terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Diálogo e Fé

Serão o erro ou a mentira os opostos do pensamento?  Quem erra, está pensando errado.    E quem mente, pensa a mentira que conta.  E a convicção?  Quem é convicto de algo, já não pensa nisso, pois o pensamento aí é dado.

Uma das mais traiçoeiras convicções contemporâneas flerta com os direitos humanos.  Longe de mim negar a dignidade humana, mas é perceptível no discurso banal sobre direitos humanos que o humano é dado pelo direito.  Se toda diversidade, liberdade e igualdade passa a ser uma questão de direito, quem é afinal um ser humano?  Esquecida a ambigüidade ética e ontológica do ser aí, é um ser menos quem do quê vazio, embora preenchido de conquistas políticas para si. 

Mas, a velha hybris trágica, tão antiga memória de nossa mortalidade quanto são as Fúrias divinas, mesmo escanteada na convicção contemporânea convicta de seu humanismo, se mostra nos ressentimentos dos seres mimados em meio a tanta expectativa de direito nessa panaceia iluminista. 

O noticiário tem oferecido oportunidade para a lembrança de um filme ítalo-francês datado de 1960, contando com a inesquecível Jeanne Moreau no elenco.  Trata-se do Le Dialogue des Carmélites.  Uma curiosidade é tratar-se de uma adaptação da obra última de Georges Bernanos, um escritor que por aqui no Brasil esteve exilado durante os sombrios anos da última ocupação em França.

O argumento do filme constrói a trama com um conceito.  A partir do querigma, é possível compreender a coerência nos destinos das protagonistas (a personagem de Jeanne e a Irmã Blanche).  Diante da escalada de violência nos acontecimentos históricos retratados, uma se propõe resolutamente ao martírio pela fé.  A outra duvida de sua própria fé e questiona  o martírio.  À primeira o martírio é recusado, mas a segunda, apesar de suas ressalvas, lança-se  a ele.  Ambos  destinos em contraste são libertadores.

O querigma no contexto de hoje não só diz do que tenho a dizer ou fazer valer da fé professada, mas sobretudo do que a fé diz e faz do outro para mim para que eu espere algo de amoroso para dizer e fazer a ele.  É o que o Papa Francisco veio dizer:  "A experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente no amor.  Neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer, enriquece nosso olhar". 

Onde os ideais iluministas se enraizaram na cultura, os receios de cerceamento da liberdade e da perda da autonomia do sujeito por imposições intransigentes tendem a exilar a verdade nos fatos e cálculos e a encarcerar o amor, a esperança e a fé no interior dos nossos afetos. O que até é capaz de confortar o indivíduo, mas faz o amor, a fé e a esperança difíceis de serem propostos como realizações comuns.

Se é difícil compreender que as confissões abrâmicas não podem ser reduzidas a uma amálgama de variantes subjetivas da espiritualidade e plexos objetivamente patriarcais em uma ingênua leitura de Estado laico a partir dos ideais iluministas, o querigma pode ser uma armadilha para o crente orgulhoso ou ressentido. Levada ao extremo na política, essa leitura induz ao desejo violento de reparação à ofensa como mortificação pela fé, conquista de vida eterna e merecimento ao amor divino.  Eis a degeneração do querigma num frenesi de morte:  a ilusão de que com a observância meticulosa de textos de Lei, e não com a misericórdia, garante-se a justificação - a salvação eterna.   

O querigma pode ser sintetizado assim: Deus é amor e o amor tudo vence; vence até a morte. Significa dizer que a vitória sobre o mal não é futura por dependência da ação humana; ela já se deu na revelação dos dons de Deus - a fé, a esperança e o amor - que inspiram as virtudes cardinais: temperança, sabedoria, fortaleza e prudência.  O que não temos é a compreensão de todo o alcance desse absoluto já revelado.  Essa compreensão plena de toda verdade da fé por todos é esperada para o fim dos tempos.

Se a compreensão por todos de toda a verdade da fé é futura, guarda esperança de salvação para todos até o final, pois assim como era no princípio, agora e sempre, a verdade é atraída para um norte: a presença do amor. A dificuldade de compreensão dos fatos recentes pelo esclarecimento, no sentido dado pela modernidade é a seguinte:  não é que religiões diversas se equivalham em explicações lógicas e observações de causas como um sobrevôo do eu  sobre si no mundo. Significa antes a recepção amorosa de cada um dos credos no que nelas é único, verdadeiro, absoluto. Em cada uma, em diálogo, encontrar essa unicidade, essa verdade e esse absoluto que se encontram na diversidade das sutilezas.

O Estado permanece laico, quando trata cada religião como única em sua singularidade.  Trata-se de uma hospitalidade no espaço público para com cada pessoa religiosa. É difícil, pois a singularidade de cada religião exige que o Estado esteja poroso e integrado às religiões e ainda preserve a opção de alguém ser ateu. É um desafio permanente, mas em cada tradição religiosa o Estado laico pode reconhecer aquilo que está identificado com suas próprias valorações dirigidas para o bem comum. 

O desafio se encontra na dinâmica entre liberdade, transgressão e reparação.  Em qualquer caso, ainda que haja reparações a fazer, a existência do transgressor é fundamental para a própria vivência histórica da fé. Para que ela não se degenere nem em tolice, nem em crueldade.  De certo modo, este é um sentido revelado desde a luta entre Jacó e Deus com a qual seus filhos vieram a ser filhos de Israel. Daí o lugar da transgressão na coexistência humana, na qual o amor e a esperança são fontes da tolerância e do perdão.  A transgressão é o que põe a humanidade em movimento na direção do fim dos tempos, que vem a ser compreensão plena de toda verdade da fé.  .  


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