sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O europeu e os gorilas

Dia desses, contava aos meus filhos sobre o Fantasma, o Espírito que Anda, que eles não conheciam.  Mito imortal para os pigmeus da estória, se mostrava como uma realidade biológica para o leitor: uma linhagem de europeus que incorporavam a personalidade do herói mascarado.  Um personagem portanto que não resistiu ao espírito do tempo, na medida em que essa estória infanto-juvenil incorpora a relação imaginária de avanço e atraso entre as culturas europeias e africanas.

Revisões de imaginário das estórias contadas para crianças não é novidade.  Os irmãos Grimm fizeram isso no contexto do romantismo alemão, ao verterem em contos algumas  tradições orais do folclore europeu, como a de Chapeuzinho Vermelho.  

Lembrando que as noites de dezembro na Europa são longas, nos tempos em que  as vésperas do Natal eram iluminadas só por velas e lareiras, a figura folclórica de São Nicolau, esse velho iluminado era originalmente contraposto a um ente sombrio chamado de Pedro Preto. As crianças desobedientes como Chapeuzinho Vermelho não só deixavam de ganhar mimos do bom velhinho, como eram perseguidas pelo Pedro Preto.  

Na Holanda, na lembrança também da exploração de mão de obra escrava para a produção de açúcar nas Américas de séculos passados, o Pedro Preto assumiu feições raciais.  Ainda hoje, muitos holandeses não só se fantasiam de Papai Noel, mas também se travestem com perucas afro de Pedro Preto. Ainda que agora o personagem seja caracterizado como um bobo, e não uma assombração.  Afinal, as sombras não assombram mais crianças em meio ao festival feérico em que se tornaram os festejos de fim de ano.  Enfim, o Pedro Preto se carnavalizou.  Mesmo assim, não falta quem veja na subalternidade de Pedro Preto evidência de racismo. 

Ano passado, uma consultora da ONU se sentiu no direito de usurpar a institucionalidade do órgão para divulgar na Holanda um texto que dizia:  “Algumas práticas, que são parte da herança cultural, podem infringir os direitos humanos. A caracterização midiática, cultural, social ou tradicional negativa de pessoas que pertencem a uma minoria pode constituir racismo e pode ser degradante para os membros dessas comunidades, no caso presente pertencentes às populações negras e de descendência africana, e pode perpetuar estereótipos negativos na sociedade”.  Perceberam alguma semelhança com a pegada no pé de Monteiro Lobato por sua Tia Anastácia aqui no Brasil?  Pois é...   na Holanda, mais de 1 milhão de pessoas subscreveram uma página no Facebook em defesa do Pedro Preto.  E o Primeiro Ministro holandês foi a público dar de ombros:  "O Pedro é preto".

Voltando ao Espírito que Anda, arrisquei dizer aos meus filhos que Tarzan era outro personagem condenado pelo espírito do tempo.  Um filho da aristocracia britânica que se torna naturalmente o rei das selvas não resiste à revisão das relações entre o imaginário das antigas metrópoles e a atual ideia de diversidade cultural.   Mas, queimei minha língua.  Eis que está em cartaz uma animação computadorizada de um Tarzan politicamente correto.   Mas, ó que graça, qual a solução narrativa dada?  Para não sofrer patrulhamento, o filme esquece... os homens africanos!  Como assim?  Bem ao gosto do imaginário surgido com uma centralidade da senciência na bioética, gorilas são humanizados. E assim suprem o papel subalterno para a realeza de Tarzan.

Os produtores do filme mataram assim dois coelhos com uma cajadada (ops!).   Na medida em que, na bioética em voga, a distinção entre humanidade e animalidade passa a ser borrada por uma gradual complexidade de sentimentos e formas de comunicação, o esquecimento do filme dribla acusações de racismo e "eleva" os gorilas à condição de seres dignos de mesma proteção e cuidado que a ética tradicionalmente propõe pelas crianças desde tempos antigos.  Como já propôs pelos escravos, servos e vassalos mesmo sem recusar a vassalagem, a servidão ou a escravidão.

Portanto, paradoxalmente, o filme pode nos lembrar de um conveniente esquecimento no imaginário politicamente correto de um sentido de bondade que tornou a escravidão eticamente possível durante séculos.   A aceitação da escravidão não identificava outrora alguém perverso.  E isso não é uma questão de insensibilidade, ignorância ou atraso cultural. A bondade entre um senhor e seus escravos se mostrava na aproximação da relação entre senhorio e obediência àquela entre paternidade e filiação - cuidado e proteção - encontrada em outra escala no ideal da adoção e do apadrinhamento.  Como há maus pais, havia bons senhores de escravos.  É uma questão de contexto histórico e percepção.

A diferença fundamental para a relação que se celebra hoje em dia está na ênfase não na obediência, mas no diálogo entre pais e filhos.  O que é impossível para os cães, gatos, capivaras e orangotangos.  Distingue-se aí a alteridade assimétrica destes que já não se evidencia mais entre seres humanos.  Mesmo assim, hoje alguém questiona a sanidade de quem trata um Totó como seu filhinho?  Pode até ser fofo... mas, quem trata animais como filhos putativos, de certo modo, se acomoda nos monólogos domésticos.  Trata-se de uma situação tão ambígua como a do Tarzan na película em cartaz.

Então, diálogo é uma chave da ética contemporânea.  Mas, isso precisa ser assumido integralmente como uma condição de humanidade em sua distinção face à animalidade.  Isso tem significados transcendentes para a cultura. E um deles é este: sem nos lembrarmos mais da ambigüidade de nossa herança colonial, quiçá não poderemos encontrar um modo de findar definitivamente o ajuste de contas raciais que ainda nos atormenta.


Nenhum comentário:

Postar um comentário