em infinitas formas. E no diálogo possível entre os limites de puros ideais, a
humanidade é tempo histórico.
E o que é tempo
histórico? Ele pode ser mostrado no 2 +
2. No alvor da humanidade, num tempo em
que apareceu o neocórtex, 2 + 2 se deu na sobrevivência pelo decidir-se
adequadamente à vista de uma, duas, três... muitas cobras. Um olhar para o chão
e um olhar para o céu. A história do
homem é o espetacular desdobramento do 2 + 2 até os buracos de minhoca que hoje
respondem a problemas propostos acerca do universo.
Entretanto, de que vale todo
esse espetáculo de transformação e disposição do 1,2,3... muitos em buracos
negros e partículas de Bóson, quando ainda são persistentes os mais arcaicos dos
receios face ao que nos é tão próximo como eram as cobras dos homens de Neanderthal
- o meio ambiente? É no mistério, e não no problema, que se renova o diálogo.
Toda essa conversa nos diz
de algo muito significativo para o Direito.
Se o nosso estágio civilizatório permite pensar em muitas variantes para
a família, talvez seja mesmo hora de convocar o Estado e o mercado a regularem
cada vez mais as diversas relações jurídicas e econômicas situadas. Mas, o Estado e o mercado são espetáculos,
sofisticações tão históricas quanto o teatro de Ésquilo. Espetaculares, tocam, mas não respondem por
si mesmos para diante aos arcaicos temores tão presentes quanto a possibilidade
de uma seca inapelável dos mananciais de água potável para abastecerem ao mesmo
tempo todos os tribunais, os escritórios de advocacia, as clínicas de
fertilidade assistida ou aborto e os consultórios médicos necessários para dar
cenários ao palco.
É
preciso, mesmo sob a égide dos direitos humanos, lembrar e guardar em diálogo o
que é tão antigo, quanto esses temores.
Tão concreto quanto são mais de uma, duas, três... muitas cobras. Tão ideal quanto é uma família que a tradição
nos trouxe até aqui.Foto 2. journeyingtothegoddess.wordpress.com
Foto 6. Samuel Bernstein's Stage and Cinema review of City Garage's Orestes
sábado, 28 de fevereiro de 2015
Diálogo e Direito
Este retrato é uma representação do Pai da Europa. E ele traz ambas as mãos ocupadas. Basta uma gugada para encontrar uma explicação que vai lhe soar de uma obviedade ululante: são símbolos do poder. Decomposto em autoridades secular e religiosa.
Esta é uma significação própria de uma época em que já está introjetado no senso comum o pensamento analítico, esse que percebe o real como complexo. Quando formulamos um pensamento analítico, nos sentimos esclarecidos. Uma análise rigorosa é o que nos convence da verdade.
Mas, este retrato foi pintado no fim de uma outra época; em que era narrativa a expressão mais convincente da realidade. A espada e a bola então guardam significados que se mostram mais evidentes no enquadramento: o Pai da Europa conquistou (a espada) um império (o globo) unindo na cristandade (a cruz) os germanos (a águia) e os francos (os lírios).
A variação das significações que diferenciam épocas nos fala das peripécias do pensamento. Ambas leituras do retrato são europeias. Porque começam pela pergunta "Que é isso?". É a tradição do grego antigo, que colocou o "que" no centro do pensamento, tal como na frase mais conhecida de filosofia: "sei que nada sei". Sendo europeus ambos os pensamentos nos signos do retrato, não são antitéticos do poder político. Em que pese serem uma expressão medieval da verdade e outra, moderna. A realidade aparece na ginga das épocas: a peripécia do pensamento.
É assim: no aparecimento do "que" no que algo é, a realidade é uma dinâmica entre lembrança e esquecimento, evidenciação e ocultação. Essa dinâmica se dá numa relação entre o " para que" e o "com quem".
Olha a água! Se eu grito isso, o que atrairá o seu olhar? Parece de novo óbvio e ululante: para o líquido que enche um copo sobre a mesa ou o mar. E que não haveria verdade objetiva num olhar que se voltou para uma parede. Vai ver, realmente a pessoa nem escutou o que gritei. Mas, pode ser um poeta que, ao escutar meu grito, o ouviu tão verdadeiramente que teve seu olhar atraído à dança sinuosa das luzes na parede junto de uma piscina iluminada pelo sol do inverno às suas costas.
Há duas afirmações então para que seja verdade com quem a vivencia: a verdade volta-se para alguém, pois ela não é visível senão fazendo-se em alguém. Mas, a verdade se mostra transparente num diálogo entre visões.
No Direito, a ideia de família está evoluindo ou decaindo? Nada pode nos deixar menos indiferentes, pois a ideia de família traz consigo as mais antigas memórias sócio-genéticas da humanidade: a sexualidade, a cooperação e o lar. Você pode ter uma opinião contra ou a favor do Estatuto da Família, mas em todo caso haverá uma palavra comovente na sua boca: amor.
Se você tem certeza de que a família está em transformação, muito provavelmente também tem certeza de que o amor se realiza na correspondência. A família resulta do afeto. Portanto, não cabe ao Direito predeterminar a conformação da família, mas desdobrar os direitos humanos na transitoriedade dos estados afetivos que a conformam. O dever está na observação da raposa para o pequeno príncipe: tu te tornas responsável por quem cativas.
Mas, é possível uma certeza de que a verdade sobre a família não seja menos transparente por uma análise rigorosa dos direitos humanos quanto é pela narrativa de Caim e Abel. Esqueça que se trata de uma narrativa contida num texto canônico ou talmúdico. Bastante admitir que é uma narrativa arquetípica. Importa que Abel se tornou insuportável para Caim a ponto de sua aniquilação. Mas, por Abel lhe ser familiar, Caim foi condenado. Irrelevante que Abel tivesse algum direito à vida: Caim sofreu a inapelável solidão de ter se livrado de seu irmão.
Essa narrativa então mostra o que há intemporal na família, que traz desde tempos imemoriais a memória de uma pessoa não querida. A família se mostra na rejeição ao abandono e portanto não depende do afeto.
Isso leva ao dilema fundamental no contexto do debate em torno do Estatuto da Família. O que família vem a ser então se mostra na celebração das bodas de ouro de sua avó e você lhe pergunta como ela conseguiu manter seu casamento por tantos anos. Ela, suspirando as suas cicatrizes, lhe responde: fechando os olhos. E você então pensa ou que não estará à altura dela em manter uma família, ou se lembra que o Estado Democrático de Direito lhe permite evitar esses sofrimentos evocados no suspiro mesmo sem abrir mão de gozar sua sexualidade, de contar com a cooperação no dia-a-dia e de ter um lar para chamar de seu.
Em todo caso, o paradigma da família permanece o mesmo como fenômeno puro de proteção ancestral, tão concreta quanto a cor herdada na pele: o masculino é o fundador da família ao decidir-se por se quedar junto ao feminino, que gesta e amamenta um terceiro cuja presença não foi querida. Importa tanto as variações circunstanciais dessas funções sócio-genéticas exercidas e mediadas nas sociedades contemporâneas, quanto a preservação da memória arquetípica dessas identidades como expressão máxima do justo.
foto 2: http://contopromundover.blogspot.com.br/
foto 5: Joca Faria's Photography
No Direito, a ideia de família está evoluindo ou decaindo? Nada pode nos deixar menos indiferentes, pois a ideia de família traz consigo as mais antigas memórias sócio-genéticas da humanidade: a sexualidade, a cooperação e o lar. Você pode ter uma opinião contra ou a favor do Estatuto da Família, mas em todo caso haverá uma palavra comovente na sua boca: amor.
Se você tem certeza de que a família está em transformação, muito provavelmente também tem certeza de que o amor se realiza na correspondência. A família resulta do afeto. Portanto, não cabe ao Direito predeterminar a conformação da família, mas desdobrar os direitos humanos na transitoriedade dos estados afetivos que a conformam. O dever está na observação da raposa para o pequeno príncipe: tu te tornas responsável por quem cativas.
Mas, é possível uma certeza de que a verdade sobre a família não seja menos transparente por uma análise rigorosa dos direitos humanos quanto é pela narrativa de Caim e Abel. Esqueça que se trata de uma narrativa contida num texto canônico ou talmúdico. Bastante admitir que é uma narrativa arquetípica. Importa que Abel se tornou insuportável para Caim a ponto de sua aniquilação. Mas, por Abel lhe ser familiar, Caim foi condenado. Irrelevante que Abel tivesse algum direito à vida: Caim sofreu a inapelável solidão de ter se livrado de seu irmão.
Essa narrativa então mostra o que há intemporal na família, que traz desde tempos imemoriais a memória de uma pessoa não querida. A família se mostra na rejeição ao abandono e portanto não depende do afeto.
Isso leva ao dilema fundamental no contexto do debate em torno do Estatuto da Família. O que família vem a ser então se mostra na celebração das bodas de ouro de sua avó e você lhe pergunta como ela conseguiu manter seu casamento por tantos anos. Ela, suspirando as suas cicatrizes, lhe responde: fechando os olhos. E você então pensa ou que não estará à altura dela em manter uma família, ou se lembra que o Estado Democrático de Direito lhe permite evitar esses sofrimentos evocados no suspiro mesmo sem abrir mão de gozar sua sexualidade, de contar com a cooperação no dia-a-dia e de ter um lar para chamar de seu.
Em todo caso, o paradigma da família permanece o mesmo como fenômeno puro de proteção ancestral, tão concreta quanto a cor herdada na pele: o masculino é o fundador da família ao decidir-se por se quedar junto ao feminino, que gesta e amamenta um terceiro cuja presença não foi querida. Importa tanto as variações circunstanciais dessas funções sócio-genéticas exercidas e mediadas nas sociedades contemporâneas, quanto a preservação da memória arquetípica dessas identidades como expressão máxima do justo.
foto 2: http://contopromundover.blogspot.com.br/
foto 5: Joca Faria's Photography
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
Diálogo e Fé
Serão
o erro ou a mentira os opostos do pensamento?
Quem erra, está pensando errado.
E quem mente, pensa a mentira que conta.
E a convicção? Quem é convicto de
algo, já não pensa nisso, pois o pensamento aí é dado.
Uma
das mais traiçoeiras convicções contemporâneas flerta com os direitos
humanos. Longe de mim negar a dignidade
humana, mas é perceptível no discurso banal sobre direitos humanos que o humano
é dado pelo direito. Se toda
diversidade, liberdade e igualdade passa a ser uma questão de direito, quem é
afinal um ser humano? Esquecida a
ambigüidade ética e ontológica do ser aí, é um ser menos quem do quê vazio, embora
preenchido de conquistas políticas para si.
Mas,
a velha hybris trágica, tão antiga
memória de nossa mortalidade quanto são as Fúrias divinas, mesmo escanteada na
convicção contemporânea convicta de seu humanismo, se mostra nos ressentimentos
dos seres mimados em meio a tanta expectativa de direito nessa panaceia
iluminista.
O
noticiário tem oferecido oportunidade para a lembrança de um filme
ítalo-francês datado de 1960, contando com a inesquecível Jeanne Moreau no
elenco. Trata-se do Le Dialogue des Carmélites. Uma curiosidade é tratar-se de uma adaptação
da obra última de Georges Bernanos, um escritor que por aqui no Brasil esteve
exilado durante os sombrios anos da última ocupação em França.
O
argumento do filme constrói a trama com um conceito. A partir do querigma, é possível compreender a coerência nos destinos das protagonistas
(a personagem de Jeanne e a Irmã Blanche).
Diante da escalada de violência nos acontecimentos históricos retratados,
uma se propõe resolutamente ao martírio pela fé. A outra duvida de sua própria fé e
questiona o martírio. À primeira o martírio é recusado, mas a
segunda, apesar de suas ressalvas, lança-se
a ele. Ambos destinos em contraste são libertadores.
O querigma no contexto
de hoje não só diz do que tenho
a dizer
ou fazer valer da fé
professada, mas sobretudo do que a fé diz e
faz do outro para mim para que eu espere algo de amoroso para dizer e fazer a
ele. É o que o Papa Francisco
veio dizer: "A experiência do amor diz-nos que é
possível termos uma visão comum precisamente no amor. Neste, aprendemos a
ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer,
enriquece nosso olhar".
Onde os ideais iluministas se enraizaram na
cultura, os receios de cerceamento da liberdade e da perda da autonomia do
sujeito por imposições intransigentes tendem a exilar a verdade nos fatos e
cálculos e a encarcerar o amor, a esperança e a fé no interior dos nossos
afetos. O que até é capaz de confortar o indivíduo, mas faz o amor, a fé e a
esperança difíceis de serem propostos como realizações comuns.
Se é
difícil compreender que as confissões abrâmicas não podem ser reduzidas a uma
amálgama de variantes subjetivas da espiritualidade e plexos objetivamente
patriarcais em uma ingênua leitura de Estado laico a partir dos ideais
iluministas, o querigma pode ser uma armadilha para o crente orgulhoso ou
ressentido. Levada ao extremo na política, essa leitura induz ao desejo
violento de reparação à ofensa como mortificação pela fé, conquista de vida
eterna e merecimento ao amor divino. Eis a degeneração do querigma num frenesi de
morte: a ilusão de que com a observância
meticulosa de textos de Lei, e não com a misericórdia, garante-se a justificação - a salvação eterna.
O querigma pode ser
sintetizado assim: Deus é amor e o amor tudo vence; vence até a morte. Significa
dizer que a vitória sobre o mal não é futura por dependência da ação humana;
ela já se deu na revelação dos dons de Deus - a fé, a esperança e o amor - que
inspiram as virtudes cardinais: temperança, sabedoria, fortaleza e
prudência. O que não temos é a compreensão
de todo o alcance desse absoluto já revelado.
Essa compreensão plena de toda verdade da fé por todos é esperada para o
fim dos tempos.
Se a compreensão por todos
de toda a verdade da fé é futura, guarda esperança de salvação para todos até o
final, pois assim como era no princípio, agora e sempre, a verdade é atraída
para um norte: a presença do amor. A dificuldade de compreensão dos fatos
recentes pelo esclarecimento, no sentido dado pela modernidade é a
seguinte: não é que religiões diversas se
equivalham em explicações lógicas e observações de causas como um sobrevôo do
eu sobre si no mundo. Significa antes a
recepção amorosa de cada um dos credos no que nelas é único, verdadeiro,
absoluto. Em cada uma, em diálogo, encontrar essa unicidade, essa verdade e
esse absoluto que se encontram na diversidade das sutilezas.
O Estado permanece laico, quando trata cada
religião como única em sua singularidade. Trata-se de uma hospitalidade
no espaço público para com cada pessoa religiosa.
É difícil, pois a singularidade de cada religião exige que o Estado esteja
poroso e integrado às religiões e ainda preserve a opção de alguém ser ateu. É
um desafio permanente, mas em cada tradição religiosa o Estado laico pode
reconhecer aquilo que está identificado com suas próprias valorações dirigidas
para o bem comum.
O desafio se encontra na dinâmica
entre liberdade, transgressão e reparação.
Em qualquer caso, ainda que haja reparações a fazer, a existência do
transgressor é fundamental para a própria vivência histórica da fé. Para que
ela não se degenere nem em tolice, nem em crueldade. De certo modo, este é um sentido revelado desde a luta entre Jacó
e Deus com a qual seus filhos vieram a ser filhos de Israel. Daí o lugar da transgressão na coexistência humana, na qual o amor e a
esperança são fontes da tolerância e do perdão.
A transgressão é o que põe a humanidade em movimento na direção do fim
dos tempos, que vem a ser compreensão plena de toda verdade da fé. .
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