domingo, 22 de dezembro de 2013

Não consumi afeto num pet shop: Não descartei os incômodos de morrer por alguém

"É morrendo que se vive para a vida eterna."
Oração de S. Francisco

Durante alguns anos, eu me questionei acerca de uma aparente contradição:  como um anarquista que fui na juventude se tornou um católico na maturidade?  Um amigo já me confessou ter guardado uma lembrança marcante do dia que lhe disse reconhecer absolutamente verdadeiros os dogmas da Igreja.  Eu também me lembro desse dia:  "É uma renúncia.  Exercito a humildade." Esse, o argumento que lhe ofereci.   

Sou cooperante de uma prelazia nascida na Espanha às vésperas da guerra civil.  Eu, que havia escrito uma monografia de graduação que a faculdade promoveu - o herói Apolônio de Carvalho foi convidado para a banca.  Proseei a economia catalã no biênio 36-37. A pedido desse herói, a monografia recebeu este título:  Utopia escrita com sangue.  Meu orientador chamou-me naquele dia de intelectual orgânico, mas  hoje habito a terra de ninguém e me ponho na linha de tiro dos que se mataram há 80 anos atrás.


Intuí uma fidelidade no avesso do avesso.  Quando muitas das bandeiras libertárias no âmbito da sexualidade se banalizaram, revalorizo a gratuidade dos vínculos familiares e  encaro a sua constância como a superação mais valiosa.  Divórcio é palavra riscada do meu dicionário de ideais.

Encontro no magistério da Igreja uma expressão significativa dessa superação mais valiosa.  E a veia anárquica ainda pulsante é essa:  por que não?  Sim, aceito os dogmas por guardarem esse valor.

Eis a expressão:  

"Nos últimos meses, quando se discute sobre o Papa Francisco, a imprensa de esquerda tem aproveitado todas as oportunidades para avançar em uma 'narrativa de ruptura', alegando que Francisco está repudiando essencialmente quase tudo que os papas João Paulo II e Bento XVI representavam. (....) Como João Paulo II e Bento XVI antes dele, Francisco discerne a continuidade entre uma economia do "descartável" e uma visão "descartável" da vida humana. Ele vê a profunda conexão subjacente entre uma economia que destaca a autonomia, a escolha infinita, as conexões frouxas, a excitação constante, o utilitarismo e o hedonismo, e uma cultura sexual que tolera o “ficar” aleatório, o aborto, o divórcio e a redefinição do casamento baseado no sentimento, e em que os fracos – crianças, neste caso, e aqueles na escala socioeconômica mais baixa que estão sofrendo uma devastação completa da família – são uma reflexão tardia."  
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526531-alguem-pode-fazer-esse-papa-calar-a-boca-artigo-de-patrick-j-deneen

A pista do que aconteceu comigo se encontra na minha paixão por cooperativas.  Cooperativas são valorizadas tanto pelos anarquistas como pelos católicos.  O que há na proposta de cooperativas que a fazia um ideal comum entre pessoas que se matavam em Catalunha como inimigos inconciliáveis naqueles anos sombrios e heróicos?

Comunidade.  Um sincero amor encontrável no sentido de comunidade em tudo que sonhavam.  Um amor que as ideologias vigentes ocultavam.   O que não sabiam com essas ideologias?  Que comunidades só podem subsistir em sociedades se prometido o convívio com o incompreendido.  É esta promessa uma recusa da felicidade como ditadura e da liberdade como erraticidade.

A diferença entre anarquistas e católicos está na ideia de que ser humano bastante de si mesmo é o ponto de partida para uns, conquanto para outros só o outro personificado em Deus pode ser o início de tudo.  Tudo mais foi frenesi e brutalidade autojustificada entre meios e fins.  Toda violência girava em torno das provas de quem tinha razão.



Foto1: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/apolonio-de-carvalho-homenagem-aos-100-anos-de-um-libertario.html

Foto2:  http://www.cortocabeloepinto.com

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