Um dia de mágico tive ao levar minha filha
de 12 anos ao teatro. Não um teatro
qualquer, mas à Casa da Europa para a encenação de Timon de Atenas, texto de
William Shakespeare com adaptação chancelada pelo Teatro Nacional de Londres,
traduzida por Barbara Heliodora, produção, direção e interpretação profissionais
que de melhor se pode realizar no Brasil.
Enfim, proporcionei um encantamento a quem teve seu primeiro contato com
um teatro espetacular em todos os sentidos.
Não que ela estivesse totalmente despreparada. Ela já fez curso de teatro na CAL e, claro,
assistiu boas encenações para o público infantil. Mesmo, a vinha este ano levando no Teatro
Ziembinsky à noite. Este preparo lhe permitiu
contemplar melhor o quilate da peça
diante de seus olhos, que para ela era eu quem lhe proporcionava. E os aplausos ao fim do espetáculo também eram
para mim. Para mim, num comentário
espontâneo dela (isto é, sem que eu lhe provocasse com um e aí, gostou?) durante as palmas:
Nossa, que legal! Se tivesse eu uma cartola, ali faria uma
mesura.
Mas, até agora, falei da encenação. E qual foi o truque deste mágico aqui? A adaptação traz a peça para uma cena
contemporânea, enfatizada pela montagem com visões das manifestações agora
lembradas como jornadas de junho. No
entreato, fiz-lhe esta pergunta: Por que
essa peça mostra tudo passando hoje, e não na época dos gregos antigos como diz
o texto de Shakespeare? Pronto, a cara
de surpresa dela era o que eu esperava e então tirei o coelho da cartola: É para mostrar o que Shakespeare quer
mostrar... o que aconteceu na época dos gregos, que acontecia na época em que
ele vivia e que também acontece hoje. E
sorvi o vinho dos mágicos, a iluminação em seu rosto diante do coelho nas
minhas mãos. Aí era os talentos da autoria, adaptação, tradução, direção, produção e interpretação que proporcionavam
naquela garota, diante de uma simples pergunta e sugestão da minha parte,
alguma coisa próxima de uma sessão de Gestalt-terapia. Seu rosto a acusou atravessada pelo contato
com a realidade na realização do real.
Timon facilitou que eu me fizesse
feiticeiro para ela. É um personagem diferente
de Otelo, Liar, Hamlet e Macbeth. Shakespeare
não está tanto interessado na personalidade do personagem como está na
personalidade do público. Demonstrando
seu domínio sobre o assunto, Barbara Heliodora relaciona o momento em que
Shakespeare concebeu Timon com as mudanças por ele vivenciadas no fim do
reinado de Elizabeth e os primeiros anos da regência de Jaime I. Timon denuncia que Shakespeare percebia junto
à crescente sofisticação intelectual da Corte um declínio dissimulado da
nobreza na aristocracia inglesa.
A certa altura, Apemantus sintetiza o
personagem que é Timon: antes, louco;
agora, tolo. Em dois atos, a peça propõe
uma mudança falsa. Timon opulento e
Timon miserável. Falsa, porque nada muda
em Timon. A autoestima alimentada com
elogios e atenções que recebe o inebria a ponto de acreditá-las provas da graça
a que se julga merecedor por pródigo em favores e agrados a quem lhe envolve
com sorrisos e solicitações. O choque de
consciência da fragilidade dos seus laços atados com poder e riqueza não o torna mais sábio, porém ressentido. O poder e a riqueza não são resultados de manipulações e cálculos, mas são
um direito seu pela dignidade de seu porte.
As manipulações e os cálculos então são tomados por usurpação do que é
seu por direito humano. Então toma a rebeldia
política e o antagônico social por
mudanças radicais. O ressentimento não
lhe permite antever que está dando a mesma rasteira em si mesmo. Novamente traído, resta-lhe de seu túmulo um
grito impotente:
- Canalhas!
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