terça-feira, 14 de outubro de 2014

O Macaco tá certo!

O título é uma reminiscência do bordão humorístico televisivo na tradição do Zorra Total.  O bordão caiu no gosto popular por conta do sucesso alcançado nos anos 70 pela 1° trilogia Planeta dos Macacos.  

Era mais uma narrativa distópica pós apocalíptica atômica que foi comum nos telões daqueles tempos.  Estrelado significativamente pelo ator-ícone Charles Heston, a trilogia convidava à catarse pela inversão do destino de um WASP (branco, anglo-saxão e protestante) submetido à opressão extrema de uma metáforica República de Bananas.


  

Esse sentido político de terceiro mundo foi enfatizado ainda mais no seriado subproduto para a TV, que introduziu o inesquecível Urko.  Ele era um general gorila obsecado pelo estrangeiro, cuja presença convocava ao pensamento (este o argumento de tensão na trilogia cinematográfica exposto no antagonismo entre o personagem de Heston e Zaius, um macaco teocrata).  Tanto Urko como Zaius intuíam uma subversão mais que possível e já insinuada no fascínio despertado num casal de jovens chipanzés intelectuais.  Enfim, uma narrativa bem anos 70.

Já entrou em cartaz o segundo filme da nova trilogia.  O primeiro filme, A Origem, reinventou o último da trilogia original.  Embora ainda focado na relação ciência e consciência, os argumentos são bem diferentes.   Em grande medida, A Origem é um drama psicológico na descoberta de si mesmo por um macaco.  

O roteiro do filme até que ia bem: “não confie em chimpanzés”.  A fala da mocinha, uma zoóloga, indicava a questão fundamental que prometia ser explorada.  Um chimpanzé transgênico apresentava uma inteligência que superava até mesmo a dos humanos.  Inteligência aí revelada por tomada de decisões estratégicas, táticas e operacionais logicamente adequadas a cada situação que se lhe apresentavam.  Mas, humanidade transcende a inteligência.  Isso foi insinuado pela incapacidade desse chimpanzé em compreender interdições éticas.  Isso aconteceu ao lidar com um vizinho brigão: foi incapaz de compreender porque fora expulso do paraíso. Ao não conter seu próprio impulso violento, morder o vizinho e ser por isso retirado de seu habitat.

Mas, o enredo infelizmente seguiu pelo terreno pantanoso do politicamente correto.   O foco passou a ser a ganância da indústria farmacêutica e a crueldade com os animais.  Aí, o roteiro comete uma idiotice.  Numa contradição evidente com seu argumento inicial, o tal macaco consegue  estabelecer relações éticas com outros macacos do abrigo para animais em que é posto. É como se, de repente, a ética passasse a ser uma manifestação natural acessada e dominada pelo intelecto, tal como é a lei da gravidade.  O filme se torna um pastiche, uma comédia involuntária.  Os macacos se descobrem encarcerados e oprimidos. E estabelecem “naturalmente” um código moral típico entre presidiários. E o chimpanzé que ficou inteligente com o tal vírus furta e espalha mais dele. É uma paródia de preso político que conscientiza com ideologia censurada outros presos, antes “comuns”.  A consciência coletiva evolui na organização do PCC: Primatas no Comando da Capital.  Subversão como patologia é isso aí.

Então, acontece a batalha. A figuração é: macacos oprimidos contra as forças repressoras a serviço do cartel da indústria farmacêutica.  A batalha é o salve geral.  A dublagem perdeu uma oportunidade de ouro na cena final.  Após a batalha, o mocinho, o cientista fofo, que, no início do filme, cuidava carinhosamente do macaquinho danado, o convida para voltar para casa.  Porém, o chimpanzé da pá virada dá uma olhada para o bando de símios marginalizados que o acompanham na “liberdade” da sua “Sierra Maestra” e finalmente articula o texto de ser "quem" se sabe macaco: “Já estou em casa.”  Melhor acabamento o filme teria se o texto falado pela dublagem fosse outro:  “É nóis, tá ligado?”

O segundo filme da trilogia atual  se chama O confronto.  Quanto à proposta argumentativa que se perdeu no primeiro filme... perdida está.  Não há macacos no segundo filme.  Há metáforas humanas. 

O filme volta à fábula explorada pela primeira trilogia, com direito ao contexto pós apocalíptico. A causa do apocalipse não é mais atômica, mas biomédica, recurso comum nos filmes de zumbis.  Aliás, este filme guarda ainda uma afinidade com bons filmes de zumbis pela abordagem mais antropológica.  E como na inaugural Noite dos Mortos Vivos, o argumento formula uma questão racial.  O corpo é apresentado como que numa casa de espelhos em que as identidades vão sendo criadas e recriadas historicamente pelos incontáveis reflexos da alteridade diante de si. A descoberta dos preconceitos se dá entre a criação e a recriação dessas identidades.  


A  esperteza do roteiro para apresentar o argumento aparece num deslocamento do antagonismo entre macacos e humanos para o interior da comunidade símia, que culmina numa disputa política pelo poder.  Bem ao estilo da fábula de George Orwell proposta na Revolução dos Bichos.  Como na fazenda orwelliana, a condição humana é desvelada no abismo entre o que identifica e o quem é identificado.  O quem só se mostra nas infinitas possibilidades entre o que é feito com alguém e o que este alguém faz com o que é feito dele.  Deste modo, o confronto se que dá título ao filme está revelado na radicação da violência pessoal. Ela se articula a partir do interior da comunidade de primatas para um conflito generalizado de todos contra todos, simbolizado então nas batalhas entre homens e macacos.

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