A totalidade do bem e do mal nos supera,
mas devemos aceitá-la totalmente.
É um sonho separá-los e
uma utopia mais fantástica ainda reconciliá-los.
JEAN BAUDRILLARD (1929-2007)
Kaique apareceu de madrugada morto na rua. O caso ganhou repercussão com o grito da família: crime de homofobia e racismo! Isso, enquanto a polícia, de imediato, aventou suicídio. Mas, vamos combinar: era tentador demais! O quadro era de leniência da polícia, enquanto amigos e familiares traziam à imprensa "evidências" de um crime: sua alegria de viver, a passagem numa boate gay na noite fatídica e rumores da presença de pessoas suspeitas por lá. Até a secretária nacional de direitos humanos caiu nessa tentação: "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia". Isso está escrito em sua nota oficial sobre o caso. Como se vê, a Secretária Maria do Rosário não sentiu qualquer obrigação de manifestar a prudência usual, mesmo nalguma frase clichê do tipo "Aguardaremos o final das investigações". Seria muito insosso ante o apetite de justiça dos mobilizados. Admitir o suicídio já faz pairar o budum do opressor oculto, mas onipresente.
Apesar do barulho feito, ainda está prevalecendo na polícia a ideia de suicídio. A qualidade das evidências dão tanta eloquência a essa tese que agora até a mãe do rapaz se mostra perplexa. Esta circunstância abre uma perspectiva à reflexão do imaginário social exposto no drama dessa mãe.
Em que medida afinal a utopia racial presente no antigo culto à memória de Horst Wessel guarda distância da utopia sexual de Maria do Rosário? A provisoriedade para qualquer ação afirmativa em favor de uma identidade de gênero e de raça.
É claro que decisões sobre ações afirmativas, em termos de políticas públicas, devem ser tomadas considerando dados estatísticos. É claro que não insinuo que a Secretária Maria do Rosário pretenda resolver divergências de opinião com campos de concentração, como resolveram os partidários de Wessel. Mas, essa clareza não exclui a avaliação dos sentimentos e dos imaginários socialmente compartilhados que aproximam as mortes de Kaique e de Horst Wessel.
Quando é perceptível que a polícia foi pressionada por um clamor politicamente articulado e endossado por alguma autoridade do governo federal a apresentar um culpado com um perfil predeterminado diante da imagem de uma vítima identificada como pertencente a um determinado grupo social, um calafrio percorre quem, embora inocente, repara que se encaixa no perfil padrão do criminoso imaginário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário