Sob
a perspectiva do discurso institucional da Aliança Cooperativa Internacional
positivado na sua Declaração sobre a Identidade Cooperativa publicada em 1995, "as cooperativas se baseiam nos valores
da ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e
solidariedade. Seguindo a tradição de
seus fundadores, seus membros creem nos valores éticos de honestidade,
transparência, responsabilidade social e preocupação pelos demais." Juan Luis Moreno, debruçado sobre o Informe (Analítico) da ACI sobre a
Declaração sobre a Identidade Cooperativa,
esclareceu que "com relação a
sua ética normativa, a ACI é utilitarista e entende os valores cooperativos
como meios para alcançar um valor último, condições ótimas de vida
humana".[i]
Ocorre que a Declaração
sobre a Identidade Cooperativa não explicitara qual é este valor último, que em
um discurso utilitarista se evidenciaria se expressas quais seriam essas
condições ótimas de vida humana. Em
2013, a ACI então publicou seu Plano de Ação para uma Década Cooperativa, no
qual afirma: "Em 2020, teremos de ser capazes de voltar a olhar para 2012 como
representando o ponto de viragem no ideal cooperativo, e o contributo que deu
para a segurança, bem estar e felicidade das pessoas." No discurso institucional da ACI, portanto, a
felicidade se apresenta então como o valor último, o norte polar para o qual se
voltam as práticas utilitaristas de otimização das condições de vida humana - a
economia da felicidade a que se
refere o documento da ACI.
Qual sentido de
felicidade que pode articular o discurso institucional da ACI e a ética pelo
magistério eclesiástico? O descanso da
vontade na consecução (participativa) do que for percebido como bem comum
duradouro (sustentável). Na tradição
aristotélica, a definição do bem é determinada por um plano racional de vida
que uma pessoa escolhe (vontade manifesta) a partir de um grupo superior de
planos. Daí, o bem de uma pessoa é a
execução bem-sucedida de um plano racional de vida. A felicidade então é reconhecida como bem último
por ser autossuficiente:
Um
plano racional, quando implementado com confiança, torna a escolha de uma vida
totalmente válida e não exige mais nada.
Quando as circunstâncias são particularmente favoráveis, e a execução
especialmente bem-sucedida, nossa felicidade é completa. Na concepção geral que buscamos seguir, não
falta nada de essencial, e não existe possibilidade de melhorá-la de forma
significativa.[ii]
Portanto, essa felicidade
escatológica, radicalmente pessoal, não está reduzida à consecução de um bem
incognoscível. Ao contrário, recorrendo
à tradição aristotélica, os bens humanos mostram-se numa teleologia com a qual
as atividades assumem um lugar de destaque nos planos racionais. Trata-se de um pressuposto ético
regido pela relação racional entre meios e fins. Essa ética formalizada pela razão, no
entanto, não dá conta da carga emotiva que polariza a decisão de constituir uma
cooperativa.
Fica, outrossim, pendente
de solução encontrar uma felicidade pessoal que venha a ser completa em comunidade. Se as heteronomias inerentes às diversidades
existenciais reconhecíveis nas sociedades contemporâneas colocam em xeque
soluções exclusivamente utilitaristas, antes de falar em subjetividades, posto
que o sujeito é plural, a chave ética está na alteridade que não se reduz a um
imperativo ético, mas que aponta para a possibilidade de pensar a felicidade
completa como uma dimensão sabática da existência, horizonte de gratuidade, de
encontro de uma relação dialógica entre o "eu" e o "tu" que
se enriquecem mutuamente. Tanto quanto o
sujeito é plural, outros são o "tu".
É o "tu" totalmente outro quem dirige todo o processo de
realização do "eu" pela diversidade
de sua vigência. Na presença espectral de um terceiro, "Eu" e
"Tu" se constituem reciprocamente num evento ontológico de identidade
e diferença [iii].
Daí, a advertência de
Martin Heidegger na sua memorável conferência proferida na Universidade de
Freiburg em 27.06.1957 sobre o Princípio
da Identidade:
A
fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A, não diz apenas:
cada A é ele mesmo o mesmo. Em cada
identidade reside a relação "com", portanto, uma mediação, uma
ligação, uma síntese: a união numa unidade.
Por isso, a identidade aparece, através da história do pensamento
ocidental, com o caráter da unidade.
Mas, esta unidade não é absolutamente o insípido vazio daquilo que, em
si mesmo desprovido de relações, persiste na monótona uniformidade." [iv]
Necessariamente através de linguagens plurais e multiformes que o ser humano vai
sendo descoberto no fluxo da existência.
Tanto quanto o ser humano conduz uma linguagem, as linguagens o lançam
na pluralidade de suas relações pessoais,
nas quais alguém vai percebendo nuances disso ou daquilo por interagir e
assim se revelar para si mesmo a partir
da presença dos outros. Este sentido é
encontrado no parágrafo vestibular da monumental obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, que se mostra relevante
para o Direito por sua evidente implicação hermenêutica:
"Adormeço". (....) não havia cessado de
refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma
feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o
livro: uma igreja, um quarteto, a
rivalidade entre Francisco I e Carlos V.
Essa crença (....) não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu
sobre os olhos (....). Depois (....) o tema da obra destacava-se de mim,
ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele (....)."
De modo que a felicidade
completa não provém de todo com uma adequação formal de meios à sua realização
finalística, senão na realidade do "nós". Pois as linguagens, moradas
do ser, tornam mundo um comum-pertencer: a mesmidade entre pensar e ser.
É pertinente notar que
padres costumam ser lembrados em estórias de mobilização de comunidades para a
criação de cooperativas que são bem-sucedidas.[v] Há uma resposta possível a essa questão na
encíclica Caritas in Veritate: “Se o
amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma
previdente e justa competência como significativamente indicam muitas
experiências no campo do crédito cooperativo (....)” (§65). Neste sentido, o Papa Francisco discursou em 28
de fevereiro de 2015 aos representantes da Confederação Cooperativa
Italiana: "Não digo que não se deve crescer no rendimento, mas isso não é
suficiente: é necessário que a empresa gerida pela cooperativa cresça
deveras de modo cooperativo, ou seja, envolvendo todos. Um mais um é igual a
três! Esta é a lógica."
O magistério eclesiástico
colabora com a ordem econômica constitucional ao reconstituir essa escolha
original, imaginária, em que ser sócio de cooperativa é algo que remete, de
alguma forma, a uma devoção de vida e uma vocação, ambas dirigidas ao proveito
comum. E não simplesmente algo
resultante de contas cambiantes de vantagens e ônus, incentivos e sanções
disciplinares, custos e margens. E, mais
importante, que ambos os sentidos não são excludentes, mas complementares.
A lógica a que se referiu
o Papa Francisco à propósito das cooperativas não é razão formal, daí seu jogo
de palavras. Mas, é razão primordial -
uma imagem estritamente metafísica da perfeição, que é um princípio genético
de liberdade e poder e, ao mesmo tempo, encarnado num apaixonado, alguém
arrebatado por um amor escatológico, que vem a ser ágape, conforme a Encíclica Deus Caritas Est:
"Em
contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo
exprime a experiência do amor que agora
se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta
que antes claramente prevalecia. Agora, o amor torna-se cuidado do outro e pelo
outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da
felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto
ao sacrifício, antes procura-o". (§ 6°)
Pensar em ágape como
felicidade completa e fundamento primeiro e fim último do bem comum - "Conjunto de condições da vida social que
permitem, tanto aos grupos como a cada pessoa humana em comunidade alcançar
mais plena e facilmente a própria perfeição" (Constituição Vaticana
Felicidade e Esperança) - é resgatar para o cidadão
organizado em cooperativa a nobreza em sua servidão que consubstancia a
preocupação com a comunidade como princípio universal de identidade cooperativa. Algo transcendente aos direitos e obrigações
e aos cálculos de utilidade. Então, já não é o Estado, nem a cooperativa
os promitentes de uma felicidade pessoal sempre posta adiante; construtores de
uma utopia. Uma comunidade organizada em cooperativa sob o Estado
soberano já vem a ser esse lugar, ainda que prenhe de esperança por dias
melhores.
Para dar materialidade
à ética, e com isso, evidenciar a cooperação numa escolha que constitui a
cooperativa em sua originalidade, é preciso primeiro admitir o postulado de que
a qualidade dos bens, as aspirações ou a necessidade não fundam os valores, mas
são valores que dão aos bens qualidades, orientam as aspirações e dão sentido
às preferências face às necessidades sentidas.
Dito
em outras palavras, a questão dos valores que qualifica uma sociedade como
cooperativa e que constitui sua adequação é, depois de mais nada, um
reaprendizado em ver o ato constitutivo de uma relação jurídica societária
cooperativa como um ato de preferência.
A materialização da ética pelo sentimento permite revelar o que de
essencialmente válido existe na cooperativa.
Se for verdade que os
valores são reais e transcendem a afetividade, eles só aparecem na medida em
que a eles se voltam os sentimentos.
Outrossim, precisam ser refletidos para uma análise transcendental, ou
seja, para a tomada de consciência de si mesmo como ser racional, dos valores
que visam e da hierarquia axiológica que sintetizam.
Mas, essa consciência
imediata do bem do ato que é cooperativo nem sempre se realiza no cotidiano dos
negócios das cooperativas, pois as escolhas ocorrem num emaranhado de símbolos,
pensamentos, informações, discursos, desejos, as circunstâncias. Por isso, é necessário o recurso a enunciados
lógico-formais do dever-ser e as
prescrições como referências para o discernimento da moral em sua
historicidade.
Em que pese a utilidade
do recurso, e até por sua contingência, não se pode prescindir de voltar para
os valores, em seus absolutos e para a hierarquia axiológica que o fundam aquém
e além dos homens, que variam de sensibilidade, seja individualmente, seja coletivamente.
Só então se poderá salvaguardar a cooperação, sendo garantida também a
existência das cooperativas como uma possibilidade.
Desde
já então fica evidente que a cooperação é um valor vital existente para o
Direito antes mesmo de qualquer positivação e que é suportada por normas
jurídicas. A cooperação é o
valor com o qual pessoas se afetam para servirem umas às outras. Não se está aqui se referindo a um sentido
hoje mais comum de prestação de serviços, como atividade de circulação de bens
imateriais no mercado, mas exatamente a sua reversão, conquanto originalmente a
servidão contrasta com a idéia de mercado.
É
essa servidão recíproca (mútua) a suficiência, o afeto bastante, a escolha
vital, livre e digna de que a cooperação diz.
É essa servidão recíproca o sentido integrativo na originalidade de uma
vivência que remete à nobreza, à democracia, à solidariedade.
[i] MORENO, Juan Luis:
"Los valores según la Alianza Cooperativa Internacional". CIRIEC. Revista
Juridica de Economía Social y Cooperativa, n° 25, 2014. p. 20
[ii] RAWLS,
John: Uma teoria da justiça. Trad.
Almiro Pisetta e Lenita Maria Rimole Esteves.
Martins Fontes, São Paulo, 2002. pp.
611-612
[iii] BRIGHENTI,
Agenor. "A ação pastoral em tempos
de mudança: modelos obsoletos e balizar de um novo paradigma". Paulus.
Vida Pastoral. n° 302.
Ano 56. Mar-abr 2015.p. 33
[iv] HEIDEGGER,
Martin: Que é isto - a filosofia; identidade e diferença. trad. Ernildo
Stein.
Duas Cidades, São Paulo, 1978. pp. 50-51
[v] SCHNEIDER. José Odelso.
"A relevante herança social de Pe. Amstad SJ" Instuto Humanitas/Unisinos. Cadernos IHU Ideias., n° 213, vol 12, ano 12, 2014 . pp. 17-20
Estimado Prof. Krueger:
ResponderExcluirEs un orgullo que construya sus reflexiones sobre mi trabajo de 2014 en la revista de CIRIEC España.
Un placer leerle. Espero nos encontremos pronto en algún congreso. Si no recuerdo mal, no nos hemos visto desde el congreso de Guarujá, o tal vez desde la jornada en Rosario con la prof. Fajardo.
Muchas gracias.
Un cordial saludo,
Juan Luis
Prof. Juan Luis, boa tarde!
ExcluirQue bom receber um comentário seu. Aproveitando, te informo que a CIRIEC-Espanha publicou em sua edição de 2015 um artigo aplicando essas reflexões a um estudo de caso. Ali volto ao seu artigo publicado na edição anterior. As citações ilustram o quanto gostei de ler o seu artigo. Penso que temos abordagens complementares sobre a ética da cooperação na ordem econômica. Gostaria muito de termos oportunidade de avançarmos um diálogo. Pode me indicar outros textos seus sobre o tema?
Um 2016 repleto de alvíssaras!
Seu admirador Guilherme