quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O ovo da mamba negra


A totalidade do bem e do mal nos supera,
mas devemos aceitá-la totalmente.
É um sonho separá-los e
uma utopia mais fantástica ainda reconciliá-los.
JEAN BAUDRILLARD (1929-2007)

Horst Wessel foi assassinado em 1930.  Sua morte foi lembrada durante anos como uma convocação ao combate do mal.   Em sua memória, pessoas aos milhares compareceram a paradas e nas ruas cantaram:  "Bandeira ao alto!".  Em que momento Horst Wessel se tornou um ícone fabricado por propaganda ideológica?  Sua morte deu um rosto à identidade construída pelo ressentimento para uma maioria que se sentia oprimida racial, social e econômicamente em seu próprio país?

Kaique apareceu de madrugada morto na rua.  O caso ganhou repercussão com o grito da família: crime de homofobia e racismo!  Isso, enquanto a polícia, de imediato, aventou suicídio.  Mas, vamos combinar: era tentador demais!  O quadro era de leniência da polícia, enquanto amigos e familiares traziam à imprensa "evidências" de um crime: sua alegria de viver, a passagem numa boate gay na noite fatídica e rumores da presença de pessoas suspeitas por lá.  Até a secretária nacional de direitos humanos caiu nessa tentação:  "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia".  Isso está escrito em sua nota oficial sobre o caso. Como se vê, a Secretária Maria do Rosário não sentiu qualquer obrigação de manifestar a prudência usual, mesmo nalguma frase clichê do tipo "Aguardaremos o final das investigações".  Seria muito insosso ante o apetite de justiça dos mobilizados.  Admitir o suicídio já faz pairar o budum do opressor oculto, mas onipresente.

Apesar do barulho feito, ainda está prevalecendo na polícia a ideia de suicídio. A qualidade das evidências dão tanta eloquência a essa tese que agora até a mãe do rapaz se mostra perplexa.  Esta circunstância abre uma perspectiva à reflexão do imaginário social exposto no drama dessa mãe.

Em que medida afinal a utopia racial presente no antigo culto à memória de Horst Wessel guarda distância da utopia sexual de Maria do Rosário?  A provisoriedade  para qualquer ação afirmativa em favor de  uma identidade de gênero e de raça.

É claro que decisões sobre ações afirmativas, em termos de políticas públicas, devem ser tomadas considerando dados estatísticos.   É claro que não insinuo que a Secretária Maria do Rosário pretenda resolver divergências de opinião com campos de concentração, como resolveram os partidários de Wessel.  Mas, essa clareza não exclui a avaliação dos sentimentos e dos imaginários socialmente compartilhados que aproximam as mortes de Kaique e de Horst Wessel.

Quando é perceptível que a polícia foi pressionada por um clamor politicamente articulado e endossado por alguma autoridade do governo federal a apresentar um culpado com um perfil predeterminado diante da imagem de uma vítima identificada como pertencente a um determinado grupo social, um calafrio percorre quem, embora inocente, repara que se encaixa no perfil padrão do criminoso imaginário.
  

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