Num movimento de redefinição da
identidade, entes cooperativos passam a reivindicar para si uma terminologia
própria: cooperativas financeiras,
cooperativismo financeiro e sistema financeiro cooperativo. Toda literatura que apresentou essa mudança
no "cartão de visita" explicita razões mercadológicas e se
desinteressa por qualquer fundamentação, pois o logos está evidentemente voltado a um projeto funcional: a
otimização da eficácia competitiva. Não
é acaso que a terminologia, em seu próprio logos,
reforça o alinhamento concorrencial desses entes com os empresariais diversos
que fazem funcionar o mercado de capitais e são usualmente denominados como
instituições financeiras - universo em que os fundos globais de investimentos
ocupam uma posição mais que proeminente - verdadeiramente se revestem de uma
imagem icônica.
Longe de criticar essa opção
estratégica, o propósito aqui é tão somente indagar pelas implicações de
racionalidade nas relações de identidade e diferença que tensionam o fazer de uma
justiça possível e que podem ser ilustradas no quiçá mais relevante julgamento da
década passada em Tribunal para esses entes cooperativos. Este julgamento se deu por causa de um
litígio em que o último voto proferido foi memorável por um jogo de palavras
entre pães, gatos, cooperativas e bancos. É que o Ministro ocupou significativa parte de
seu pronunciamento dissertando sobre gatos em seus contextos doméstico e
arquetípico. Isso para se conduzir à
culminância de seu voto através das reminiscências de sua infância: nas madrugadas frias, seu gato buscava
conforto na cozinha. Conclusão: "Não
por um gato dormir num forno quente que amanhece pão. Cooperativa é cooperativa; banco é
banco." Importa questionar: o
que estava em jogo e suscitou o então decano da 1ª Seção do Superior Tribunal
de Justiça, diante da divergência entre seus pares sobre o tratamento jurídico
adequado ao caso, a sintetizar seu voto numa formulação argumentativa A=A; B=B?
Tanto mais relevante para o Direito
Cooperativo se torna a indagação, quando a posição jurisprudencial uniformizada
por aquele famoso julgamento, dez anos após, foi abalada por um outro
julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal com repercussão geral sobre
a mesma matéria de lei, no qual a singularidade das cooperativas face aos
agentes de mercado foi colocada em xeque no que se refere aos seus significados
operacionais. O Min. Luiz Fux, presente em ambos os julgamentos, votou favoravelmente em ambas as teses opostas. E como ele justificou isso? "Trago uma mudança de concepção (....) na gênese do cooperativismo havia realmente essa ideia de solidariedade, mas que já avançou e muito. (....) Embora eu tenha achado muito sugestiva aquela afirmação (....) de que gato é gato, pão é pão; banco é banco e cooperativa é cooperativa, a verdade é que hoje há uma cortina de fumaça que não nos permite ver aquela velha cooperativa de outrora nas cooperativas de hoje".
Ora, uma evidência de que uma questão de
imaginário social instituinte perpassa ambos os julgamentos é o aparecimento da
neologia neocooperativismo, que no
tempo em que se reivindica a identidade cooperativa
financeira, expressa com ela uma relação tensa, eis que o neologismo se
presta à reivindicação de alteridade por entes cooperativos que recusam uma
subordinação de sua própria identidade ao logos
do mercado financeiro, quando assumem sua afinidade com a economia
solidária. Sintomático que o
neocooperativismo se afirme resgatando uma identidade originária que, suposta como uma verdade nua e crua no plenário do Supremo Tribunal Federal, está meio que perdida dentro de uma cortina de fumaça.
Se lembrarmos que Parmênides e Heráclito têm em
comum a identidade e diferença como preocupação com a qual erigiram há 26
séculos uma linguagem que deslizou da narrativa e do mito para dizerem verdades, esse julgamento no STF, no confronto com que julgara o STJ, sugere que as razões estão em jogo no interior das cooperativas financeiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário