domingo, 17 de novembro de 2013

Rosane, o STF e os brasileiros pardos

Rosane é minha amiga.  Apresentou-me seus pais, seus irmãos.  Li dela algumas páginas de drama.  Outras, divertidas.  Melhor, várias dessas, nas quais me incluo, às vezes, como personagem.   Conheci alguns de seus amores.  Ou, deveria dizer ilusões?  Enfim, Rosane é quem já não cabe em nenhum que para mim.  


Ela outro dia lembrou-se de mim. Compartilhou pelo facebook um post de Liam O'Ceallaigh sobre o Rei Leopoldo II com o pouco sutil título: 


Quando você mata dez milhões de africanos, não é taxado de "Hitler".

Veio este comentário dela:

Esta semana tive uma aula sobre colonialismo aqui na Holanda.. é impressionante como podemos ter visões diferentes sobre o mesmo fato..O livo da semana foi Sarah Tornhill da Kate Grenville ..livro ótimo que você pode ler como só uma história de amor açucarada ou perceber a crítica da autora em relação ao colonialismo e em como se extermina uma cultura..Aqui, em muitos livros, os colonizadores são tratados como desbravadores..tratar colonialismo aqui é tensão na sala de aula... ouvi coisas como:" A África deveria agradecer a chance de conhecer gente civilizada", " Os brancos realmente eram superiores"," Explorar as riquezas foi uma forma de recompensar todo o esforço que fizemos", " Podem falar agora que foi errado,mas a Holanda não seria o país que é hoje sem os nossos bravos desbravadores".........em uma sala de aula com a maior parte dos alunos com doutorado....Isso que é agregar valor rs,rss,rs....um abraço e bom final de semana!!!!!!!!!! 

Expus-me:  Em situações assim é bom para o coração lembrar a oração de S. Francisco: "que eu procure mais compreender que ser compreendido".  Em jogo na fala em sala está a empresa (mobilização de recursos, coordendação de esforços e instrumentalização da técnica) na conquista de objetivos, o que retrai os muitos significados da exploração dos seus frutos.  Na realização do real, entre a conquista dos objetivos e a exploração dos seus frutos, um impasse ético se manifestou em violência racial.  Eu me pergunto: que me adianta acusar holandeses  por terem inventado a Companhia das Indias, com todo o seu pacote de perversidades embrulhado?  Talvez seja melhor me perguntar com que posso contribuir para que doravante o destino dos que ainda vivem não seja como o de quem tombou pela violência racial.

E veio de quem não conheço, curto e direto:  ... só podia ser um Krueger.

Eu só posso ser quem sou.  Mas, sou ambíguo entre o que isso faz de mim e o que eu faço disso no devir.  

Ultimamente venho pensando muito na passagem bíblica de Jacó, que veio a se chamar Israel.  Era um grande general. Mas, se envolveu numa luta corporal extenuante.  Ao raiar do dia, descobre que seu oponente é Deus.  Isso diz muito do que seja lutar por dias melhores.

Humanidade é abismo entre poder realizar e conseguir (seguir-com) realizar.  Nesse abismo, desceu Lucifer.  

Como lidar com a revolta?  Na narrativa bíblica, a Sarça Ardente dá uma pista, ao dizer-se: Sou aquele que Sou.  Já não é um deus que se deixe dominar pela invocação, mas Verbo que nos chama pelo nosso nome.  

Na narrativa, todos a que o Verbo convoca, respondem.  Mas, as respostas têm um porém... um medo, uma fuga ou erro, uma fraqueza, uma dúvida... Em todo caso, essas respostas gestam uma perfeição a ser alcançada na condensação do Verbo em carne e sangue com uma moça que o acolherá em seu ventre como seu Filho.  

É irônico como a insistência no branco e no negro trai o ressentimento pela obsessão na coerência do raciocínio demonstrativo do que seja verdadeiro.  Isso é tão tipicamente moderno e europeu... classificatório e categórico.  Ora, essa luz meridiana, por ausência de sombras, cega tanto quanto a noite sem luar.

Mas, é no abrasileiramento e no entardecer, quando não só gatos, mas todos os homens são pardos, podemos enxergar melhor pelo jogo de sombras e luzes que se projetam. Como no mito da caverna. 

O poente é justiça tardia.  

Os Josés, Dirceu e Genoíno, tiveram anos para compreender o dilema do STF entre a cordialidade e o cinismo.  Uma Corte aprisionada entre a certeza de que bons advogados fazem diferença na administração da justiça e a constatação de que eles aprofundam o fosso da desigualdade, quando só pobres e pretos vão para a prisão.  

Esses Josés tiveram ambições políticas vorazes e por elas foram tragados.  Mas, este país em que quase nada acontece é esconderijo de um tesouro ético ainda por encontrar.  Bem aventurados os pardos brasileiros.

Esses Josés ironicamente se entregaram e um mito sobre justiça está sendo reescrito.  Nem só pobres e pretos vão presos.  Por outro lado, o apetite por poder que tiveram, quando se volta contra os próprios esfomeados, costuma aterrorizar, torturar, exilar, matar.  No Brasil em que quase nada acontece, agora lhes custou prisão em regime semiaberto.  

Tudo considerado, podia ser pior.  Bem pior.  Pensa no Egito.  Na Venezuela.  Deus me livre.


imagem 1 www.walkingbutterfly.com
imagem 2  detalhe de Jacob and the angel, de Jacob Epstein [1975] Cripta da Catedral de                          Liverpool.
imagem 3  oglobo.globo.com

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