sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O europeu e os gorilas

Dia desses, contava aos meus filhos sobre o Fantasma, o Espírito que Anda, que eles não conheciam.  Mito imortal para os pigmeus da estória, se mostrava como uma realidade biológica para o leitor: uma linhagem de europeus que incorporavam a personalidade do herói mascarado.  Um personagem portanto que não resistiu ao espírito do tempo, na medida em que essa estória infanto-juvenil incorpora a relação imaginária de avanço e atraso entre as culturas europeias e africanas.

Revisões de imaginário das estórias contadas para crianças não é novidade.  Os irmãos Grimm fizeram isso no contexto do romantismo alemão, ao verterem em contos algumas  tradições orais do folclore europeu, como a de Chapeuzinho Vermelho.  

Lembrando que as noites de dezembro na Europa são longas, nos tempos em que  as vésperas do Natal eram iluminadas só por velas e lareiras, a figura folclórica de São Nicolau, esse velho iluminado era originalmente contraposto a um ente sombrio chamado de Pedro Preto. As crianças desobedientes como Chapeuzinho Vermelho não só deixavam de ganhar mimos do bom velhinho, como eram perseguidas pelo Pedro Preto.  

Na Holanda, na lembrança também da exploração de mão de obra escrava para a produção de açúcar nas Américas de séculos passados, o Pedro Preto assumiu feições raciais.  Ainda hoje, muitos holandeses não só se fantasiam de Papai Noel, mas também se travestem com perucas afro de Pedro Preto. Ainda que agora o personagem seja caracterizado como um bobo, e não uma assombração.  Afinal, as sombras não assombram mais crianças em meio ao festival feérico em que se tornaram os festejos de fim de ano.  Enfim, o Pedro Preto se carnavalizou.  Mesmo assim, não falta quem veja na subalternidade de Pedro Preto evidência de racismo. 

Ano passado, uma consultora da ONU se sentiu no direito de usurpar a institucionalidade do órgão para divulgar na Holanda um texto que dizia:  “Algumas práticas, que são parte da herança cultural, podem infringir os direitos humanos. A caracterização midiática, cultural, social ou tradicional negativa de pessoas que pertencem a uma minoria pode constituir racismo e pode ser degradante para os membros dessas comunidades, no caso presente pertencentes às populações negras e de descendência africana, e pode perpetuar estereótipos negativos na sociedade”.  Perceberam alguma semelhança com a pegada no pé de Monteiro Lobato por sua Tia Anastácia aqui no Brasil?  Pois é...   na Holanda, mais de 1 milhão de pessoas subscreveram uma página no Facebook em defesa do Pedro Preto.  E o Primeiro Ministro holandês foi a público dar de ombros:  "O Pedro é preto".

Voltando ao Espírito que Anda, arrisquei dizer aos meus filhos que Tarzan era outro personagem condenado pelo espírito do tempo.  Um filho da aristocracia britânica que se torna naturalmente o rei das selvas não resiste à revisão das relações entre o imaginário das antigas metrópoles e a atual ideia de diversidade cultural.   Mas, queimei minha língua.  Eis que está em cartaz uma animação computadorizada de um Tarzan politicamente correto.   Mas, ó que graça, qual a solução narrativa dada?  Para não sofrer patrulhamento, o filme esquece... os homens africanos!  Como assim?  Bem ao gosto do imaginário surgido com uma centralidade da senciência na bioética, gorilas são humanizados. E assim suprem o papel subalterno para a realeza de Tarzan.

Os produtores do filme mataram assim dois coelhos com uma cajadada (ops!).   Na medida em que, na bioética em voga, a distinção entre humanidade e animalidade passa a ser borrada por uma gradual complexidade de sentimentos e formas de comunicação, o esquecimento do filme dribla acusações de racismo e "eleva" os gorilas à condição de seres dignos de mesma proteção e cuidado que a ética tradicionalmente propõe pelas crianças desde tempos antigos.  Como já propôs pelos escravos, servos e vassalos mesmo sem recusar a vassalagem, a servidão ou a escravidão.

Portanto, paradoxalmente, o filme pode nos lembrar de um conveniente esquecimento no imaginário politicamente correto de um sentido de bondade que tornou a escravidão eticamente possível durante séculos.   A aceitação da escravidão não identificava outrora alguém perverso.  E isso não é uma questão de insensibilidade, ignorância ou atraso cultural. A bondade entre um senhor e seus escravos se mostrava na aproximação da relação entre senhorio e obediência àquela entre paternidade e filiação - cuidado e proteção - encontrada em outra escala no ideal da adoção e do apadrinhamento.  Como há maus pais, havia bons senhores de escravos.  É uma questão de contexto histórico e percepção.

A diferença fundamental para a relação que se celebra hoje em dia está na ênfase não na obediência, mas no diálogo entre pais e filhos.  O que é impossível para os cães, gatos, capivaras e orangotangos.  Distingue-se aí a alteridade assimétrica destes que já não se evidencia mais entre seres humanos.  Mesmo assim, hoje alguém questiona a sanidade de quem trata um Totó como seu filhinho?  Pode até ser fofo... mas, quem trata animais como filhos putativos, de certo modo, se acomoda nos monólogos domésticos.  Trata-se de uma situação tão ambígua como a do Tarzan na película em cartaz.

Então, diálogo é uma chave da ética contemporânea.  Mas, isso precisa ser assumido integralmente como uma condição de humanidade em sua distinção face à animalidade.  Isso tem significados transcendentes para a cultura. E um deles é este: sem nos lembrarmos mais da ambigüidade de nossa herança colonial, quiçá não poderemos encontrar um modo de findar definitivamente o ajuste de contas raciais que ainda nos atormenta.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O ovo da mamba negra


A totalidade do bem e do mal nos supera,
mas devemos aceitá-la totalmente.
É um sonho separá-los e
uma utopia mais fantástica ainda reconciliá-los.
JEAN BAUDRILLARD (1929-2007)

Horst Wessel foi assassinado em 1930.  Sua morte foi lembrada durante anos como uma convocação ao combate do mal.   Em sua memória, pessoas aos milhares compareceram a paradas e nas ruas cantaram:  "Bandeira ao alto!".  Em que momento Horst Wessel se tornou um ícone fabricado por propaganda ideológica?  Sua morte deu um rosto à identidade construída pelo ressentimento para uma maioria que se sentia oprimida racial, social e econômicamente em seu próprio país?

Kaique apareceu de madrugada morto na rua.  O caso ganhou repercussão com o grito da família: crime de homofobia e racismo!  Isso, enquanto a polícia, de imediato, aventou suicídio.  Mas, vamos combinar: era tentador demais!  O quadro era de leniência da polícia, enquanto amigos e familiares traziam à imprensa "evidências" de um crime: sua alegria de viver, a passagem numa boate gay na noite fatídica e rumores da presença de pessoas suspeitas por lá.  Até a secretária nacional de direitos humanos caiu nessa tentação:  "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia".  Isso está escrito em sua nota oficial sobre o caso. Como se vê, a Secretária Maria do Rosário não sentiu qualquer obrigação de manifestar a prudência usual, mesmo nalguma frase clichê do tipo "Aguardaremos o final das investigações".  Seria muito insosso ante o apetite de justiça dos mobilizados.  Admitir o suicídio já faz pairar o budum do opressor oculto, mas onipresente.

Apesar do barulho feito, ainda está prevalecendo na polícia a ideia de suicídio. A qualidade das evidências dão tanta eloquência a essa tese que agora até a mãe do rapaz se mostra perplexa.  Esta circunstância abre uma perspectiva à reflexão do imaginário social exposto no drama dessa mãe.

Em que medida afinal a utopia racial presente no antigo culto à memória de Horst Wessel guarda distância da utopia sexual de Maria do Rosário?  A provisoriedade  para qualquer ação afirmativa em favor de  uma identidade de gênero e de raça.

É claro que decisões sobre ações afirmativas, em termos de políticas públicas, devem ser tomadas considerando dados estatísticos.   É claro que não insinuo que a Secretária Maria do Rosário pretenda resolver divergências de opinião com campos de concentração, como resolveram os partidários de Wessel.  Mas, essa clareza não exclui a avaliação dos sentimentos e dos imaginários socialmente compartilhados que aproximam as mortes de Kaique e de Horst Wessel.

Quando é perceptível que a polícia foi pressionada por um clamor politicamente articulado e endossado por alguma autoridade do governo federal a apresentar um culpado com um perfil predeterminado diante da imagem de uma vítima identificada como pertencente a um determinado grupo social, um calafrio percorre quem, embora inocente, repara que se encaixa no perfil padrão do criminoso imaginário.
  

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Todo espelho tem um gênio

Exercício de Dramaturgia
(esquete adaptada do folclore chinês)
Diálogos

DEUSA: Para onde vai?
CAMPONÊS:  Não vê, Senhora?  Carrego esta água, estou voltando à casa.
DEUSA: Vejo você cansado, por que não se senta comigo e descansa?
CAMPONÊS:  Não sei se devo...
DEUSA:  Ora, senta logo.  Vamos conversar.  Então é água de beber que carrega?
CAMPONÊS:  Quer um pouco?
DEUSA:  Aceito tudo o que puder me dar
CAMPONÊS: Tome o quanto quiser.  Mas, Senhora, o que fez?!
DEUSA:  Você mesmo me ofereceu.  E eu tomei o que bem entendia.
CAMPONÊS:  Mas só era para beber!  Que brincadeira é essa, derramar tudo!?  Se não sabe, Senhora, o rio fica longe e ainda longe daqui é minha casa.  Não basta o cansaço de minha pobreza? Olha, não lhe faço mal, porque logo vejo quem é... é uma Senhora rica e bem nascida! Tem gente aí escondida pronta para me matar, porque sozinha na estrada não pode estar.  Podem aparecer, mas não me façam mal!  Acabou a brincadeira e não farei mal algum a essa mulher: não poderão me acusar de nada!
DEUSA:  De que adianta não me fazer mal, se nada mais há do que sua pobreza e cansaço com que esperar por sua morte?
CAMPONÊS:  Tenho esposa.  Ela espera um filho meu.  Tenho medo.  Sou um camponês. E, com sua licença, Senhora, eu tenho de voltar ao rio, sem demora. Há sede de beber em minha casa.
DEUSA:  Pode ir.  Vai!
  
DEUSA:  Ele sabe o que é feito dele: um camponês pobre.  Mas, não sabe quem se torna por temor a mim, que sou uma deusa.  Mas esse temor é também o amor por sua esposa e por seu filho que nem conhece.  Nem sabe se sobreviverão ao parto, ao frio do inverno e à negra fome de sua miséria.  Mas, se nem sabe, eles já sobreviveram à minha passagem em sua vida; eu, que posso matar e deixar viver tudo que voa no céu, anda na terra, ou rasteja por debaixo dela.  Não sabe ele quem se torna ao fazer o que faz com o que dele é feito? Então, já não se reconhece mais como se conhecia.   Poderia ele me fazer mal, eu que sou uma deusa?  Não ousou.  Mas, maior ousadia é preferir viver sua vida miserável, que então já não é a miséria tão grande que ainda acredita ser. Ousou lembrar-se de sua esposa e de seu filho que sequer conhece, mesmo estando diante de mim, que resplandeço como deusa que sou; sempre deusa como me conheço e nunca me torno outra deusa.  Darei a ele um presente meu.  Ele, que se vê como eu o vi, mas não se reconhece mais como eu o reconheço.  Darei um espelho.  Ele, que só teve por reflexo a sua miséria e águas turvas do rio a lhe refletir com tanta realidade quanto o mais cristalino espelho. Ele que nunca conheceu um espelho assim, já se viu num vulto que faz tudo que ele faz. Mas, mas mesmo no mais cristalino espelho, é sempre um vulto o que se reflete.  E  nesse vulto cabe qualquer um, quando se torna quem é.    Brisa que sopra do céu, leva-me aonde quero ir, e me leva bem rápido, pois ao rio eu irei chegar muito antes do que um camponês pode correr!   

CAMPONÊS:  Neste dia, o que mais vai me aparecer?! Será que estou louco?!  Eu sei quem você é:  É meu pai!  É seu espírito no fundo dessa caixa.  Esses olhos...  Nem sabia que me lembrava de você.  Pai, por que me deixou tão cedo?  Como a vida foi difícil sem você.  Por que voltou só agora?  Agora, que eu lhe tenho de novo, não vai embora mais.  Vem, eu lhe levo comigo.  Aonde eu for.  Vamos para casa...

ESPOSA:  Homem, o que aconteceu?  Que caixa é essa?  Onde está a água?  Deixa eu ver?  Olha como é bonita e rica?  Você roubou!  Você deu para roubar agora, homem?
CAMPONÊS:  Ora, mulher, me deixa!  Não sabe como foi meu dia!  Não, não roubei.  Eu achei essa caixa, mas ela é um presente de alguma deusa.  Só pode ser.  Nela, está preso o espírito do meu pai. 
ESPOSA:  O espírito de seu pai?  Bebeu com que dinheiro, homem?  Deixa eu ver isso...
CAMPONÊS:  Não!  Pode se tornar uma maldição, pois foi presente de uma deusa que me apareceu hoje.  Agora, eu sei.  Era uma deusa.  E ela me fez voltar ao rio e achar esta caixa.  Ela me fez... não sei lhe dizer, mas então também pode lhe fazer mal.  Isso, pode.  Está resolvido: só eu irei ver o meu pai.  Ele pode ir e nunca mais voltar, se você abrir a caixa.     
ESPOSA:  Que bobagem é essa!  Você está louco!  É só uma caixa.  É bonita, é rica.  Você inventa estórias.  É porque roubou.  Deixa eu ver!
CAMPONÊS:  Eu já disse que não!  Só eu vejo !  Você, não! Pensa no nosso filho! E além disso, é o meu pai, e não o seu! É meu pai... Você não conheceu meu pai.  De que lhe adianta ver quem eu vejo?  E o que é uma benção para mim, pode ser uma maldição para você, já disse.  Não quero que veja!  Não lhe basta ver a caixa?  E não roubei.  É um presente de uma deusa, já disse.  Obedece seu marido, mulher!  Não toque nesta caixa!  Não quero lhe perder!  Você me dará um filho que já vem de seu ventre.
ESPOSA: Ora, seu maluco!  Você está cheio de estórias...  Você quer esconder de mim um tesouro em jóias.  Pensa que eu vou lhe roubar?  Deixa eu ver...  Devem ser bonitas e eu nunca vi jóias de perto.  Nunca toquei numa...
CAMPONÊS:  Não, me deixa!  Me deixa!
ESPOSA:  Não lhe deixo, não... mas que adianta insistir, agora, sua mula? Eu lhe conheço.  Quando bota uma idéia na cabeça, é isso, não há quem tire.  E tenho mais o que fazer do que ficar implorando para você deixar que eu veja o que tem dentro dessa caixa.  E nem água você trouxe.  Estou com sede.  Não há água.  Vai buscar.  Pelo menos isso você pode fazer por mim?!
CAMPONÊS:  Você vai pegar na caixa.  Não deixo ela sozinha com você.  Me deixa!   Ó, meu pai!  Viu como é minha vida?  Olha, essa miséria... sei que vê: o céu é o mesmo. Em todo lugar que eu vou, é o céu que vejo atrás de você.  Então, aí dentro dessa caixa também você vê em sua volta a minha vida miserável. Que farei eu?  Fala comigo!  Pai!  Pai?  Você me ouve, pai?

ESPOSA:  Já se vão horas e você só fica olhando essa caixa  sem parar.  Tenho sede.  Vai buscar água.  Olha, farei o que me manda.  Não tocarei na caixa.  Ouvi o que disse, agora tenho medo também.  Vai buscar água.  Eu fico aqui com a caixa.  Sem tocar nela.
CAMPONÊS:  Não.  Só vai ser eu virar as costas e você irá abrir a caixa, que eu lhe conheço. 
ESPOSA:  E por causa de sua suspeita, irá me matar de sede?  E a seu filho também?  Como pode?!  Se você não quer que eu toque nela justamente para que eu não morra...  Olha, agora tenho medo dela.  Juro, não encosto um dedo nela.
CAMPONÊS:  Eu irei, então.  Mas, esconderei a caixa antes.

ESPOSA:  Que homem bobo... até parece que conseguiria esconder de mim esta caixa.  Está tão interessado no que tem dentro dela que nem me viu me esconder e espiar.  Homem bobo... O que vejo!?   Que pai, que bobo, que nada!  No fundo dessa caixa me olham esses olhos de mulher!  É jovem!  E bonita!  Uma deusa, que nada!  Um demônio está roubando o meu marido de mim!  Ele está apaixonado por essa mulher!  Por isso, quer essa caixa só para ele.  E eu achando que eram jóias!  E eu esperando um filho dele!  Marido miserável!  Miséria de demônio!  Para longe do meu marido, coisa ruim!  Ele é meu!  É pouco, mas é meu!  Meu homem!  Estou esperando um filho dele.  Fica longe dele!  Vou lhe enterrar e nunca que ele vai lhe achar!

CAMPONÊS:  Trouxe água.  Aqui está.  Não chore mais.  Fui mais rápido que pude.  Eu sei que já escurece.  Um dia todo por um gole, tome...
ESPOSA:  Não tenho sede.  Não tenho mais.  Você se apaixonou por um demônio em forma de mulher.  Eu vi! Eu vi!  E eu pensando em jóias que iam tirar a gente dessa miséria...  Que você tinha roubado por amor a mim...
CAMPONÊS:  Viu o quê, mulher?  Que loucura é essa?  É a sede!  Toma a água...
ESPOSA: É a caixa!  Você nunca mais vai ver aquela caixa maldita!
CAMPONÊS:  Meu pai!
ESPOSA: Vilão!  E ainda quer mentir para mim?  Eu vi!  É uma mulher!  Você está apaixonado por ela?  Vai me abandonar?  Vai abandonar seu filho, homem vil?  E dos pretendentes que tive, fui casar com o mais pobre.  Por que não tive dote para ter um marido melhor? Desgraçada estou, porque meu marido se apaixonou por um demônio!
CAMPONÊS:  Onde está a caixa, mulher?  Onde está meu pai?
ESPOSA:  Cachorro!  E ainda insiste?  Eu vi!  Eu vi!
CAMPONÊS:  Eu mato! Eu lhe mato!  Cadê a caixa?
ESPOSA:  Mata-me, sim!  E seu filho também!  Eu já morri!  Você me matou.  Morrerei de fome.  Você vai me abandonar!  Sim, bem que você disse!  É uma maldição.  Aquele demônio me fez mal.  Vou morrer!  Você me matou!

MONGE:  Por que choram vocês?  Você está grávida...  e você que é o pai?  Uma criança é  um presente dos deuses.  Vocês foram abençoados com dias de esperança.  Por que choram?
ESPOSA e CAMPONÊS:  A caixa! 
MONGE:  Que caixa?  Que caixa pode fazer homem e mulher chorarem assim?  Algum tesouro se perdeu?  Mas vocês são tão pobres...
CAMPONÊS:  Sim, meu tesouro!  O espírito de meu pai está na caixa e essa desgraçada sumiu com ela.
ESPOSA: Cão!  Covarde!  Diz a verdade para este monge!  Um demônio está na caixa.  Em forma de mulher.  E meu marido se apaixonou por ela.  Vai me abandonar, se ficar com ela.  Eu a enterrei.  E eu pensei que eram jóias que ele tinha roubado para nos tirar da miséria...
MONGE:  Seu pai, um demônio?!  Jóias roubadas?!  O que dizem?!
ESPOSA e CAMPONÊS:  A caixa!
MONGE:  Mulher, traz-me essa caixa, por favor.  Quero ver o que tem nela, se me permitem.
ESPOSA:  Sim, eu busco, mas também é para levar para longe, homem santo!  A você, um monge, aquele demônio não pode fazer mal.  Vou buscar e leva o demônio com você.
CAMPONÊS:  É meu pai!  É meu pai que eu vejo, eu não esqueci dele.  Acredita em mim!  É meu pai que está na caixa.  Deixa a caixa comigo.  É minha!  É minha!  Um presente de uma deusa que apareceu para mim e deixou a caixa na beira do rio.  Não roubei nada.  Na caixa, eu vejo, só pode ser meu pai!  Não tem demônio nenhum.  Demônio é essa minha mulher, que ficou louca.  Eu disse para ela ficar longe da caixa.  Não me obedeceu e agora ficou louca.  Se escondeu, quando eu escondia a caixa.  E espiou.  Que será de nosso filho?  Que será de nosso filho?  Não vou abandonar meu filho como fez meu pai.  Ainda mais que agora ele voltou para mim.
ESPOSA:  Aqui está a caixa, olha e vê o demônio com seus próprios olhos e depois leva ela embora.  Salva nosso filho.
CAMPONÊS:  Salva o nosso filho, deixa a caixa!  Vê? É meu pai na caixa!  Ele está me protegendo de novo e vai proteger nosso filho também.
MONGE:  Meus amados!  Não chorem mais. Não temam, nem se apeguem a este presente.  É verdade, não são jóias o que há nela.   Mas, também, nem Demônio, nem seu pai moram aqui.  Mas é verdade, sim, que é um homem.  Ou, uma mulher.  Nesta caixa, só cabe alguém que é qualquer um, mas que já se torna um outro alguém.  Então, nesta caixa só tem um andarilho para o qual o mundo passa todos os dias, bem assim como eu.

Fim de cena



quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nada

Exercício de Dramaturgia

Título da esquete:  

Nada (adaptação de texto de Emmanuel Carneiro Leão)

Personagens

Personagem 1:  um velho calvo de longas barbas, vestido de túnica branca drapeada e cingida nos rins.
Personagem 2: um jovem de terno e gravata, cabelos alinhados.

Cenário: 

negro e desnudo.  À direita, uma mesa, sobre ela um computador e uma cadeira com encosto.

Marcação inicial:

Personagem 2 sentado à mesa, digita.
Personagem 1 de pé, a dois metros da mesa, de tal modo que fique às costas do personagem 2

Iluminação inicial:  

Dois fachos de luz branca, intensa sobre o personagem 2 e meia luz sobre o personagem 1. 

Sonoplastia:  

o som de teclas em digitação já se ouve por 30 segundos antes da iluminação dos personagens.

Cena:

Personagem 1:  - Que nada é?

Personagem 2:  (para de digitar, levanta-se, volta-se para o Personagem 1 se posicionando atrás e junto da cadeira, responde condescendente como se a pergunta fosse tola) - É óbvio. Nada é o inexistente.

Personagem 1:  Mas, se nada é, já não é nada. De que vale saber tudo, se não sabe nada?

Personagem 2: (Perde o equilíbrio sobre os joelhos e discretamente se apoia no encosto da cadeira, em silêncio, volta a se sentar e recomeça a digitar, após 30 segundos, diz a si mesmo): - Vou achar uma resposta num instante, ele vai ver.

Após 30 segundos, a meia luz sobre o Personagem 1 se apaga lentamente, enquanto a luz sobre o Personagem 2 fica mais intensa.  Após, repentinamente se apaga e ouve-se apenas o som da digitação em completa escuridão.  Após 1 minuto, o som da digitação repentinamente também some.  O silêncio e a escuridão permanecem por mais 1 minuto.  Então os personagens 1 e 2 voltam a ser iluminados em meia luz.  O personagem 2, agora com o paletó displicentemente descansando sobre o encosto da cadeira, cabelo desalinhado, gravata frouxa, punhos da camisa desabotoados e as fraldas dela por sobre a calça, levanta-se e volta a se postar atrás da cadeira e de frente para o personagem 1, que permanece imóvel. 

Personagem 2:  (Passa as mãos para arrumar os cabelos, tira a gravata, a põe sobre o paletó e dobra as mangas da camisa) - Agora sei que não sei nada.  Mas, saber que não se pode saber de todo pode mais que não saber nada.

Personagem 1: (despe de sua túnica o torso, vai ao encontro do personagem 2, toca-lhe o rosto e põe-lhe olhos nos olhos) - Mas, mesmo com todo esse poder, saber não pode não saber que não sabe nada de todo.

Fim da cena

Liberdade de manifestação e a moral da estória

O Papa Francisco andou fazendo críticas ao capitalismo no seu aspecto mais global: o consumismo.  

Mas hoje lembrei-me de um comentário de seu prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Gehard Ludwig Müller: por trás das perversidades em uma estrutura, há sempre pecados pessoais.

Quem já não se disse sem pudor e até com um certo orgulho, alguma vez, guloso, ou preguiçoso, ou irascível, ou luxurioso?  Mas nunca vi alguém assumir fácil assim que morre de avareza, soberba e inveja.  São esses os pecados que se irmanam pela dissimulação.  São esses então que requerem nossa especial atenção conosco mesmos.

Há quem anda dizendo que o tal do rolezinho põe em xeque um código oculto dos shopping centers de luxo, em que pobre e preto só tem lugar como faxineiro, segurança e manobrista.  É liberdade de manifestação e afirmação de uma identidade racial e social emergente.

Pode até ser, mas quem não consegue distinguir a diferença entre um espaço público e um espaço privado aberto ao público, se esquece que rolezinhos, ao afugentarem consumidores de seus templos, botam em xeque os empregos de faxineiros, seguranças e manobristas.  Gente humilde, sem cor predefinida, sobretudo ocupada em levar para suas famílias o pão com o suor de seus rostos e honradez, cuja dignidade conta com a proteção das nossas leis trabalhistas.  

Cuidado:  todo discurso tem uma estrutura de linguagem! Essa indistinção marota pode ser sinal de morte por inveja... ou burrice que nos emparelha com o que há de mais tosco no pensamento de Hugo "por que não te calas" Chávez.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A Lei e o Drama

O Senhor falou a Moisés, dizendo:
 "Fala a Aarão e a seus filhos de Israel, dizei-lhes:
'O Senhor te abençoe e guarde!
O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti!
O Senhor  volte para ti o seu rosto e te dê a paz!'
Assim invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e eu os abençoarei"
Nm 6, 22-27

Quando veio o tempo previsto, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei,
a fim de resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva.
E porque somos filhos, Deus enviou aos corações o Espírito do seu Filho, que clama: "Aba - ó Pai!".
Assim, já não somos escravos, mas filhos; e se somos filhos, somos também herdeiros: 
tudo isso por graça de Deus
Gl 4, 4-7

A clareza de qualquer conceito pode ser apreciada quando se analisa as regras que alguém segue quando usa, de modo competente, esse conceito na linguagem.  Porém, se uma consciência crítica e objetiva logra pleno domínio sobre conceitos que sejam formais, já não é possível esse modo para ideais em seus absolutos materiais - os valores.   Nesses casos, tenta-se determinar o significado da palavra verdade por recurso ao uso dos adjetivos correspondentes que se aplicam a objetos e pessoas.  Se se quiser determinar o que verdade significa, deve-se atentar para o uso do predicado pertinente. Estabelece-se critérios de que alguém se serve para aplicar o termo verdadeiro. Qualquer procedimento de elucidação de um conceito axiológico, nesse caso, vai incluir própria abordagem desse procedimento, inclusive os empíricos: a sua validação.

A validação, por sua vez, consiste de argumentos que visam a legitimação na positividade do predicado sobre o objeto ou pessoa. A argumentação é composta de raciocínios em que são avaliados os cursos de ação seguidos ou a serem seguidos com relação a algum padrão, desejo ou interesse. No Direito, a dificuldade não se dá tanto nas descrições fáticas ou nas prescrições normativas, os quais uma competência crítica de objetividade dá conta.  Nas avaliações  essa dificuldade já se manifesta na própria oscilante relação histórica entre o Direito e a moral, conquanto ambas organizam as ações que interferem nos interesses, desejos e sentimentos uns dos outros.

Na organização dos cursos de ação, pode-se falar de habitats em que estão estruturadas e determinadas as funções estatais e do modo como os agentes públicos imbuídos de realizar essas funções raciocinam ou devem raciocinar.  Uma instituição moral não só organiza um curso de ação da vida individual ou social das pessoas, mas também impacta as ações estatais de modos variados.  As variações têm a ver com os poderes e funções estatais.  Mas, se é possível pôr em xeque uma argumentação jurídica  que determine o uso do predicado justo  ao correlacioná-la a padrões morais, é discutível se a moralidade toma parte da essência do direito.

Como a argumentação jurídica já se dá num contexto de incredulidade em relação às metanarrativas, é interessante a distinção entre o jogo e o drama. No jogo, as partes são evidentemente opostas, mas há uma ordenação aceitável mesmo para o perdedor, porque foi traduzido numa linguagem jurídica compreensível e significativa para as partes.

Ao contrário, em um drama, a argumentação jurídica permanece incompreensível para uma das duas partes, de sorte que a tutela jurisdicional aparecerá como uma violência desnecessária. Uma das partes terá o sentimento de não ter sido entendida e que seu dano permanece irreparável ou que sua atribuição (ou retribuição) precisa ser diferente para ser justa. O Direito se propõe mais em atribuir a cada um o que é seu. Há uma atribuição, restituição ou retribuição, mas que reforçam a própria ordem jurídica em vigor, embora possam ser injustas.  Além desta atribuição, restituição ou retribuição às partes, a justiça aparece na tentativa de retomar o vínculo pessoal perturbado criando as condições para que cada um possa se integrar à normalidade. Nesta teleologia do justo, o objetivo não é mais a simples realização do status quo ante, mas a pacificação social ou harmonização que leva em conta as condições psicológicas e sociais do drama.

É para o drama que as fundamentações valorativas encontram maior relevância para o direito, mas no drama também encontram os seus limites, eis que um raciocínio já é epígono da comunhão e da catarse.   Na comunhão ou excomunhão constitutiva de uma identidade ética, aparece a narrativa como o acontecimento em inflexão para a reflexão axiológica.


foto 1 www.bielefeld-marketing.de  
foto 3 http://www.midiaindependente.org/pt/green/2011/02/485876.shtml