domingo, 22 de dezembro de 2013

Não consumi afeto num pet shop: Não descartei os incômodos de morrer por alguém

"É morrendo que se vive para a vida eterna."
Oração de S. Francisco

Durante alguns anos, eu me questionei acerca de uma aparente contradição:  como um anarquista que fui na juventude se tornou um católico na maturidade?  Um amigo já me confessou ter guardado uma lembrança marcante do dia que lhe disse reconhecer absolutamente verdadeiros os dogmas da Igreja.  Eu também me lembro desse dia:  "É uma renúncia.  Exercito a humildade." Esse, o argumento que lhe ofereci.   

Sou cooperante de uma prelazia nascida na Espanha às vésperas da guerra civil.  Eu, que havia escrito uma monografia de graduação que a faculdade promoveu - o herói Apolônio de Carvalho foi convidado para a banca.  Proseei a economia catalã no biênio 36-37. A pedido desse herói, a monografia recebeu este título:  Utopia escrita com sangue.  Meu orientador chamou-me naquele dia de intelectual orgânico, mas  hoje habito a terra de ninguém e me ponho na linha de tiro dos que se mataram há 80 anos atrás.


Intuí uma fidelidade no avesso do avesso.  Quando muitas das bandeiras libertárias no âmbito da sexualidade se banalizaram, revalorizo a gratuidade dos vínculos familiares e  encaro a sua constância como a superação mais valiosa.  Divórcio é palavra riscada do meu dicionário de ideais.

Encontro no magistério da Igreja uma expressão significativa dessa superação mais valiosa.  E a veia anárquica ainda pulsante é essa:  por que não?  Sim, aceito os dogmas por guardarem esse valor.

Eis a expressão:  

"Nos últimos meses, quando se discute sobre o Papa Francisco, a imprensa de esquerda tem aproveitado todas as oportunidades para avançar em uma 'narrativa de ruptura', alegando que Francisco está repudiando essencialmente quase tudo que os papas João Paulo II e Bento XVI representavam. (....) Como João Paulo II e Bento XVI antes dele, Francisco discerne a continuidade entre uma economia do "descartável" e uma visão "descartável" da vida humana. Ele vê a profunda conexão subjacente entre uma economia que destaca a autonomia, a escolha infinita, as conexões frouxas, a excitação constante, o utilitarismo e o hedonismo, e uma cultura sexual que tolera o “ficar” aleatório, o aborto, o divórcio e a redefinição do casamento baseado no sentimento, e em que os fracos – crianças, neste caso, e aqueles na escala socioeconômica mais baixa que estão sofrendo uma devastação completa da família – são uma reflexão tardia."  
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526531-alguem-pode-fazer-esse-papa-calar-a-boca-artigo-de-patrick-j-deneen

A pista do que aconteceu comigo se encontra na minha paixão por cooperativas.  Cooperativas são valorizadas tanto pelos anarquistas como pelos católicos.  O que há na proposta de cooperativas que a fazia um ideal comum entre pessoas que se matavam em Catalunha como inimigos inconciliáveis naqueles anos sombrios e heróicos?

Comunidade.  Um sincero amor encontrável no sentido de comunidade em tudo que sonhavam.  Um amor que as ideologias vigentes ocultavam.   O que não sabiam com essas ideologias?  Que comunidades só podem subsistir em sociedades se prometido o convívio com o incompreendido.  É esta promessa uma recusa da felicidade como ditadura e da liberdade como erraticidade.

A diferença entre anarquistas e católicos está na ideia de que ser humano bastante de si mesmo é o ponto de partida para uns, conquanto para outros só o outro personificado em Deus pode ser o início de tudo.  Tudo mais foi frenesi e brutalidade autojustificada entre meios e fins.  Toda violência girava em torno das provas de quem tinha razão.



Foto1: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/apolonio-de-carvalho-homenagem-aos-100-anos-de-um-libertario.html

Foto2:  http://www.cortocabeloepinto.com

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Quando a crítica literária é literatura


O Suplemento de Prosa e Verso do jornal O Globo do último sábado nos brindou com duas críticas literárias que me maravilharam.  Por isso, vou reproduzir uma aqui.  É de Luis Fernando Carvalho, que está dirigindo uma adaptação da obra para a TV.  E a outra saiu na coluna do José Castello.  Boa leitura!


A CONSCIÊNCIA DOS SONHOS


Quando você conhece e convive com escritores — digo na minha vida particular — e ali, na imensa maioria dos papos sobre predileção literária, um único nome é repetido por gente muito diferente, é coisa para se levar a sério. Mesmo que você não se interesse tanto por literatura, pouco importa, quando um dia se deparar com um Graciliano entre as mãos e tiver a coragem de arregaçar em qualquer página e largar os olhos, duvido muito que a leitura não te arraste fácil para as páginas seguintes. Isso é comum na história da literatura. 

Sempre houve aqueles que eram os faróis da turma, que atravessaram gerações e gerações espalhando luzes. Pergunte ao Paul Auster quem ele lia direto. Pergunte a Ian McEwan. Ou passe os olhos nos diários de Borges, você vai encontrar a mesma resposta: William Faulkner! Num certo sentido, Graciliano Ramos é nosso Faulkner, nossa luz, não na mesma linguagem ou estilo, que nisto são diametralmente opostos, mas no manejo com os vocábulos, na precisão simétrica. Era como ele próprio dizia: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

A cada dia de gravação de “Alexandre e outros heróis” meu esforço e dedicação soavam mais e mais inúteis quando me lembrava destas palavras do escritor. Que conjunto de imagens seria este, capaz de articular uma narrativa que representasse o rigor de uma forma que se equivalesse à verticalidade de seu conteúdo moral, sem que com isso se perdesse o gesto cômico tão presente no enredo? Poucas imagens se sustentam — eu pensava. Mas, afinal, que entrelinha moral era essa que eu tateava? No meu modo de ver, a fábula de Alexandre não se interessa apenas pelo bem e pelo mal como as fábulas europeias do século IX. Nas entrelinhas de Alexandre há a simpatia cordial pelos fracos e injustiçados. Seu sentimentalismo mal dissimulado é o protesto de um coração sensível contra o materialismo implacável deste mundo. 

Talvez por isso, muito se diz que as histórias de Alexandre são quixotescas. Entendo aonde querem chegar, mas, apesar de entrever aí um imenso grau de elogio, não concordo. Dom Quixote estava sempre escolhendo entre o bem e o mal, mas fazia essas escolhas em seu estado de sonho, e só entrava na realidade quando estava tão ocupado tentando lidar com as pessoas que não tinha tempo para distinguir entre o bem e o mal. Ao seu modo, comprometido com a realidade que o cerca, Alexandre cria pela imaginação um mundo que o compensa de sua penúria. Ele fustiga a realidade e a enfrenta, investigando-a com seu olho transpassado. Não um olho de inventar maravilhas, mas o olho torto, de ver claro a moral das coisas. Ora, como nós só existimos em vida e na vida, precisamos dedicar nosso tempo a estarmos vivos. Por sua vez, vida é movimento, e o movimento está ligado àquilo que faz com que a humanidade se mova: amor, poder, ambição, prazer etc. O tempo que um homem, nos dias de hoje, terá para dedicar-se às questões de relevância moral, ah!, ele o terá que arrancar à força do movimento do qual faz parte para que aí então possa continuar a viver consigo mesmo no dia seguinte.

Em Alexandre, este anseio moral se expressa através de sua imaginação que é em si a marca de sua audácia: a necessidade de sonhar e de compartilhar este sonho. Portanto, sua utopia vai além, mais justa e lúdica consigo mesmo e também para com seu bloco de sujos, sua audiência de excluídos: um cantador de emboladas, um cigano sertanejo, uma benzedeira, um cego. Excluídos do mundo da produção e do trabalho, parecem adquirir, assim, com o estigma da marginalidade, uma aura sagrada. 

As histórias de Alexandre, se não são originais e se pertencem ao folclore do Nordeste, obedecem a um sentido definido. Este homem que fala a ouvintes obscuros mantém, por meio da imaginação, a capacidade de evocar, sob uma forma mítica, a existência de um mundo melhor do qual todos deveriam compartir. Sua substância como personagem não é a de um vulgar contador de vantagens. Alexandre representa a memória de um Imaginário. E, assim como nós, caminhando sobre o real dos dias, Alexandre terá sempre que fazer a tal escolha entre o bem e o mal. Sua consciência moral (como a nossa) parece ser a maldição que tem de aceitar dos deuses a fim de obter deles o direito de sonhar. Mas a consciência de Alexandre é o seu bem maior. E então, de sonho em sonho, sua natureza o coloca lúcido diante do todo, com a consciência de que foi criado e que não está vagando cegamente pelo paraíso.

Fonte:  http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/

François Ost: O direito é dialética e justa medida entre a vingança e o perdão e entre a força tirânica e a tolerância complacente

O Instituto Humanitas da Unisinos entrevistou o professor das Faculdades Universitárias de Saint-Louis em Bruxelas, na Bélgica e presidente da Academia Europeia de Filosofia do Direito. Reproduzo integralmente a entrevista, que dispensa comentários.  Boa leitura!


IHU On-Line - Qual é a relação que pode ser estabelecida entre vingança, punição e perdão sob uma perspectiva do Direito?
François Ost - Na perspectiva do direito, somente a punição, no sentido de uma sanção imposta por um tribunal público, é jurídica. A vingança é infrajurídica, e o perdão, suprajurídico. A vingança tende, potencialmente, para a acusação, e esta para a violência incontrolada, ao passo que o perdão tende potencialmente a atrair para o dom, o abandono (das ofensas) e, finalmente, o amor, que, como se diz, “não conta”.
Contudo, a figura intermediária da sanção legal não é totalmente estranha a estas duas lógicas antagônicas; ela comporta, com efeito, uma dimensão retributiva não eliminável. E, ao contrário, podemos notar que o adágio da antiga lei do talião, “olho por olho, dente por dente”, comporta uma dimensão de equivalência e de justa medida que já representa um progresso considerável em relação à vingança. É este mesmo princípio de equivalência e de proporcionalidade que se encontra na dimensão retributiva da sanção penal e na dimensão compensatória da sanção civil.
No outro extremo do espectro, não podemos negar que a dimensão do perdão inspira, às vezes, o juiz ou as vítimas no quadro dos modos alternativos de justiça (conciliação, mediação). Nota-se a este respeito que o desejo essencial das vítimas é o reconhecimento de seu estatuto de vítima e a realidade das ofensas sofridas, mais do que a sanção da vítima. Uma solução intermediária consiste na condenação apenas simbólica do autor da falta (declaração de culpabilidade e estigmatização moral na ausência de outras sanções). Mas, eu repito, no sentido jurídico do termo, somente a sanção é estritamente legal. A vingança e o perdão são um universo privado e pré ou pós-jurídico.
IHU On-Line - Quais são as relações fundamentais que podem ser apontadas entre Direito e Literatura tomando em consideração essas três categorias?
François Ost - Na minha concepção, expressa especialmente no livro Contar a lei. As fontes do imaginário jurídico[São Leopoldo: Unisinos, 2005], a literatura nos convida a pensar os “possíveis jurídicos”. Ao alimentar os nossos imaginários coletivos, ela torna pensáveis, e às vezes desejáveis, alternativas ao direito positivo, e, nesse caso, seu papel civilizador torna-se fundamental (penso especialmente nas análises do filósofo francês Cornelius Castoriádis, consagradas àquilo que ele chama de “imaginário social instituinte”).
Assim, por exemplo, a passagem da vingança privada à justiça do terceiro foi magistralmente experimentada porÉsquilo em sua tragédia Emênides, realizada em Atenas no século VI a.C., num momento em que a cidade grega assentava as bases daquilo que seria a democracia. Nesta peça, um matricida, Orestes, é, pela primeira vez, arrancado dos braços da vingança familiar e divina, encarnada pelas terríveis Erínias, e julgado por um júri composto por cidadãos atenienses ao final de uma troca regrada de argumentos e de um voto majoritário.
A revolução assim operada é considerável: ela assinala a entrada no universo do Direito, uma vez que se cessa de fazer justiça com as próprias mãos e se entrega a resolução do litígio a um terceiro imparcial.
Do outro lado da cadeia, a literatura pode também defender a ultrapassagem da justiça estatal e sua entrada no universo do ágape, do amor que não conta; livra-se então da lógica da compensação e dá-se ou perdoa-se, sem esperar retorno. Uma obra como Ressurreição (São Paulo: Casac Naify, 2013), de Tolstoi, inscreve-se nesta veia evangélica que coloca com força a seguinte questão: “quem somos nós para julgar?”.
IHU On-Line - Que obras são emblemáticas em estabelecer um nexo mais profundo entre esses dois campos do conhecimento?
François Ost - Essa escolha é, evidentemente, pessoal, tão numerosas são as obras literárias que entram em diálogo com o direito. De resto, o corpus, ou cânon, literário que serve de base para a corrente “direito e literatura” não é objeto de uma determinação fixa ou definitiva. O que chamamos de “literatura”? O romance popular, o thriller e a literatura oral certamente não deveriam ser descartados. E onde fixar o limite entre o relato jornalístico de um fato qualquer e um grande romance extraído das mesmas circunstâncias?
Feita esta precisão, eis algumas obras que alimentaram muito o meu trabalho: algumas páginas da Bíblia (a Lei no Sinai, a sua relação com o Protágoras de Platão), quase toda a tragédia grega (Antígona pela resistência à injustiça,Eumênides pela passagem da vingança à justiça), Robinson Crusoé (por pensar o individualismo moderno, e suas traduções jurídicas, a propriedade e o contrato), Fausto e Don Juan (pelas figuras transgressoras do sujeito moderno), e depois também Shakespeare (seria necessário citar tudo; retenho, especialmente, sua reflexão contínua sobre “os dois corpos do rei”), Balzac (sua Comédia Humana é uma exploração crítica do Código Civil de 1804), Kafka(cuja vida e escritos são uma batalha permanente com a Lei). Seria necessário, além disso, evocar Cervantes,MelvilleTolstoiDostoiévski e tantos outros.
IHU On-Line - Quais foram as principais mudanças pelas quais passou o conceito de justiça até nossos dias?
François Ost - Para responder à sua pergunta, é preciso distinguir a justiça como instituição e a justiça como virtude ou como valor. Enquanto instituição, podemos dizer que ao longo dos séculos a justiça se racionalizou, profissionalizou e ampliou. Ela foi se libertando progressivamente das suas origens mágicas (as provas ordálicas ou “julgamentos de deus” cederam lugar às provas materiais, e os raciocínios argumentados substituíram as palavras encantatórias, as imprecações e as maldições). Ela também deixou de ser exercida pelos mais velhos e sábios. Como Max Weber mostrou, ela tornou-se progressivamente o apanágio de juristas profissionais, especialistas do processo. Enfim, ela não cessou de ampliar seu campo de aplicação, desde o clã familiar, nas origens, até a nação moderna; e hoje ganhou o mundo inteiro com a Corte Internacional de Justiça ou a Corte Penal Internacional.
Valor
Se olharmos a justiça como virtude ou como valor, é mais difícil evocar sua evolução em poucas palavras, tão múltiplas são as acepções da noção, desde Aristóteles até Rawls, passando por Santo Tomás e Marx. Eu percebo, no entanto, um aspecto central na noção, simbolizado pela imagem da balança: é a busca de uma certa igualdade que vê que tratamos de maneira igual todos aqueles que se encontram em situação semelhante. Mas o que é uma “situação semelhante”?
Hoje, em regime dos direitos humanos, já não aceitamos mais um sistema de castas, por exemplo, que, no entanto, trata de maneira igual os membros situados na mesma casta, porque acreditamos que, de acordo com a situação genérica de “seres humanos”, a pertença a uma casta é uma categoria não pertinente e, portanto, discriminatória.
Também começamos a considerar que os futuros habitantes do planeta participam da nossa comunidade moral e política e, como tal, as exigências de tratamento igual se aplicam também a eles (poderíamos argumentar, por exemplo, que nós não temos nenhum título para exercer em relação a eles um “direito de maioridade” intergeracional e de privá-los do igual acesso aos recursos vitais).
IHU On-Line - Nesse sentido, a justiça é a mesma para todos?
François Ost - É o desejo da justiça ser a mesma para todos, e progressos consideráveis foram realizados nesse sentido ao longo da história: penso, por exemplo, na luta contra os privilégios de jurisdição, as impunidades (políticas) e os tribunais de exceção; penso também nos esforços realizados para facilitar o acesso dos mais pobres à justiça ou para fornecer a todos tradutores competentes. É preciso, entretanto, muito para que esse desejo seja de fato plenamente realizado (e uma abundante literatura não se furta a denunciar isso — basta evocar as Fábulas de La FontaineDickensHugo). No plano filosófico, o francês Jean-François Lyotard propõe uma distinção muito útil entre o litígio clássico e aquilo que ele chama de “diferendo”; no litígio clássico, as partes são evidentemente opostas, mas o litígio encontra uma solução aceitável mesmo para o perdedor, porque foi traduzido numa linguagem jurídica compreensível e significativa para as duas partes.
Ao contrário, em um “diferendo”, o código jurídico da realidade permanece amplamente incompreensível para uma das duas partes, de sorte que a decisão jurídica que intervir aparecerá como uma real violência. Ela terá o sentimento de não ter sido entendida e que seu dano permanece irreparável ou que sua condenação é infundada. É por isso que o filósofo Paul Ricoeur tem razão ao enfatizar que a justiça contentou-se em “atribuir a cada um o que é seu” (suum cuique tribuere) — nesse caso teria havido uma restituição, mas que reforça a ordem social em vigor, que pode ser muito desigual. Ricoeur explica que além desta “atribuição das partes” de cada um, a justiça deve centrar-se na tentativa de retomar o vínculo social perturbado criando as condições para que cada um possa “fazer (ou novamente) parte” da vida social. Nesta “função longa” da justiça, o objetivo não é mais a simples realização do status quo ante, mas a restauração de uma forma de pacificação ou de harmonização social que leva em conta as condições psicológicas e sociais do “diferendo” no sentido de Lyotard.
IHU On-Line - Pensadores como Giorgio Agamben  acentuam haver uma juridicização da vida. Em que medida o Direito se tornou hegemônico, preponderante sobre as outras instâncias da vida em sociedade?
François Ost - Parece-me que a realidade é mais complexa. Se observamos, com efeito, uma juridicização da vida social, notamos, ao contrário, uma invasão do discurso jurídico por discursos, práticas e valores emprestados de outros setores e disciplinas, tais como, por exemplo, do campo financeiro e contábil, ou do setor medicinal e psicológico, para me limitar a esses dois exemplos.
Há, com efeito, normas jurídicas sempre mais numerosas (o famoso tema da “inflação legislativa”) e mais diversificadas, bem como um aumento considerável dos recursos, nos contenciosos mais diversos (penso na disciplina escolar, por exemplo). Mas a questão mais importante, na minha opinião, é saber “quem instrumentaliza quem”: é o direito, com seus conceitos, processos e valores específicos, que se impõe a todos os setores da vida social, ou, ao contrário, é uma lógica gerencial (ou, em outros tempos ou outros lugares, uma lógica religiosa) que se serve do instrumento jurídico para difundir e impor em todas as partes seus próprios cânones? Neste último caso, o retorno ao direito é justificado por duas funções que se espera do jurídico: aquela do notário ou do escrivão, lavrando os principais atos da vida social, e aquela do guarda impondo, ao contrário, as normas sociais consideradas as mais importantes.
Atualmente, é difícil responder à questão que eu coloco, mas dada sua importância, é necessário que a pesquisa jurídica consagre a este tema grande atenção. Da minha parte, coordeno atualmente uma pesquisa interuniversitária sobre a temática da “concorrência das normatividades” e estou escrevendo um estudo intitulado “A quem serve o direito?”. Neste momento, minha primeira resposta é a seguinte: o direito formula uma ordem de arbitragem e de equilíbrio geral, que impõe, na maioria das vezes, sob coação, moderando múltiplos processos para colocá-lo em discussão.
IHU On-Line - Qual é o papel do Direito na construção do estado de exceção nas sociedades contemporâneas? E como podemos compreender o paradoxo que resulta do estado de exceção?
François Ost - Diante de situações excepcionais e urgentes, suscetíveis de colocar em jogo a própria sobrevivência da nação, o direito se acomoda a “estados de exceção”. A própria convenção europeia dos direitos humanos prevê uma hipótese desse gênero em seu artigo 15. É preciso sublinhar, entretanto, que a execução dos estados de exceção, autorizados sob o adágio salus patriae suprema lex, é extremamente perigosa para a democracia e deve ser manejada com grande prudência e sob controle internacional.
Eu recordo a este respeito que a frase “nenhuma liberdade aos inimigos da liberdade” é de Saint Just, o ideólogo deRobespierre, responsável pelo terror que ensanguentou a Revolução Francesa. Isso não impede que, após a Segunda Guerra Mundial e o surgimento das ideologias totalitárias nos anos 1930, no coração de velhos Estados de direito como a Alemanha, a Itália e a França, as constituições entendessem por bem reagir enfatizando que o estado de direito não devia ser um estado de impotência. Não se aceitava mais, sem reagir, o fortalecimento de partidos cujo programa visava suprimir o regime democrático das liberdades, o mesmo que os partidos usam para se desenvolver.
Há, portanto, efetivamente um paradoxo na execução dos estados de exceção: usa-se uma pequena dose de métodos antidemocráticos para proteger melhor a democracia. É o que eu justifico como “método da vacina”: inocular uma pequena dose de vírus para fabricar anticorpos e assim se prevenir contra um ataque da doença.
Encontramos um outro paralelo nas medidas antitruste, preconizadas pelos mais ardorosos defensores do livre comércio, em vista de proteger a concorrência contra os operadores econômicos sempre levados a expandir o seu império e, assim, através de oligopólios e depois monopólios, dar um golpe fatal ao mecanismo de mercado, o mesmo que permitiu que se desenvolvessem.
Se, portanto, os textos jurídicos existentes consagram os estados de exceção, assim como algumas justificativas filosóficas, eu recordo, no entanto, veementemente, que o controle desse “desvio” constitucional é muito delicado e só deveria ser operado por períodos curtos, sob o controle internacional, e no respeito absoluto dos direitos fundamentais.
IHU On-Line - Qual é a atualidade para o Direito da concepção kantiana  de autonomia?
François Ost - Do ponto de vista jurídico, eu responderia que esta concepção kantiana está na base do princípio “a convenção legalmente formada tem força de lei” (autonomia da vontade), que inspira o Código Civil Francês (o célebre artigo 1134). Apesar de uma proliferante legislação estatal, esse princípio permanece sendo a base do direito dos contratos e traduz a vontade liberal de reconhecer ao sujeito de direito a capacidade de criar e transferir direitos.
Do ponto de vista filosófico, é preciso recordar que esta concepção de indivíduo autônomo (isto é, autor ou coautor das regras que ele subscreve) é a essência mesma do sujeito moderno, inclusive do sujeito político — suposto que subscreveu o contrato social, base do vínculo social. Nossa cultura pós-moderna, que tende a exacerbar esta figura do sujeito-rei, no quadro do individualismo triunfante, apresenta o risco de exagerar ao absurdo esta lógica do sujeito político autor das leis às quais obedece. Absurdo, porque uma lei individual não é uma lei comum, nem um limite às pulsões do indivíduo. Uma lei puramente pessoal, como as psicológicas e também a leitura das obras de Sade  nos recordam, é a lei à qual aspira ao perverso que quer impô-la sem levar em conta a lei comum.
Nessas condições, um dos maiores desafios do Direito e da Filosofia do Direito contemporâneos é reabilitar os deveres e responsabilidades que permanecem à sombra dos direitos individuais, inclusive dos direitos humanos, quando, no entanto, são indispensáveis para a sua efetividade e, mais amplamente, para o equilíbrio do vínculo social que é feito, ao mesmo tempo, de direitos e deveres. Não somente no sentido formal, segundo o qual o direito de A implica no dever de B, mas no sentido mais fundamental, segundo o qual a minha liberdade cresce na mesma proporção daquela dos outros, de sorte que a liberdade de todos é a condição da liberdade de cada um (recordemos que o liberalismo nu e cru sustenta, ao contrário, que a minha liberdade termina ali onde começa a do outro).
Para mim, existe uma maneira de sair da oposição estéril e artificial entre os direitos e deveres, que é compreender que uns e outros derivam, como recorda a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da dignidade humana. De resto, o imperativo categórico da moral kantiana já o precisava: “Age de tal modo que consideres a humanidade tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro sempre como um fim e nunca como simples meio”.
IHU On-Line - Quais são os grandes desafios do Direito tendo em vista questões como os refugiados, o terrorismo e a globalização da miséria?
François Ost - Impossível responder de maneira precisa e concreta a essas questões. No entanto, posso dizer, de maneira geral, que o desafio jurídico mais urgente consiste em encontrar uma força jurídica imaginativa — uma capacidade de utopia de que fomos capazes em outras épocas, logo depois da Segunda Guerra Mundial, por exemplo; o desafio é a capacidade de o direito impor ficções que façam sentido e impor uma visão de vínculo social (para mim: um vínculo solidário e duradouro).
Ficções que, por seu efeito simbólico, pedagógico e performático, transformam as mentalidades e inspiram as mudanças políticas futuras (exemplos: o corpo não é mercadoria; a Antártida é patrimônio comum da humanidade). Sem esta mobilização de um imaginário fundador, permaneceremos presos ao pensamento único e aos bloqueios políticos, econômicos e sociais aos quais ele conduz. Eu espero que não necessitemos, como no passado, de uma catástrofe militar, humanitária, sanitária ou ecológica para realizar essa mudança de perspectiva. E observo, de passagem, o vínculo social disto com a literatura que oferece relatos de sentido, às vezes o “romance político” da nação — hoje, o “romance político” da humanidade solidária.
Qual ficção fundadora? Qual visão de mundo? Mais uma vez, não posso entrar na substância dessas questões colocadas. Eu responderia de maneira geral que é próprio do Direito realizar a mediação (o vínculo dialético) entre a força e o bem, entendendo que a força são as relações de força e de interesse que se confrontam no campo político, social e econômico, ao passo que o bem são as diferentes concepções da vida boa que se oferecem a nós.
Um direito que se apoiasse exclusivamente sobre a força seria tirânico; um direito apoiado exclusivamente sobre o bem seria impotente — Pascal já observava isso.
Nesse papel de mediação, pertence ao direito inventar e tornar aplicáveis compromissos que não sejam, no entanto, comprometimentos. Fazer respeitar em todas as circunstâncias o “núcleo duro” dos direitos humanos, concedendo, como no Canadá, “adaptações razoáveis”, ou uma “margem nacional de apreciação”, como na Europa, são, entre outros, exemplos desta postura de mediação.
A aplicação das garantias processuais ligadas ao “processo justo” é outro exemplo. É uma das façanhas mais importantes que podemos esperar do direito: visibilizar os conflitos sociais mais que escondê-los, e, na sequência, encontrar uma saída pacífica para eles.




Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526685-vingar-punir-perdoar-entrevista-especial-com-francois-ost

sábado, 14 de dezembro de 2013

Quando um homem se torna pai



Nenhuma palavra consola necessariamente quem está sofrendo. Nem por isso o Verbo está ausente, pois se condensa numa promessa de dias melhores. A sua condensação, quando consumada, já é encarnação e aí há a oportunidade do Verbo se mostrar mais do que uma verdade: já vem a ser primeiro bondade.

No sofrimento, o face a face é o próprio Verbo na comunhão de quem sofre e quem dele se compadece. Foi para essa revelação como idéia perfeita de si, que o Verbo, num dia como hoje, se fez carne e habitou entre nós. Desde que o Verbo, muito tempo antes, dissera "Saia da casa dos seus pais", Ele já se revelava como pessoa que nos chama por nosso nome. Todos a que o Verbo convocara, responderam. Mas, as respostas sempre tiveram um porém... um medo, uma fuga ou erro, uma fraqueza, uma dúvida... Em todo caso, essas respostas gestaram uma perfeição até que ela foi conseguida, quando uma moça aceitou sem qualquer reserva o acolher em seu ventre como seu Filho.

Bendito seja o fruto do seu ventre, Maria. Pois num dia como hoje, quando a morte rondava as casas da cidade, um homem bom e silencioso salvou a vida de seu Filho e assim se tornou pai. 

Se a própria civilização pode promover a matança dos inocentes, a família se constitui no gozo e na graça do Verbo. E se sagra como esperança de vida e eternidade.




domingo, 8 de dezembro de 2013

O caos e o começo

O caos é a existência indiferente e indistinta,  o acontecimento sem nenhum sentido, a queda no abismo sem fundo entre o antes e o depois.  A falência do instante já para diante de todas impensáveis possibilidades de existir e não existir.  

No início, porém há uma iniciação.  Nessa iniciação, o princípio se revela já como um sentido possível.  Ele já é um salto entre o antes e o depois.  Puro  ato.   O próprio instante já para diante como realização que só alcança plenitude de seu sentido no fim.

Mas, o princípio não já pode ser uma iniciação qualquer, senão eterno retorno.  Já há um conseguimento.    E este conseguimento é uma recusa ao caos: o princípio não pode tender à totalidade, à neutralidade e à temporalidade sem que oculte, mais do que mostre,  o mal.  O princípio, para ser bom, guarda a esperança e o amor até o fim, em que pese o que venha a ser até aí.

sábado, 30 de novembro de 2013

O aí ao ler um livro

Um romance.  Era o que havia em minha frente.  Descobrira-me leitor.  Melhor dizer, fora descoberto.  Já que o autor da ficção me pediu uma leitura antes de terminá-la.  

Ler um livro cujo autor lhe é próximo como uma encarnação visceral, que almoça contigo, lhe fala um pouco de tudo e ri com você é uma experiência emocionante.  Diz tanto dele que só pode ter sido escrito para mim.  

Em nenhuma leitura tive tão nítida essa sensação de entrada num texto - uma necessidade hermenêutica sem a qual não sou um leitor na plenitude da expressão.  Pois ler um livro não é apenas ler seus parágrafos, mas ouvir a eloquência de seus silêncios.  

Meu amigo havia seguido uma indicação minha e está cursando sobre Heidegger com o Gilvan Vogel.  Peguei o livro e as páginas começam a me dizer um texto muito diferente das minhas expectativas.  Um romance sem personagens: eram partes de um projeto discursivo. 

Senti-me traído. Incomodado, mas ainda com boa vontade, insisti. Vivenciar a abertura afetiva à alteridade: gostar de gostar.  Intrigado por uma passagem do livro, na qual aparece Machado de Assis magistral, como, embatuquei eu durante dois dias inteiros, o protagonista pode ser tamanha negação de Machado, já que ele é planície?  E então eis que me veio o sopro:  Ele tem a profundidade de um espelho!

 
Mais duas madrugadas mal dormidas e o livro estava todinho lido.  Como nunca tinha lido um romance.  Sabia dele.  Estava pronto para ajudar meu amigo a terminá-lo.

Não entrei no texto enquanto impus um contexto.  Esperava e queria um quadro a óleo como um fim em si mesmo.  Mas, o livro abriu-se para mim, quando me abandonei por ele: descobri uma série de aquarelas para colorir e e emoldurar o discurso que meu amigo expressa em seu texto.  

aí, antes mesmo de dizer o ser,  já justificou; pois vem a ser lugar de comunhão.

domingo, 17 de novembro de 2013

Rosane, o STF e os brasileiros pardos

Rosane é minha amiga.  Apresentou-me seus pais, seus irmãos.  Li dela algumas páginas de drama.  Outras, divertidas.  Melhor, várias dessas, nas quais me incluo, às vezes, como personagem.   Conheci alguns de seus amores.  Ou, deveria dizer ilusões?  Enfim, Rosane é quem já não cabe em nenhum que para mim.  


Ela outro dia lembrou-se de mim. Compartilhou pelo facebook um post de Liam O'Ceallaigh sobre o Rei Leopoldo II com o pouco sutil título: 


Quando você mata dez milhões de africanos, não é taxado de "Hitler".

Veio este comentário dela:

Esta semana tive uma aula sobre colonialismo aqui na Holanda.. é impressionante como podemos ter visões diferentes sobre o mesmo fato..O livo da semana foi Sarah Tornhill da Kate Grenville ..livro ótimo que você pode ler como só uma história de amor açucarada ou perceber a crítica da autora em relação ao colonialismo e em como se extermina uma cultura..Aqui, em muitos livros, os colonizadores são tratados como desbravadores..tratar colonialismo aqui é tensão na sala de aula... ouvi coisas como:" A África deveria agradecer a chance de conhecer gente civilizada", " Os brancos realmente eram superiores"," Explorar as riquezas foi uma forma de recompensar todo o esforço que fizemos", " Podem falar agora que foi errado,mas a Holanda não seria o país que é hoje sem os nossos bravos desbravadores".........em uma sala de aula com a maior parte dos alunos com doutorado....Isso que é agregar valor rs,rss,rs....um abraço e bom final de semana!!!!!!!!!! 

Expus-me:  Em situações assim é bom para o coração lembrar a oração de S. Francisco: "que eu procure mais compreender que ser compreendido".  Em jogo na fala em sala está a empresa (mobilização de recursos, coordendação de esforços e instrumentalização da técnica) na conquista de objetivos, o que retrai os muitos significados da exploração dos seus frutos.  Na realização do real, entre a conquista dos objetivos e a exploração dos seus frutos, um impasse ético se manifestou em violência racial.  Eu me pergunto: que me adianta acusar holandeses  por terem inventado a Companhia das Indias, com todo o seu pacote de perversidades embrulhado?  Talvez seja melhor me perguntar com que posso contribuir para que doravante o destino dos que ainda vivem não seja como o de quem tombou pela violência racial.

E veio de quem não conheço, curto e direto:  ... só podia ser um Krueger.

Eu só posso ser quem sou.  Mas, sou ambíguo entre o que isso faz de mim e o que eu faço disso no devir.  

Ultimamente venho pensando muito na passagem bíblica de Jacó, que veio a se chamar Israel.  Era um grande general. Mas, se envolveu numa luta corporal extenuante.  Ao raiar do dia, descobre que seu oponente é Deus.  Isso diz muito do que seja lutar por dias melhores.

Humanidade é abismo entre poder realizar e conseguir (seguir-com) realizar.  Nesse abismo, desceu Lucifer.  

Como lidar com a revolta?  Na narrativa bíblica, a Sarça Ardente dá uma pista, ao dizer-se: Sou aquele que Sou.  Já não é um deus que se deixe dominar pela invocação, mas Verbo que nos chama pelo nosso nome.  

Na narrativa, todos a que o Verbo convoca, respondem.  Mas, as respostas têm um porém... um medo, uma fuga ou erro, uma fraqueza, uma dúvida... Em todo caso, essas respostas gestam uma perfeição a ser alcançada na condensação do Verbo em carne e sangue com uma moça que o acolherá em seu ventre como seu Filho.  

É irônico como a insistência no branco e no negro trai o ressentimento pela obsessão na coerência do raciocínio demonstrativo do que seja verdadeiro.  Isso é tão tipicamente moderno e europeu... classificatório e categórico.  Ora, essa luz meridiana, por ausência de sombras, cega tanto quanto a noite sem luar.

Mas, é no abrasileiramento e no entardecer, quando não só gatos, mas todos os homens são pardos, podemos enxergar melhor pelo jogo de sombras e luzes que se projetam. Como no mito da caverna. 

O poente é justiça tardia.  

Os Josés, Dirceu e Genoíno, tiveram anos para compreender o dilema do STF entre a cordialidade e o cinismo.  Uma Corte aprisionada entre a certeza de que bons advogados fazem diferença na administração da justiça e a constatação de que eles aprofundam o fosso da desigualdade, quando só pobres e pretos vão para a prisão.  

Esses Josés tiveram ambições políticas vorazes e por elas foram tragados.  Mas, este país em que quase nada acontece é esconderijo de um tesouro ético ainda por encontrar.  Bem aventurados os pardos brasileiros.

Esses Josés ironicamente se entregaram e um mito sobre justiça está sendo reescrito.  Nem só pobres e pretos vão presos.  Por outro lado, o apetite por poder que tiveram, quando se volta contra os próprios esfomeados, costuma aterrorizar, torturar, exilar, matar.  No Brasil em que quase nada acontece, agora lhes custou prisão em regime semiaberto.  

Tudo considerado, podia ser pior.  Bem pior.  Pensa no Egito.  Na Venezuela.  Deus me livre.


imagem 1 www.walkingbutterfly.com
imagem 2  detalhe de Jacob and the angel, de Jacob Epstein [1975] Cripta da Catedral de                          Liverpool.
imagem 3  oglobo.globo.com

sábado, 16 de novembro de 2013

A gula e a luxúria

Beije-me com os beijos de sua boca!  Seus amores são melhores do que o vinho 
(Cântico dos Cânticos, Capítulo 1:versículo 2)
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele. 
(João, 6:56)


Homens são condicionados pela natureza, mas o espírito ultrapassa a natureza e constitui a cultura.

Os homens vivem. E qual é o existencial comum a todo ser vivo? É a mortalidade. 

Mas, um sentido para morte, somos nós que damos.  Aos bichos não é dada essa liberdade. Até sentem dor; sentem medo. Mas não legam sentidos a essas sensações, o que requer valoração. Humanidade.



Comer é uma atividade vital. Todas as ações vitais, como comer, fazer sexo, respirar são brutais, dizem da vida.  Renunciar à possibilidade de comer carne por  valorar a morte é algo espiritual em sentido lato, mais que religioso. É sobrenatural.


Se existe uma desvalorização de atos brutais praticados para simplesmente satisfazerem sensações, tanta relevância ética então tem a prática de sexo só por prazer, por exemplo, porque isso afeta diretamente a relação com outra pessoa.   Pode o prazer ser recíproco e consensual, porém ainda assim será uma objetificação do corpo como meio para alcançar um fim, conquanto o corpo humano, como campo fenomênico da vida pessoal, já atrai para si a dignidade para além da reciprocidade e do consenso.

Uma dieta se legitima pela perspectiva do comedimento em exercício.  Prefiro a moral que restringe (mas não impede) o consumo da carne e define a gula como o mal. Bem como restringe e não impede o sexo por prazer, mas define a luxúria como o mal.




imagem 1: filme Sétimo Selo, de Ingmar Bergman (1956)
imagem 3: Wacław Wantuch.  www.waclawwantuch.com/
imagem 4: www.literaturaemfoco.com

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Macaco que se sabe macaco é alguém?

  


Os debates acalorados sobre bioética nos últimos dias me deram vontade de rever Planeta dos Macacos: a Origem (2011).

Intrigou-me atentar que alguns dos mais ardorosos defensores de argumentos contra testes em animais antes se solidarizaram com os que tinham pressa nos avanços que a indústria prometera durante o mais célebre julgamento do STF envolvendo bioética, que ocorreu em 2008, com o qual restou liberado o uso de embriões humanos (células-tronco embrionárias) em pesquisas. E desqualificavam como obscuros os argumentos contrários.


O filme não privilegia a violência catártica com um recheio generoso de seqüências de ação.  Em grande medida, é um drama psicológico: o argumento é a descoberta de si mesmo por um macaco.

À guisa de recurso narrativo, o argumento se apropria do “ainda não” que diz promissores, mas ainda inconclusivos, os avanços tecnológicos no âmbito das neurociências e da biomedicina: o desenvolvimento de uma vacina para o mal de Parkinson.  No roteiro, chimpanzés são utilizados nos experimentos com um vírus geneticamente modificado. Temos aí os ingredientes para a revolta dos macacos.

O argumento parte então da questão do corpo como limiar entre pessoa e mundo.  O corpo evidencia que nada nos separa do mundo, mas paradoxalmente entre pessoa e mundo há um abismo: animais são mundo, mas só pessoas não se confundem com o mundo - pessoas têm potência para se perceberem destacadas do mundo e isso acontece ao atribuírem um sentido textual para si mesmas, para outrem e para as coisas além da pura e simples vivência: a sobrevivência ou sucumbência (sentido de transitoriedade): conhecer, lembrar e imaginar como saber.   A resposta mais tradicional para essa questão existencial adota por pressuposta a transcendência expressa na decomposição de si e do mundo entre corpo e espírito.  Ainda que a leitura seja a busca de uma misteriosa ou silenciosa unidade perdida.

O roteiro do filme até que ia bem: “não confie em chimpanzés”.  A fala da mocinha, uma zoóloga, indicava a questão fundamental que prometia ser explorada.  Um chimpanzé transgênico apresentava uma inteligência que superava até mesmo a dos humanos.  Inteligência aí revelada por tomada de decisões estratégicas, táticas e operacionais logicamente adequadas a cada situação (mundo) que se lhe apresentavam.  Mas, humanidade transcende a inteligência.  Isso foi insinuado pela incapacidade desse chimpanzé em compreender interdições éticas.  Isso aconteceu ao lidar com um vizinho brigão: foi incapaz de compreender que foi expulso do paraíso. Ao não conter seu próprio impulso violento, morder o vizinho e ser por isso retirado de seu habitat.

Desce o pano.  Você pode estar sorrindo agora: "Ah, e dá para confiar em humanos? Fala sério!".  


  Então, tá.  Levei 3 crianças de 10 anos para ver Thor - Mundo Sombrio ontem.  Bom, para um deus mitológico, Thor, no filme, tem a profundidade de um bidê.  Mas bons roteiristas têm os seus caprichos.  Thor cumpria uma função de folhetim. 



Toda mitologia estava concentrada em seu irmão, Loki.  E as crianças saíram para a rua gritando: "Loki, Loki, Loki!"  Intuitivamente elas captaram um sentido de ser viking:  Loki, e não Thor, no filme, merecia ascender ao trono de Odin. 

Dei uma volta, não é? É.  Mas, não me perdi.  Em casa, assisti outro filme:  O martelo dos deuses.   Este retrata a sucessão heroica de um rei viking numa ilha britânica do Séc. IX em uma dinastia decadente por carência de guerreiros.  Mesmo assim, guerreiros vikings, de tão violentos, matam entre si, enquanto os saxões cristianizados, que os cercam, são numerosos, mas são desprezados como "aqueles agricultores". 

Disso diz o mito de Asgaard. E hoje a coroa inglesa,  noves fora, com sua notável estabilidade institucional e convívio persistente com a democracia, vem da tradição anglo-saxã e normanda. E não da viking.

Sobe o pano no Planeta dos Macacos. 

O enredo infelizmente seguiu pelo terreno pantanoso do politicamente correto.   O foco passou a ser a ganância da indústria farmacêutica e a crueldade com os animais.  Aí, o roteiro comete uma idiotice.  Numa contradição evidente no próprio argumento, o tal macaco consegue  estabelecer relações éticas com outros macacos do abrigo para animais em que é posto. É como se, de repente, a ética passasse a ser uma manifestação natural acessada e dominada pelo intelecto, tal como é a lei da gravidade.

Aí, o filme se torna um pastiche, uma comédia involuntária.  Os macacos se descobrem encarcerados e oprimidos. E estabelecem “naturalmente” um código moral típico entre presidiários. E o chimpanzé que ficou inteligente com o tal vírus furta e espalha mais dele. É uma paródia de preso político que conscientiza com ideologia censurada outros presos, antes “comuns”.  A consciência coletiva evolui na organização do PCC: Primatas no Comando da Capital.  Subversão como patologia é isso aí.


Então, acontece a batalha. A figuração é: macacos oprimidos contra as forças repressoras a serviço do cartel da indústria farmacêutica.  A batalha é o salve geral.




Moral da estória:  A ética é sobrenatural.  Até o mais tacanho ambientalista sabe disso.  Quando um surfista tem a perna estraçalhada por um tubarão, a responsabilidade subiu a prancha, pois só pode ser alguém quem criou a situação do ataque.  O que o tacanho não alcança é o que isso diz da liberdade e do sofrimento.  Não é o tubarão livre por ser um navegador errático pelos oceanos.  Nem sofre por ser implacavelmente pescado, porque sua barbatana tem valor de mercado.  Humanidade é liberdade e sofrimento. Na cocriação de mundo como lugar de comunhão, humanidade é resposta que o ser convoca na ontologia e justiça a que ele é convocado na ética.  Animalidade diz do mundo, não cocria mundo.