quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

JOSEPH

Joseph
(comp. George Moustaki)

Voilà c'que c'est, mon vieux Joseph
Que d'avoir pris la plus jolie
Parmi les filles de galilée
Celle qu'on appelait Marie
Tu aurais pu, mon vieux Joseph
Prendre sarah ou Déborah
Et rien ne serait arrivé
Mais tu as préféré Marie
Tu aurais pu, mon vieux Joseph
Rester chez toi, tailler ton bois
Plutôt que d'aller t'exiler
Et te cacher avec Marie
Tu aurais pu, mon vieux Joseph
Faire des petits avec Marie
Et leur apprendre ton métier
Comme ton père te l'avait appris
Pourquoi a-t-il fallu, Joseph
Que ton enfant, cet innocent
Ait eu ces étranges idées
Qui ont tant fait pleurer Marie?
Parfois je pense à toi, Joseph
Mon pauvre ami, lorsque l'on rit
De toi qui n'avais demandé
Qu'à vivre heureux avec Marie

 

(trad. Nara Leão)


Olha o que foi meu bom José
Se apaixonar pela donzela
Dentre todas a mais bela
De toda sua Galileia
Casar com Débora ou com Sara,
Meu bom José, você podia.
E nada disso acontecia
Mas, você foi amar Maria
Você podia simplesmente
Ser carpinteiro e trabalhar
Sem nunca ter que se exilar,
De se esconder com Maria
Meu bom José, você podia
Ter muitos filhos com Maria
E teu ofício ensinar
Como o teu pai sempre fazia
Por que será, meu bom José,
Que esse teu pobre filho um dia
Andou com estranhas idéias
Que fizeram chorar Maria?
Me lembro às vezes de você,
Meu bom José, meu pobre amigo
Que desta vida só queria
Ser feliz com sua Maria
Que, neste tempo de Advento, a lembrança da Sagrada Família seja para si uma pergunta pelo Deus Menino... Por que será?

Se a felicidade de alguém escapa das próprias mãos, nas suas mãos está a cooperação para a felicidade em comunhão.  Então, que entre as causas para participar  em sociedade e a rotina de produzir  com seu esforço, aconteça com sua família esse instante criador de felicidade.


É o voto de Guilherme de Janete, Ana Clara, Bernardo e Tiquinho

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Timon, Ela e o Mágico

Um dia de mágico tive ao levar minha filha de 12 anos ao teatro.  Não um teatro qualquer, mas à Casa da Europa para a encenação de Timon de Atenas, texto de William Shakespeare com adaptação chancelada pelo Teatro Nacional de Londres, traduzida por Barbara Heliodora, produção, direção e interpretação profissionais que de melhor se pode realizar no Brasil.  Enfim, proporcionei um encantamento a quem teve seu primeiro contato com um teatro espetacular em todos os sentidos.  

Não que ela estivesse totalmente despreparada.  Ela já fez curso de teatro na CAL e, claro, assistiu boas encenações para o público infantil.  Mesmo, a vinha este ano levando no Teatro Ziembinsky à noite.  Este preparo lhe permitiu  contemplar melhor o quilate da peça diante de seus olhos, que para ela era eu quem lhe proporcionava.  E os aplausos ao fim do espetáculo também eram para mim.  Para mim, num comentário espontâneo dela (isto é, sem que eu lhe provocasse com um e aí, gostou?) durante as palmas:  Nossa, que legal!  Se tivesse eu uma cartola, ali faria uma mesura.

Mas, até agora, falei da encenação.  E qual foi o truque deste mágico aqui?  A adaptação traz a peça para uma cena contemporânea, enfatizada pela montagem com visões das manifestações agora lembradas como jornadas de junho.  No entreato, fiz-lhe esta pergunta:  Por que essa peça mostra tudo passando hoje, e não na época dos gregos antigos como diz o texto de Shakespeare?  Pronto, a cara de surpresa dela era o que eu esperava e então tirei o coelho da cartola:  É para mostrar o que Shakespeare quer mostrar... o que aconteceu na época dos gregos, que acontecia na época em que ele vivia e que também acontece hoje.  E sorvi o vinho dos mágicos, a iluminação em seu rosto diante do coelho nas minhas mãos.  Aí era os talentos da autoria, adaptação, tradução, direção, produção e interpretação que proporcionavam naquela garota, diante de uma simples pergunta e sugestão da minha parte, alguma coisa próxima de uma sessão de Gestalt-terapia.  Seu rosto a acusou atravessada pelo contato com a realidade na realização do real.


Timon facilitou que eu me fizesse feiticeiro para ela.  É um personagem diferente de Otelo, Liar, Hamlet e Macbeth.  Shakespeare não está tanto interessado na personalidade do personagem como está na personalidade do público.  Demonstrando seu domínio sobre o assunto, Barbara Heliodora relaciona o momento em que Shakespeare concebeu Timon com as mudanças por ele vivenciadas no fim do reinado de Elizabeth e os primeiros anos da regência de Jaime I.  Timon denuncia que Shakespeare percebia junto à crescente sofisticação intelectual da Corte um declínio dissimulado da nobreza na aristocracia inglesa.  

A certa altura, Apemantus sintetiza o personagem que é Timon:  antes, louco; agora, tolo.  Em dois atos, a peça propõe uma mudança falsa.  Timon opulento e Timon miserável.  Falsa, porque nada muda em Timon.  A autoestima alimentada com elogios e atenções que recebe o inebria a ponto de acreditá-las provas da graça a que se julga merecedor por pródigo em favores e agrados a quem lhe envolve com sorrisos e solicitações.  O choque de consciência da fragilidade dos seus laços atados com poder e riqueza  não o torna mais sábio, porém ressentido.  O poder e a riqueza não são  resultados de manipulações e cálculos, mas são um direito seu pela dignidade de seu porte.  As manipulações e os cálculos então são tomados por usurpação do que é seu por direito humano.  Então toma a rebeldia política e o  antagônico social por mudanças radicais.  O ressentimento não lhe permite antever que está dando a mesma rasteira em si mesmo.  Novamente traído, resta-lhe de seu túmulo um grito impotente:


- Canalhas! 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Da anedota à crônica

Três lobas.  Uma pequena matilha do ginásio que a professora tinha de separar para acabar com o zunzunzum durante a aula.  Não se viam havia décadas, mas se reencontraram algum tempo atrás pelo Facebook.  Depois de alguns fracassos, na agenda e do cotidiano de ex-mulheres com filhos, segundo casamento e profissões, finalmente a curiosidade venceu e se viram frente a frente para refletirem as próprias trajetórias nas diferenças uma com as outras.  Num bar qualquer, se mediram e repararam até nos cotovelos entre sorrisos e beijos.  

Na medida das tulipas, foram se envolvendo nas amenidades do papo até que a mentira lhes pareceu verdadeira.  As marcas do tempo nos rostos que olhavam se desvaneciam e o que havia milênios tinha sido ontem.

Então, uma delas propôs um sinal de que uma amizade como aquela não acabava nunca: contariam cada uma às outras um segredo.  No indistinto brilho do olhar alcoólico ou aventureiro, atalhou: 

- Sou adúltera, tenho um amante.  

No que foi secundada em meio às gargalhadas com um disparo à altura: 

- Sou bissexual, tenho uma amante. 

Foi quando dois olhares então pousaram na que de olhos baixos nas suas próprias mãos pousadas sobre a mesa esboçava um sorriso de delícia antecipada:  

- Vocês sabem como é... continuo a mesma... sou fofoqueira. 

sábado, 1 de novembro de 2014

A Decadência de Drácula

Decadência não necessariamente diz de corrupção.  Diz mais do tempo para que mais do mesmo pensamento exponha os limites de sua realização.  Desse tempo de decadência para descoberta dos limites, a degeneração para o pensamento de uma época.

A decadência de um mito diz tanto de sua passagem quanto de sua permanência.  Gary Shore se propôs a recontar mais uma vez a estória de Drácula. Nada menos do que uma remissão ao Sétimo Selo - película que entra fácil numa lista de filmes inesquecíveis.  No Drácula, como no xadrez, há um diálogo entre o guerreiro e a morte em que ela nunca perde, mas ao guerreiro jogar, ganha a imortalidade num trânsito para o imaginário. 



O filme de Gary Shore mostra a decadência do mito desde o livro de Bram Stoker.  Pode-se dizer que o cruzado moderno não se eterniza por Deus, pela pátria ou alguma utopia no jogo com a morte, mas por amor.  E na decadência do amor, no trânsito das banalidades cartoriais que se diz liberdade civil, então Drácula desloca o seu foco para o que era impensável no romance original: a sacralização do filho em idade escolar.  Aí, o xadrez radical entre o guerreiro e a morte aparece normalizado na disposição de vôo à jugular de outrem.  Que o digam os professores depois de mais uma reunião de pais.  Mais ou menos o que acontece no mês de aniversário dos Supermercados Guanabara.


E talvez Dracula tenha escolhido então uma maneira eloquente de contar a  sua degeneração:  na ética e na estética, ele se tornou um mutante X Men!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Apresentação no III Encontro Brasileiro de Pesquisadores em Cooperativismo

Fez parte da graça surpreender no III EBPC em Palmas com o ensaio Cooperação como valor de identidade universal das cooperativas - uma abordagem teológica. São acadêmicos de Direito, economia, contabilidade, administração, pedagogia que se reúnem e... como foi comentado entre risos por um colega depois da apresentação: "vim assistir pensando que era um erro de digitação e o artigo fosse de teleologia, mas era teologia mesmo!"  O texto sairá nos anais do Encontro e em breve estará disponível pela internet.  Por ora, apresento como fiz aos colegas de academia e profissão.
Nosso amigo Ênio Meinen, um sincero e entusiasmado cooperativista honorável, nos conta que o Prof. Robert Shiller da Universidade de Yale, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 2013 palestrou na 2ª Cúpula Mundial do Cooperativismo.  Ele falou sobre como direcionar os negócios e finanças para o desenvolvimento de uma boa sociedade.
Nas palavras escritas pelo Ênio tiradas da palestra:   
“Boa sociedade” é a que tem bons cidadãos. É aquela na qual as pessoas fazem o que esperam dos seus semelhantes (ou, não fazem aos outros o que não querem que estes lhes façam). Respeitar os outros como seres humanos – pessoas, e não como objetos. Esta é a “Lei de Ouro”, o critério universal da conduta humana. Está no Upanishad, no Budismo… E assim também disse Confúcio!
O conceito em questão está muito próximo do modelo da cooperação. O movimento cooperativo constitui uma inovação essencial para uma boa e nova sociedade. É, portanto, uma iniciativa sempre atual para esse propósito. O movimento cooperativo reconhece o livre comércio, mas que, singularmente, não tem o lucro como objetivo primeiro.


Empatia é um valor importante. Significa cultivar os mesmos sentimentos da outra pessoa. Esse termo não exista até o início do Século XX. Quem o cunhou foi Theodor Lipps. Isso é diferente de simpatia, um sentimento de pena, uma concessão e não um compartilhamento. Esse pelo menos é o significado no sentido inglês do termo.

Uma palavra próxima de empatia, e igualmente nova, é neurônio-espelho (mirror neuron). Cooperativismo tem tudo a ver com empatia e “neurônio-espelho”. As cooperativas surgiram no Século XIX, durante a revolução industrial, e muito se desenvolveram a partir do Século XX. A ação cooperativa é, portanto, antecedente à criação das duas palavras, e possivelmente inspirou a sua concepção. Cooperativismo, enfim, é sinônimo de boa sociedade.

O cooperativismo, no entanto, também irá mudar com o tempo. A tecnologia da informação trará muitas inovações formidáveis… O movimento precisa ser receptivo quanto a isso, e assim irá manter-se atual.
Este relato do Ênio é um excelente ponto de partida para a apresentação do meu artigo.
O conceito de empatia em Lipps ainda estava associado a um tipo de imanentismo  (o psicologismo) muito em voga no Sec. XIX.  Houve, no entanto, um salto na virada do Sec. XX da percepção da empatia à compreensão de que a consciência não tem lugar (no neurônio, por exemplo).  Que consciência é uma dinâmica, uma relação.  Este salto se deu, quando Max Scheler escreveu o Formalismo Ético e a Materialidade dos Valores, leitura com qual se pode compreender a cooperação como valor, e não como forma, modelo ou comportamento. 
A empatia como atividade corporal e os valores como matérias ideais transcendentes são então temas da tese de doutorado de Edith Stein, uma aluna de Max Scheler mais tarde canonizada pela Igreja Católica e também conhecida como Santa Teresa Benedita da Cruz.   A ética a partir da teoria de Max Scheler para os valores ainda foi tema de uma tese de doutorado escrita por outro ilustre católico, também canonizado como santo, o Papa João Paulo II.
O problema da empatia entre a cooperação como comportamento de raiz neurológica e como um absoluto material, ideal e transcendente pode ser percebido na correlação entre a palestra de Robert Shiller e o filme de terror em cartaz Livrai-nos do Mal.  
 Trata-se do mesmo confronto encontrado entre o pensamento de Jean-Paul Sartre, autor de A Náusea e a trilogia Os Caminhos da Liberdade, e de Albert Camus, autor de O Estrangeiro e de A Peste.
Ambos eram muito amigos e em Camus, Sartre se inspirou confessadamente para conceituar o intelectual engajado.  Depois, romperam um com o outro. Em que pese a tese de seu doutorado sobre Santo Agostinho e em que pese também seu próprio ateísmo, a respeito da opção de Sartre pelo marxismo, em Nem Vítimas, nem Carrascos, Camus fez um comentário que permanece muito atual
"O terror não se legitima a não ser que admitamos o princípio: 'o fim justifica os meios'.  E esse princípio só pode ser admitido se a eficácia de uma ação for considerada um objetivo absoluto, como é o caso das ideologias niilistas ou nas filosofias que fazem da história um absoluto. "


Sartre, por sua vez, fez um comentário irônico a respeito de Camus muito ilustrativo de seu próprio modo de perceber o problema:  "Camus se acredita fora da história e se vê ingressando nela de tempos em tempos".
 O mesmo problema foi exposto de uma maneira bastante divertida pelo Prof. Emmanuel Carneiro Leão, único brasileiro que foi orientado por Heidegger e se tornou leitor do grego arcaico. A letra de Carneiro Leão é esta:
Soren Kierkegaard encontrou na história de Abraão o paradoxo da fé.  Nos versículos 1-12 do Capítulo 22 do livro do Gênesis, Deus ordena Abraão a sacrificar Isaac, filho único que lhe chegou na velhice.  Uma angústia de morte se apodera do coração de Abraão, com a alternativa 'ou/ou', de um paradoxo insolúvel:  ou matar Isaac e cometer um filhicídio, ou não matar Isaac e cometer um deicídio.  O conflito lhe traz um paradoxo indomável com toda a carga de angústia da existência humana.  É o conflito ambivalente da fé que sempre lança o crente na tragédia de um beco sem saída.  Toda fé é o paradoxo de uma vida sem alternativa.
O crítico moderno, porém, pergunta como é que Abraão tem certeza de ter sido realmente Deus quem ordenou o sacrifício.  Esta dúvida é o do descrente moderno, perseguido sempre pela certeza.  Mas não é a dúvida de Abraão.  Abraão não duvida.  Leva Isaac com dois amigos para oferecer o sacrifício no monte indicado por Deus.  Na caminhada, Isaac pergunta ao pai se não está faltando nada para o sacrifício.  Estão aqui a lenha, o fogo, a ara, a faca... só falta a vítima.  Abraão responde que Deus providenciará.  Deixa os dois amigos no sopé do monte e sobe com Isaac.  No lugar indicado arma o altar, põe lenha debaixo e amarra Isaac em cima.  Quando vai sacrificar o filho, ouve uma voz que diz: "Abraão, Abraão, não é para matar a criança, foi apenas para testar a fidelidade de sua fé".   Aliviado, Abraão solta Isaac. 
Até aqui reza o relato do Pentateuco.  A descrença moderna, no entanto, não para aí.  Procura uma explicação racional para fato tão estranho e continua:  desamarrado, Isaac desce o morro correndo, e embaixo encontra os amigos que, espantados, perguntam o que houve.  Ainda apavorado, Isaac responde: o velho endoidou.  Com o papo de sacrifício ele queria mesmo era me matar.  Se eu não sou ventríloquo, agora estaria morto.
Esta tentativa jocosa de explicar racionalmente que o paradoxo da fé não passa de um ventrilóquio supõe que a fé é um fato entre fatos e não o paradoxo, que na angústia do coração cria o perfil singular da existência humana.
Qual é o problema?

Se a identidade tem sido uma preocupação constante para as cooperativas, ela assume feição de um dilema angustiante em suas realizações:  como  expor os princípios de identidade cooperativa e promover fidelidade a eles em meio às manobras pelos consensos e às pressões por resultados?  A resposta pela educação é ingênua, na medida em que a ética suscita indagações cujas respostas são irredutíveis imediatamente à cognição e à habilidade.

Intrigado com esse dilema, empreendi uma investigação na qual constatei que a declaração vigente para a Aliança Cooperativa Internacional sobre a identidade cooperativa não distingue a cooperação da cooperativa[i].  Ora, se uma sociedade,  uma propriedade, ou  um ato por serem cooperativos, não nos são indiferentes, cooperativistas que somos, suportam em comum um valor singular, mas que lhes transcende - a cooperação.  

Essa indistinção entre cooperação e cooperativa induz o Plano de Ação da Década Cooperativa (o Blueprint da ACI) a expressar a cooperativa como forma ou modelo, conquanto sua materialidade é tomada por empresarial:  uma empresa (atividade) sob forma cooperativa[ii].

 O problema:

Uma identidade que nos seja afetiva não pode ser reduzida à forma sem que isso se torne um problema. Pois para nos afetar, o valor que essa identidade suporta - a cooperação - precisa ter fundamento material, ainda que seja também idealizado.

Como lidar com o problema?

A ACI está adotando um discurso erigido  a partir da relação racional entre meios e fins.  Em linguagem recorrente, a cooperativa aparece como uma atividade (meio) para a felicidade e sustentabilidade (fim).  A cooperação então não aparece como um bem por si, pois é neutra, objetiva e racional.  Aparece como atividade, pois o que é bom só é mostrado em seu resultado: numa felicidade e numa sustentabilidade como objetivos (a felicidade é um desejo a ser concretizado com responsabilidade social e ambiental - a sustentabilidade).  O pensamento que "empurra" o que é bom para além da cooperação é o mesmo que só reconhece o bem para uma pessoa por ser prática; pensamento este que torna o bom e o belo  algo subjetivo e portanto difícil a percepção do que seja um bem comum.

A polaridade da cooperação na ordem econômica remete, por outro lado, a uma devoção de vida e a uma vocação, ambas dirigidas ao bem comum como consumação de uma promessa.  E não somente como resultado das relações entre vantagens e ônus, incentivos e sanções disciplinares, custos e margens.  Mas, é muito importante ressalvar: ambos os sentidos não são excludentes.  Ao contrário, são integrados.

Qual é a proposta? 

Para lidar adequadamente com o repertório de idéias que dizem da cooperação como transcendente da cooperativa é necessário adquirir o que chamarei aqui de competência hermenêutica para a cooperação.  A teologia é matéria de estudo com potencial para o amadurecimento dessa competência.

Proponho colaborar com o artigo no empreendimento dessa aquisição.  Em outras palavras: se a identidade cooperativa é um problema insistente,  a perspectiva teológica pode nos suscitar diferentes planos para a própria identidade. 

A competência hermenêutica então passa pelo esforço, propósito e hábito em apropriar-se de repertórios de ideias e deságua na distribuição do apropriado aos diversos setores que reconhecem a identidade cooperativa em seus processos -  marketing, jurídico, formação pedagógica etc.
Em seguimento, a competência se renova pelos diálogos abertos para retroalimentação e avaliação permanente das expressões e dos silêncios dos próprios repertórios aos desafios das cooperativas com vistas à adequação do que se conhece como identidade cooperativa.





[i] "As cooperativas baseiam-se em valores de ajuda e responsabilidade próprias, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Na tradição dos seus fundadores, os membros das cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelos outros". (Congresso Centenário de Manchester, 1995)
[ii] "Único caso entre os modelos empresariais, as cooperativas fornecem recursos económicos sob controlo democrático. O modelo cooperativo é comercialmente eficiente e uma eficaz forma de fazer negócios que cobrem um largo espetro das necessidades humanas"(p. 2)
"O ambicioso Plano – a “Visão 2020”- visa que em 2020 a forma cooperativa de negócio se torne: (....)
o tipo de empresa com mais rápido crescimento (....).  Por isso acreditamos que as prioridades maiores são levar cada vez mais pessoas a conhecer a forma cooperativa de empresa (....) "(p.3)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Hércules


Qual é a verdade?  Não se lha conhece senão em função dos fatos e do desempenho.  Eis o argumento de mais um filme de pancadaria estrelado por Dwayne The Rock Johnson.  Mas, a produção caprichada ofereceu  uma abordagem ao mito que, sem qualquer concessão ao pensamento grego originário, não o violenta demais.  Ao contrário, o mantém afetivamente íntegro.  E torna-se mais interessante do que mais um filme de pancadaria.

O roteiro, da qual consta uma assinatura grega (Ryan Condal, Evan Spiliotopoulos), se enreda entre verdade e revelação; entre os mitos e os fatos, cuja diferença não está entre falsidades e verdades, mas entre perspectivas e funções.  Então, o semi-deus é um ser humano extraordinário: um mercenário honesto e general brilhante.  Mas, dotado de uma força titânica, deixa em aberto se não seria uma verdade misteriosa a sua filiação divina.  Ainda que sob uma leitura de predeterminação própria da cultura americana, impressa na confiança do slogan: Yes, you can.

A maior violência ao mito de Hércules é paradoxalmente histórica.  Mito arcaico, Hércules, no filme, adota estratégia militar que só foi pensável depois de Aristóteles.   De certo modo, pode-se dizer que o filme condensa todo o percurso histórico em que a técnica se afasta do poético e se aproxima do lógico, na culminância da funcionalidade.

Na superposição de funções, o filme está endereçado para quem quer ver mais um filme do incansável The Rock distribuindo sopapos em takes coreografados e plásticos.  Mas, é notável que um filme movido a coreografia e efeitos digitais, tão explicitamente também se proponha à discussão de um tema cheio de sutilezas e armadilhas como é a verdade.

Enfim, convide com coragem seu filho ou sobrinho pré-adolescente ou aborrecente para um programa pipoca que o  filme deve acabar antes que a sua paciência se acabe.

O Macaco tá certo!

O título é uma reminiscência do bordão humorístico televisivo na tradição do Zorra Total.  O bordão caiu no gosto popular por conta do sucesso alcançado nos anos 70 pela 1° trilogia Planeta dos Macacos.  

Era mais uma narrativa distópica pós apocalíptica atômica que foi comum nos telões daqueles tempos.  Estrelado significativamente pelo ator-ícone Charles Heston, a trilogia convidava à catarse pela inversão do destino de um WASP (branco, anglo-saxão e protestante) submetido à opressão extrema de uma metáforica República de Bananas.


  

Esse sentido político de terceiro mundo foi enfatizado ainda mais no seriado subproduto para a TV, que introduziu o inesquecível Urko.  Ele era um general gorila obsecado pelo estrangeiro, cuja presença convocava ao pensamento (este o argumento de tensão na trilogia cinematográfica exposto no antagonismo entre o personagem de Heston e Zaius, um macaco teocrata).  Tanto Urko como Zaius intuíam uma subversão mais que possível e já insinuada no fascínio despertado num casal de jovens chipanzés intelectuais.  Enfim, uma narrativa bem anos 70.

Já entrou em cartaz o segundo filme da nova trilogia.  O primeiro filme, A Origem, reinventou o último da trilogia original.  Embora ainda focado na relação ciência e consciência, os argumentos são bem diferentes.   Em grande medida, A Origem é um drama psicológico na descoberta de si mesmo por um macaco.  

O roteiro do filme até que ia bem: “não confie em chimpanzés”.  A fala da mocinha, uma zoóloga, indicava a questão fundamental que prometia ser explorada.  Um chimpanzé transgênico apresentava uma inteligência que superava até mesmo a dos humanos.  Inteligência aí revelada por tomada de decisões estratégicas, táticas e operacionais logicamente adequadas a cada situação que se lhe apresentavam.  Mas, humanidade transcende a inteligência.  Isso foi insinuado pela incapacidade desse chimpanzé em compreender interdições éticas.  Isso aconteceu ao lidar com um vizinho brigão: foi incapaz de compreender porque fora expulso do paraíso. Ao não conter seu próprio impulso violento, morder o vizinho e ser por isso retirado de seu habitat.

Mas, o enredo infelizmente seguiu pelo terreno pantanoso do politicamente correto.   O foco passou a ser a ganância da indústria farmacêutica e a crueldade com os animais.  Aí, o roteiro comete uma idiotice.  Numa contradição evidente com seu argumento inicial, o tal macaco consegue  estabelecer relações éticas com outros macacos do abrigo para animais em que é posto. É como se, de repente, a ética passasse a ser uma manifestação natural acessada e dominada pelo intelecto, tal como é a lei da gravidade.  O filme se torna um pastiche, uma comédia involuntária.  Os macacos se descobrem encarcerados e oprimidos. E estabelecem “naturalmente” um código moral típico entre presidiários. E o chimpanzé que ficou inteligente com o tal vírus furta e espalha mais dele. É uma paródia de preso político que conscientiza com ideologia censurada outros presos, antes “comuns”.  A consciência coletiva evolui na organização do PCC: Primatas no Comando da Capital.  Subversão como patologia é isso aí.

Então, acontece a batalha. A figuração é: macacos oprimidos contra as forças repressoras a serviço do cartel da indústria farmacêutica.  A batalha é o salve geral.  A dublagem perdeu uma oportunidade de ouro na cena final.  Após a batalha, o mocinho, o cientista fofo, que, no início do filme, cuidava carinhosamente do macaquinho danado, o convida para voltar para casa.  Porém, o chimpanzé da pá virada dá uma olhada para o bando de símios marginalizados que o acompanham na “liberdade” da sua “Sierra Maestra” e finalmente articula o texto de ser "quem" se sabe macaco: “Já estou em casa.”  Melhor acabamento o filme teria se o texto falado pela dublagem fosse outro:  “É nóis, tá ligado?”

O segundo filme da trilogia atual  se chama O confronto.  Quanto à proposta argumentativa que se perdeu no primeiro filme... perdida está.  Não há macacos no segundo filme.  Há metáforas humanas. 

O filme volta à fábula explorada pela primeira trilogia, com direito ao contexto pós apocalíptico. A causa do apocalipse não é mais atômica, mas biomédica, recurso comum nos filmes de zumbis.  Aliás, este filme guarda ainda uma afinidade com bons filmes de zumbis pela abordagem mais antropológica.  E como na inaugural Noite dos Mortos Vivos, o argumento formula uma questão racial.  O corpo é apresentado como que numa casa de espelhos em que as identidades vão sendo criadas e recriadas historicamente pelos incontáveis reflexos da alteridade diante de si. A descoberta dos preconceitos se dá entre a criação e a recriação dessas identidades.  


A  esperteza do roteiro para apresentar o argumento aparece num deslocamento do antagonismo entre macacos e humanos para o interior da comunidade símia, que culmina numa disputa política pelo poder.  Bem ao estilo da fábula de George Orwell proposta na Revolução dos Bichos.  Como na fazenda orwelliana, a condição humana é desvelada no abismo entre o que identifica e o quem é identificado.  O quem só se mostra nas infinitas possibilidades entre o que é feito com alguém e o que este alguém faz com o que é feito dele.  Deste modo, o confronto se que dá título ao filme está revelado na radicação da violência pessoal. Ela se articula a partir do interior da comunidade de primatas para um conflito generalizado de todos contra todos, simbolizado então nas batalhas entre homens e macacos.

domingo, 28 de setembro de 2014

Fomos todos um dia José Maria-Ninguém

Peço desculpas, mas sem julgar as mulheres que abortam, não posso e não devo aceitar o argumento de que, sendo o Estado laico, o aborto é um assunto estrito de saúde pública.

A máxima "meu corpo, minha lei" supõe o corpo como inteiramente pertencente a uma pessoa. Isso é uma convicção cega, pois o corpo é fenomenal. 


A marcha das vadias expõe a ambiguidade do corpo fenomenal: Se a sensualidade não justifica qualquer violência sexual, a sensualidade intencional de uma mulher é expressão do desejo de ser desejada em seu corpo. Isso é fenomenal. Ou seja, uma vez que o corpo de alguém me afete, ele, de certo modo, também me pertence. Todo corpo é existencialmente compartilhamento. E aí se constitui a ética. Eticamente, meu corpo não pertence só a mim.

Daí que a vida de um embrião, por ser totalmente dependente do corpo de uma mulher, não pode ser totalmente empoderado pela decisão pessoal dela, sem que isso não seja um brutal problema ético. Este problema também é meu e seu.

Só posso ser quem sou, e mais ninguém. Como toda pessoa, posso, no entanto, vivenciar a mim mesmo como outro (o que acontece, por exemplo, no teatro).  Sei que nada sei de todo esse outro como si mesmo, mas que poderia vir a ser a mim mesmo.  Isso é uma vivência com a qual é possível a percepção da fraternidade.  Assim, posso eu vivenciar-me como mulher que sofre como nunca fui.  Mas, também como um embrião que já fui um dia.  Então, posso lembrar que um embrião já é uma vida que pode ser desumanizada até desanimada como estorvo, ônus.  Não-vida pela vontade de poder de uma única mulher, seu objeto de descarte. 

É fundamental o reconhecimento da autonomia pessoal para o Direito na decisão de quem toca o que no nosso corpo.  Pois alguém pode decidir uma invasão devastadora do outro no arbítrio de seus afetos com falhas de interpretação e questionáveis estados de ânimo.  Mas, nem por isso a decisão a respeito do aborto, por ser uma decisão de morte, se esgota na dimensão individual do exercício do livre arbítrio, pois afeta sobremaneira a comunidade no aparecimento e ocultação intersubjetivos dos valores à vida.  A expressão ubuntu quer dizer sou por quem nós somos.  Mas, a condição humana é originária das identidades construídas e reconstruídas - é uma vertigem imediata e impostergável entre o ubuntu e o verso de Píndaro genói oíos essí matón (Torna-te quem és).

Entre garantias individuais e uma moral comunitária, o Direito, para o aborto, não tem soluções naturais e neutras ante os alarmantes dados de sua prática, mesmo clandestina.   Qualquer que seja a solução jurídica dada para o aborto, se todas as mulheres são Jandira ou Elisângela, elas são essa diferença. 

Mas, antes de Jandira e Elisângela, homens, mulheres e transgêneros são também os esquecidos, os desconhecidos, sem gênero, sem classe, sem voz, sem nome, sem chance. Pois todos já fomos um dia Zé Maria-Ninguém. Sim, já vivemos uma igualdade absoluta no momento incerto em que vingamos e que sequer nossa mãe nos sabia. Ninguém deste mundo sabia de nós, olhava por nós, mas já existíamos igualmente. E eis um ensinamento possível dessa igualdade absolutamente real: estávamos todos inteiramente à mercê de outrem. Nos corpos de nossas mães, éramos os invisíveis, os intrusos, os estrangeiros, os confinados, os encarcerados, os sem-terra, os sem-teto, os moleques nos faróis, os refugiados da guerra e dos desastres ambientais, os ébrios pelos cantos, os anciões senis. 

Já no corpo de uma mulher, a liberdade é responsabilidade e sustentabilidade, compromisso com as gerações vindouras e respeito para com as passadas - para com aqueles que ainda não conquistaram sua voz na democracia e os que já a perderam.   O aborto não pode ser banalizado no Direito pelo Estado laico como uma prestação de serviço à disposição da freguesia, sem que nos tornemos uma sociedade mais estéril de sentidos para valores.

Mas, o que é isso, a fertilidade de sentidos para valores?


Ao se privilegiar o aborto como uma questão de saúde pública, se se solidariza nos tempos atuais com toda mulher e por isso se concilia seus direitos reprodutivos ao destino real de seus filhos impossibilitados. Já voltam à presença os filhos silenciosos de ΜΗΔΕΙΑ.   Medéia, há 2.500 anos atrás, abandonada por seu marido e desprezada como estrangeira, matou seus filhos e este gesto de desespero nunca deixou de se repetir nos palcos da vida.

Vale aqui um fragmento de Ser e Tempo:

"O ser para a possibilidade enquanto ser-para-morte, no entanto deve se relacionar para com a morte como possibilidade. Apreendemos, terminologicamente esse ser para a possibilidade como antecipação da possibilidade. Será que essa atitude não abriga em si uma aproximação do possível e, com ela, não emerge a sua realização? Essa aproximação, porém não tende a tornar disponível o real numa ocupação. É no aproximar-se da compreensão que aumenta a possibilidade do possível. Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-morte se acha, face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desentranhar essa possibilidade, tanto mais puramente a compreensão penetra na existência das possibilidades em meio às impossibilidades. Como possibilidade, a morte nada traz à presença como realização. A morte é a possibilidade na impossibilidade de toda relação com a existência. Na antecipação, a possibilidade será sempre maior, ou seja, se desentranha como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência. Em sua essência, essa possibilidade não oferece nenhum apoio para alguma expectativa e para se configurar um real possível e, assim, esquecer a possibilidade. Enquanto antecipação da possibilidade, o ser-para-morte é que possibilita essa possibilidade e que a libera como tal." 

Ser-para-morte é ser sem razão alguma para ultrapassá-la (uma possibilidade ainda impossível), em que se distingue o sentir e o sentido confundidos no esquecimento das possibilidades para ser real.


Outro dia, li o ser-para-morte se dando na matemática.  Infinitos são os raios de um círculo, mas é onde raio  algum alcança que começa e termina o giro de toda roda.  Na matemática, o ser-para-morte é o raio para o eixo, ou o eixo para o raio.  

No ser-para-morte, há um sentido de lógica originária, em que logos é pura forma (logos no sentido da demonstração matemática do big bang), e é pura matéria (logos no sentido de presença no caos).  O ser-para-morte como "antecipação" de possibilidade na morte, que é possível, mas nada traz por si à realização de uma possibilidade, é instauração do tempo como uma sucessão imutável de acontecimentos de um antes em direção ao depois e que é um instante irrepetível entre o já e o aí.   O ser-para-morte é tempo como acontecimento totalmente indefinível, mas existente, ou totalmente definível, mas inexistente entre o antes e o já e também entre o depois e o aí.  Como o círculo e a roda acontecem na matemática, o logos é o Big Bang e o Fiat lux.  Uma "grande síntese" não se dá para a razão, mas na sua (im)possibilidade no acontecimento, pois se dá na "ginga" de aparecimento e velamento, que só é contemplado no poético!  É o sentido da frase de Carneiro Leão: a verdade é a ginga da capoeira em que ela dá rasteira em si mesma.    É ou não uma bem humorada definição verdadeira da verdade?  

Pois bem, um humanista vê nos filhos de Medéia a alegoria do patriarcalismo e que, na História como história do esclarecimento humano, devem morrer. Mas isso vela um sentido da morte deles nos alvores da democracia. De Medéia, os filhos nasceram grandes e morreram grandes. A compreensão do sofrimento desta mulher, de toda mulher, pode ser grande na inversão impossível da sorte trágica de seus filhos possíveis. Aí, uma política grande.



foto 1 http://frentelegalizacaoaborto.wordpress.com/
foto 2 http://noticias.r7.com/blogs/marcos-pereira/2012/05/28/marcha-das-vadias/
foto 3 http://marinorbrito.blogspot.com.br/2012/05/na-marcha-das-vadia-lugar-de-mulher-e.html
foto 4 http://www.harisingh.com/UbuntuAge.htm