Exercício de Dramaturgia
(esquete adaptada do
folclore chinês)
CAMPONÊS: Não vê, Senhora? Carrego esta água, estou voltando à casa.
DEUSA: Vejo você cansado, por que não se senta comigo e descansa?
CAMPONÊS: Não sei se devo...
DEUSA: Ora, senta logo. Vamos conversar. Então é água de beber que carrega?
CAMPONÊS: Quer um pouco?
DEUSA: Aceito tudo o que puder
me dar
CAMPONÊS: Tome o quanto quiser.
Mas, Senhora, o que fez?!
DEUSA: Você mesmo me
ofereceu. E eu tomei o que bem entendia.
CAMPONÊS: Mas só era para
beber! Que brincadeira é essa, derramar
tudo!? Se não sabe, Senhora, o rio fica
longe e ainda longe daqui é minha casa.
Não basta o cansaço de minha pobreza? Olha, não lhe faço mal, porque
logo vejo quem é... é uma Senhora rica e bem nascida! Tem gente aí escondida
pronta para me matar, porque sozinha na estrada não pode estar. Podem aparecer, mas não me façam mal! Acabou a brincadeira e não farei mal algum a
essa mulher: não poderão me acusar de nada!
DEUSA: De que adianta não me
fazer mal, se nada mais há do que sua pobreza e cansaço com que esperar por sua
morte?
CAMPONÊS: Tenho esposa. Ela espera um filho meu. Tenho medo.
Sou um camponês. E, com sua licença, Senhora, eu tenho de voltar ao rio, sem demora. Há sede de beber em minha casa.
DEUSA: Pode ir. Vai!
DEUSA: Ele sabe o que é
feito dele: um camponês pobre. Mas, não
sabe quem se torna por temor a mim, que sou uma deusa. Mas esse temor é também o amor por sua esposa
e por seu filho que nem conhece. Nem
sabe se sobreviverão ao parto, ao frio do inverno e à negra fome de sua miséria. Mas, se nem sabe, eles já sobreviveram à minha
passagem em sua vida; eu, que posso matar e deixar viver tudo que voa no céu,
anda na terra, ou rasteja por debaixo dela.
Não sabe ele quem se torna ao fazer o que faz com o que dele é feito?
Então, já não se reconhece mais como se conhecia. Poderia ele me fazer mal, eu que sou uma deusa? Não ousou.
Mas, maior ousadia é preferir viver sua vida miserável, que então já não
é a miséria tão grande que ainda acredita ser. Ousou lembrar-se de sua esposa e
de seu filho que sequer conhece, mesmo estando diante de mim, que resplandeço
como deusa que sou; sempre deusa como me conheço e nunca me torno outra deusa. Darei a ele um presente meu. Ele, que se vê como eu o vi, mas não se
reconhece mais como eu o reconheço. Darei
um espelho. Ele, que só teve por reflexo
a sua miséria e águas turvas do rio a lhe refletir com tanta realidade quanto o
mais cristalino espelho. Ele que nunca conheceu um espelho assim, já se viu num
vulto que faz tudo que ele faz. Mas, mas mesmo no mais cristalino espelho, é
sempre um vulto o que se reflete. E nesse vulto cabe qualquer um, quando se torna
quem é. Brisa que sopra do céu, leva-me aonde quero
ir, e me leva bem rápido, pois ao rio eu irei chegar muito antes do que um
camponês pode correr!
CAMPONÊS: Neste dia, o que
mais vai me aparecer?! Será que estou louco?!
Eu sei quem você é: É meu
pai! É seu espírito no fundo dessa
caixa. Esses olhos... Nem sabia que me lembrava de você. Pai, por que me deixou tão cedo? Como a vida foi difícil sem você. Por que voltou só agora? Agora, que eu lhe tenho de novo, não vai embora
mais. Vem, eu lhe levo comigo. Aonde eu for.
Vamos para casa...
ESPOSA: Homem, o que
aconteceu? Que caixa é essa? Onde está a água? Deixa eu ver?
Olha como é bonita e rica? Você
roubou! Você deu para roubar agora,
homem?
CAMPONÊS: Ora, mulher, me deixa! Não sabe como foi meu dia! Não, não roubei. Eu achei essa caixa, mas ela é um presente de
alguma deusa. Só pode ser. Nela, está preso o espírito do meu pai.
ESPOSA: O espírito de seu
pai? Bebeu com que dinheiro, homem? Deixa eu ver isso...
CAMPONÊS: Não! Pode se tornar uma maldição, pois foi
presente de uma deusa que me apareceu hoje.
Agora, eu sei. Era uma deusa. E ela me fez voltar ao rio e achar esta
caixa. Ela me fez... não sei lhe dizer,
mas então também pode lhe fazer mal.
Isso, pode. Está resolvido: só eu
irei ver o meu pai. Ele pode ir e nunca
mais voltar, se você abrir a caixa.
ESPOSA: Que bobagem é
essa! Você está louco! É só uma caixa. É bonita, é rica. Você inventa estórias. É porque roubou. Deixa eu ver!
CAMPONÊS: Eu já disse que
não! Só eu vejo ! Você, não! Pensa no nosso filho! E além
disso, é o meu pai, e não o seu! É meu pai... Você não conheceu meu pai. De que lhe adianta ver quem eu vejo? E o que é uma benção para mim, pode ser uma
maldição para você, já disse. Não quero
que veja! Não lhe basta ver a caixa? E não roubei.
É um presente de uma deusa, já disse.
Obedece seu marido, mulher! Não
toque nesta caixa! Não quero lhe perder! Você me dará um filho que já vem de seu
ventre.
ESPOSA: Ora, seu maluco!
Você está cheio de estórias...
Você quer esconder de mim um tesouro em jóias. Pensa que eu vou lhe roubar? Deixa eu ver... Devem ser bonitas e eu nunca vi jóias de
perto. Nunca toquei numa...
CAMPONÊS: Não, me deixa! Me deixa!
ESPOSA: Não lhe deixo, não...
mas que adianta insistir, agora, sua mula? Eu lhe conheço. Quando bota uma idéia na cabeça, é isso, não
há quem tire. E tenho mais o que fazer do
que ficar implorando para você deixar que eu veja o que tem dentro dessa caixa. E nem água você trouxe. Estou com sede. Não há água.
Vai buscar. Pelo menos isso você
pode fazer por mim?!
CAMPONÊS: Você vai pegar na
caixa. Não deixo ela sozinha com você. Me deixa!
Ó, meu pai! Viu como é minha vida? Olha, essa miséria... sei que vê: o céu é o
mesmo. Em todo lugar que eu vou, é o céu que vejo atrás de você.
Então, aí dentro dessa caixa também você vê em sua volta a minha vida
miserável. Que farei eu? Fala
comigo! Pai! Pai?
Você me ouve, pai?
ESPOSA: Já se vão horas e você só fica olhando essa caixa sem parar. Tenho sede. Vai buscar água. Olha, farei o que me manda. Não tocarei na caixa. Ouvi o que disse, agora tenho medo também. Vai buscar água. Eu fico aqui com a caixa. Sem tocar nela.
CAMPONÊS: Não. Só vai ser eu virar as costas e você irá
abrir a caixa, que eu lhe conheço.
ESPOSA: E por causa de sua
suspeita, irá me matar de sede? E a seu
filho também? Como pode?! Se você não quer que eu toque nela justamente
para que eu não morra... Olha, agora tenho
medo dela. Juro, não encosto um dedo
nela.
CAMPONÊS: Eu irei,
então. Mas, esconderei a caixa antes.
ESPOSA: Que homem bobo... até parece que conseguiria esconder de mim esta caixa. Está tão interessado no que tem dentro dela que nem me viu me esconder e espiar. Homem bobo... O que vejo!? Que pai, que bobo, que nada! No fundo dessa caixa me olham esses olhos de mulher! É jovem! E bonita! Uma deusa, que nada! Um demônio está roubando o meu marido de mim! Ele está apaixonado por essa mulher! Por isso, quer essa caixa só para ele. E eu achando que eram jóias! E eu esperando um filho dele! Marido miserável! Miséria de demônio! Para longe do meu marido, coisa ruim! Ele é meu! É pouco, mas é meu! Meu homem! Estou esperando um filho dele. Fica longe dele! Vou lhe enterrar e nunca que ele vai lhe achar!
CAMPONÊS: Trouxe água. Aqui está. Não chore mais. Fui mais rápido que pude. Eu sei que já escurece. Um dia todo por um gole, tome...
ESPOSA: Não tenho sede. Não tenho mais. Você se apaixonou por um demônio em forma de
mulher. Eu vi! Eu vi! E eu pensando em jóias que iam tirar a gente dessa
miséria... Que você tinha roubado por
amor a mim...
CAMPONÊS: Viu o quê,
mulher? Que loucura é essa? É a sede!
Toma a água...
ESPOSA: É a caixa! Você nunca
mais vai ver aquela caixa maldita!
CAMPONÊS: Meu pai!
ESPOSA: Vilão! E ainda quer
mentir para mim? Eu vi! É uma mulher!
Você está apaixonado por ela? Vai
me abandonar? Vai abandonar seu filho,
homem vil? E dos pretendentes que tive,
fui casar com o mais pobre. Por que não
tive dote para ter um marido melhor? Desgraçada estou, porque meu marido se
apaixonou por um demônio!
CAMPONÊS: Onde está a caixa,
mulher? Onde está meu pai?
ESPOSA: Cachorro! E ainda insiste? Eu vi!
Eu vi!
CAMPONÊS: Eu mato! Eu lhe mato! Cadê a caixa?
ESPOSA: Mata-me, sim! E seu filho também! Eu já morri!
Você me matou. Morrerei de
fome. Você vai me abandonar! Sim, bem que você disse! É uma maldição. Aquele demônio me fez mal. Vou morrer!
Você me matou!
MONGE: Por que choram
vocês? Você está grávida... e você que é o pai? Uma criança é um presente dos deuses. Vocês foram abençoados com dias de esperança. Por que choram?
ESPOSA e CAMPONÊS: A
caixa!
MONGE: Que caixa? Que caixa pode fazer homem e mulher chorarem
assim? Algum tesouro se perdeu? Mas vocês são tão pobres...
CAMPONÊS: Sim, meu
tesouro! O espírito de meu pai está na
caixa e essa desgraçada sumiu com ela.
ESPOSA: Cão! Covarde! Diz a verdade para este monge! Um demônio está na caixa. Em forma de mulher. E meu marido se apaixonou por ela. Vai me abandonar, se ficar com ela. Eu a enterrei. E eu pensei que eram jóias que ele tinha
roubado para nos tirar da miséria...
MONGE:
Seu pai, um demônio?! Jóias roubadas?! O que dizem?!
ESPOSA e CAMPONÊS: A caixa!
MONGE:
Mulher, traz-me essa caixa, por favor.
Quero ver o que tem nela, se me permitem.
ESPOSA:
Sim, eu busco, mas também é para levar para longe, homem santo! A você, um monge, aquele demônio não pode
fazer mal. Vou buscar e leva o demônio
com você.
CAMPONÊS:
É meu pai! É meu pai que eu vejo,
eu não esqueci dele. Acredita em
mim! É meu pai que está na caixa. Deixa a caixa comigo. É minha!
É minha! Um presente de uma deusa
que apareceu para mim e deixou a caixa na beira do rio. Não roubei nada. Na caixa, eu vejo, só pode ser meu pai! Não tem demônio nenhum. Demônio é essa minha mulher, que ficou
louca. Eu disse para ela ficar longe da
caixa. Não me obedeceu e agora ficou
louca. Se escondeu, quando eu escondia a
caixa. E espiou. Que será de nosso filho? Que será de nosso filho? Não vou abandonar meu filho como fez meu
pai. Ainda mais que agora ele voltou
para mim.
ESPOSA:
Aqui está a caixa, olha e vê o demônio com seus próprios olhos e depois
leva ela embora. Salva nosso filho.
CAMPONÊS: Salva o nosso filho, deixa a caixa! Vê? É meu pai na caixa! Ele está me protegendo de novo e vai proteger
nosso filho também.
MONGE:
Meus amados! Não chorem mais. Não
temam, nem se apeguem a este presente. É
verdade, não são jóias o que há nela. Mas,
também, nem Demônio, nem seu pai moram aqui.
Mas é verdade, sim, que é um homem.
Ou, uma mulher. Nesta
caixa, só cabe alguém que é qualquer um, mas que já se torna um outro
alguém. Então, nesta caixa só tem um andarilho
para o qual o mundo passa todos os dias, bem assim como eu.
Fim de cena
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