quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Pensando & Conhecendo XIV


Em 2013, Richard Thaler foi laureado com o prêmio Nobel por sua contribuição ao estudo da economia comportamental, passando a ombrear com Daniel Kahneman, premiado em 2002 por sua abordagem pioneira da Economia com foco no comportamento dos agentes econômicos .  Este campo de estudos é transdisciplinar à psicologia e, entre outras coisas, estuda como a incerteza influencia decisões dos agentes econômicos.  O reconhecimento da racionalidade limitada foi uma contribuição da economia comportamental para os custos de transação.  Uma das implicações do conceito é a inversão de tendência pressuposta desde a economia clássica.  Adam Smith e seus colegas liberais pressupunham que a variância do mercado tendia necessariamente ao equilíbrio.  Isso, porque idealizaram o agente econômico como racional (o que é próprio do imaginário dos Secs. XVIII e XIX), e não dotado de psiquê com padrões inconscientes (sec. XX).  Ou seja, a volatilidade do mercado não tende necessariamente ao retorno do equilíbrio, mas também à maior volatilidade, conquanto permaneça da escola clássica o ideal de que seja não só possível como necessário que a economia volte à normalidade.  Que matematicamente corresponde a uma curva em forma de sino (curva de Gauss).   A confluência da psicologia e da lógica na economia indica o desafio permanente dos economistas: encontrar “novos normais”.  Em termos de gestão de riscos, permanecemos num meio termo contingente entre duas regressões paradoxais, ambas descritas por matemáticos do sec. XVII: a de Blaise Pascal (a regressão ao infinito) e a de Jakob Bernoulli (regressão à média). 

 A racionalidade limitada dos agentes econômicos (cuja ausência de invariância lógica em suas decisões frustra a idealizada normalidade racional da Economia) responde em grande medida para o aparecimento do Direito Regulatório e pela expansão tanto do Direito Administrativo Sancionador como do Direito Penal Econômico.  Para isso, foi preciso encontrar conceitos centrais e comuns tanto na linguagem da Economia e como do Direito para argumentações sistematicamente coerentes.  Estes conceitos foram função e risco.  A limitação da racionalidade dos agentes econômicos encontra seu fundo na incerteza.  E esta incerteza se manifesta empiricamente no aparecimento de externalidades que alterem abruptamente a percepção do risco pelos agentes.  A função do Direito Regulatório é modular estes aparecimentos, normatizando as novidades para que se tornem compatíveis com a normalidade.  Tanto melhor que as normas se antecipem e sejam preventivas.  De certo modo, o Direito Administrativo Sancionador condiciona a liberdade dos agentes econômicos para que não importe num grau insuportável de ambiguidade.  Isso pressupõe que os agentes, embora limitados, ainda sejam racionais.  A Economia Comportamental indica que, em média, os agentes econômicos tendem a uma rejeição maior a perdas (pela sanção) do que a um apetite por ganhos (pela infração).  Mas, como Gottfried Leibniz (outro matemático do Sec. XVII) ressalvou ao examinar as demonstrações matemáticas de Bernoulli, “nem sempre”:

A natureza estabeleceu padrões que dão origem à recorrência dos acontecimentos, mas nem sempre.  Doenças novas assolam a raça humana; mesmo que se faça muitos experimentos com cadáveres, isso não impõe um limite à natureza dos eventos que impediria a sua variação futura.

.Este “nem sempre” e sua ilustração patológica são significativos para compreender a função suplementar do Direito Penal Econômico ao Direito Administrativo Sancionador em termos corretivos e preventivos.   Diante das evidências empíricas reunidas pelos estudos de economia comportamental, os agentes econômicos reconheceram em si mesmos uma fonte de incertezas que demandam medidas públicas protetivas ao positivarem segurança como bem jurídico da ordem econômica.  No limite, admitem ser sua ação potencialmente criminogênica por disfunção extrema neste âmbito constitutivo da sociedade de livre mercado.    

 Não por acaso, Ronald Coase foi agraciado com o premio Nobel em 1991.  A sua contribuição para o desenvolvimento da ciência econômica veio com seus modelos matemáticos que logravam relacionar racionalidade limitada dos agentes, a assimetria de informação, a incerteza, a conduta oportunista, especificidade de ativos e o exercício de direitos de propriedade.  Estes modelos inovadores foram chamados de custos de transação e lograram vincular matematicamente comportamento e institucionalidade na Economia.  As relações quantitativas entre Direito e Economia agora poderiam ser observadas a partir de metodologia própria. 

 Seguindo uma tendência desde 1994 (quando John Nash e Reinnhard Selten foram premiados), o estudo de comportamentos ótimos, quando o custo e benefício de cada opção não forem fixos (porque são intrinsecamente dependentes de decisões simultâneas tomadas por agentes econômicos não cooperativos) rendeu-se mais um prêmio Nobel em Economia. Desta vez (2020), foram laureados Paul Milgrom e Robert Wilson pela aplicação da teoria dos jogos na definição de regras mais adequadas para ofertas públicas (leilões). O reconhecimento dado remonta o mesmo ano de 1994, quando as contribuições teóricas de Milgrom e Wilson foram determinantes para o modelo de concorrência pública norte-americana para exploração da telefonia móvel. Este modelo é conhecido como leilão ascendente simultâneo. Desde então, estes economistas têm formatado vários modelos de leilão conforme objetivos e variáveis situacionais. Em geral, os modelos desenvolvidos buscam facilitar a participação eficiente de interessados nos leilões, enquanto dificultam que atuem coordenadamente. Os modelos de Milgrom e Wilson não se prestaram unicamente ao desenvolvimento técnico da regulação em mercados de monopólio natural (que normalmente serão transacionadas como concessões públicas), mas também as ofertas públicas de ações por empresas que abrem seu capital ou ampliam essa abertura considerando interesses diferentes de stakeholders diversos

 A premiação conferida a esses economistas é um reconhecimento indireto dos genuínos interesses jurídicos transindividuais a serem contemplados nos desenhos de oferta pública, pois ilustra a importância da perícia na criação das suas regras sem as quais resultados não serão tão satisfatórios como possíveis. De outro lado, este conhecimento malversado possibilita manipulações veladas para favorecer agentes não cooperativos em detrimento desses interesses legítimos. Entre a perícia na otimização de resultados econômicos eficientes e a manipulação sutil desses resultados há rico material criminológico para estudos de aplicação e adaptação do Direito Penal Econômico conjugado ao Direito Administrativo Sancionador. 



Pensando & Conhecendo XIII

 


Sabemos que a probabilística foi iniciada na troca de correspondências entre Blaise Pascal e Pierre de Fermat em meados do sec. XVII.  Eles tentavam solucionar o desafio de Paccioli (professor de Leonardo da Vinci em matemática):  “A e B jogam dados honestamente.  Eles combinaram que quem vencesse 6 partidas primeiro levaria todo o dinheiro apostado.  Mas, o jogo teve de terminar, quando A só  havia vencido 5 rodadas e B, 3.  Como o dinheiro deve ser dividido?”.  Para Pascal e Fermat, não se tratava só de um enigma aritmético.  Mas, também uma questão moral.  Pascal foi teólogo e Fermat era advogado.  Concordavam que a volta ao status quo ante (devolver as apostas) não era o mais correto, pois seria ignorar uma combinação proposta entre eles.  Respeitar a combinação era a motivação moral e aí lançaram as bases da análise combinatória, com a qual estabeleceram uma regra racional para justa distribuição derivada entre o combinado e o atualizado.  Demoraria ainda bem mais de um século para que essa noção tivesse aplicação pública na ordem econômica, mas Fermat e Pascal intuíram, juntos, algo essencial na gestão do risco:  a sua ambiguidade entre cálculo e a motivação. O cálculo esclarece a regra, mas é motivação o que a justifica.   

A gestão do risco nasceu de um problema hermenêutico.  Sendo Direito e Teologia disciplinas essencialmente dogmáticas, é hermenêutica a base epistemológica para a abordagem de ambos.  O diálogo entre ambas as disciplinas se mostrou fértil.  Mas, as guerras religiosas e as revoluções sociais ensejaram o imaginário atual de que a Teologia e o Direito sejam campos totalmente separados pelo Estado laico.  Em que pese a história do risco testemunhar a fertilidade intelectual do diálogo entre ambas. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O que um padre do deserto teria a dizer sobre compliance? (2)


“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno histórico com o qual se pode estabelecer analogia ao tempo hodierno pelas sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural em tensão com as de estabilidade, de continuidade e de coesão social.  Outrossim, deram eles expressividade a essas sensações convulsivas através de um estilo: a apotegmata (breves narrativas em que lhes dá sentido um comentário atribuído a um padre do deserto).

A morte, claro, é um tema recorrente nos apotegmas.  Ela é recorrente também hoje, mas sintomaticamente oblíqua através dos predicados saudável (perspectiva individual) e sustentável (perspectiva social).   Digo oblíqua, porque hoje abordamos normalmente a morte como algo a ser prevenido e corrigido. Estamos “em luta contra” a morte; médicos “perdem” seus pacientes assim.  Então, como é evidente para unidades complexas de carbono e hidrogenação catalítica, formamos um exército sitiado pela morte. E que já sabe:  todos nós perderemos a vida nesta batalha, mas mesmo assim devemos resistir.    Pelo quê?!  A felicidade ainda a ser buscada, mas que, neste estado de sítio, nos escapa. 

Desprovidos de pensamento crítico, não há enfrentamento do tema: os apotegmas dissociam da morbidez sua alusão direta à morte.  O que isso pode dizer sobre o compliance?  A morbidez como sintoma estilístico do enfrentamento temático contemporâneo tende a retratar a morte como um algo voraz, disfuncional e implacável.  A morte assim retratada é liberdade despersonificada.  Trata-se de uma projeção da performance vazia de significado.    Como resposta, a vida humana autonômica, típica concepção humanista, corresponde a uma liberdade performática contida pela normatividade. 

As sociedades democráticas de mercado se lançaram à aceleração das inovações tecnológicas.  Numa abordagem patológica, um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é rebento. E com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a resiliência:  a normatividade inflacionária de marcos regulatórios da qual o compliance é colateral.  Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa liberdade.  Eis o paradoxo da liberdade coercitiva em expansão.

Não se trata de negar o caráter incontornável das práticas de compliance na ordem econômica.  Mas, tampouco é incontornável a necessidade de uma compreensão patológica de qualquer funcionalidade.  Por exemplo, a patologia numa pandemia só se completa com a análise funcional dos processos bioquímicos do seu vírus patogênico. 

Quero então apontar isso: o excesso de funcionalidades normativas que tomam forma de violências neuronais, dos quais o transtorno do burnout é um sintoma, constitui um limite hipotético para as políticas de compliance.

A Igreja Católica Apostólica Romana em contexto do debate público em espaços democráticos



Eu compreendo a lógica entre diversificação proliferante e escalada do efêmero nos espaços democráticos. É uma questão de concorrência por espaços repercussivos de fala para uma pauta de transição cultural. Abre-se a seguinte perspectiva: ou o Papa incorpora a expressão sororidade junto à fraternidade, ou o seu magistério é desviado da sua finalidade contemplativa, escolástica por ter o seu texto derivado para mais um falatório interminável próprio dos espaços democráticos contemporâneos.

A pergunta é esta: À Igreja pode ser aplicada a mesma estratégia que é bem sucedida, quando se trata da indústria de entretenimento? Não por alguém que, de boa fé, se diga fiel da Santa Igreja, ainda que, por convicção políitca, abraçe a bandeira da sororidade.

A questão centra-se na expressão Apostólica que define a Igreja. Entre outras coisas, isso significa que predomina nela o caráter episcopal em relação ao congregacional. Trocando em miúdo, a Igreja nunca foi, não é e nem será um espaço de saturação democrática. Se isso for insuportável para alguém, ainda que seja cristã, há derivações predominantemente congregacionais no cristianismo. Paciência.


Ser católico pressupõe admitir que o mal seja inafastável da história. E que isso tenha uma profunda implicação pessoal: a própria humilhação. Aceitar que a Igreja não esteja inteira sob medida de minhas medidas de causa e justiça é um exercício de humildade. E isso tem uma implicação prática positivada em cânon: mesmo que discorde do magistério eclesiástico em alguma alguma questão opinável, especialmente se se tratar do Papa, eu, como fiel, devo guardar o silêncio obsequioso. Ao invés de me lançar em falatório, devo me recolher em oração e petitório para que o Papa ouça o Espírito Santo. Como diz o Evangelho, que "seja feita a Sua vontade, e não a minha".

Enfim, não estou negando a importância de elevar a condição feminina em sociedade. Mas, admitindo os limites próprios da condição humana, inclusive no que se refira ao debate democrático.



E, não. O Papa não está propondo mudanças de magistério eclesiástico sobre a sexualidade e família. Francisco apresenta uma mudança de enfoque. Parece surpreendente. Não tanto, se lembramos que se trate do primeiro Papa jesuíta da história. Jesuítas são preparados para se lançarem missionários em qualquer cultura; em qualquer linguagem e aí encontrarem modos adequados de comunicar o querigma (anunciamos a morte do Deus de Abraão, Isaac e Jacó e proclamamos a Sua ressurreição; vem Senhor Jesus!). A união conjugal civil é fenômeno cultural. Já para o fiel, o casamento consagrado entre homem e mulher transcende a sexualidade, a generalidade, a cultura, a humanidade.
O sacramento não é só antropológico; é sobretudo teológico. Agora, qual o sentido fenomenológico do matrimônio? O acolhimento hospitalar inquebrantável no cumprimento de uma promessa feita por um homem face a vulnerabilidade de uma mulher em sua condição gestacional de vida e, portanto, de esperança redentora: "a minha vida pela sua e as dos frutos de seu ventre". Pense num filme de apocalipse zumbi e compreenderá o sentido escatológico desta promessa e ela só terá significação transcendente, quando feita entre um homem e uma mulher, ou pelo menos, referenciada nessa relação binária.
Agora, pense na moral (se preferir, na justiça dos homens): o que mais vale em termos de acolhimento hospitalar? (1) o vínculo histórico entre duas pessoas, não importa aqui o gênero, em que uma cuidou da outra, quando esteve aflita, triste ou doente; mantiveram pacificamente uma casa em comunidade; cooperaram em tarefas cotidianas todo dia, muitos dias; e compartilharam o pão (e as contas de supermercado)? (2) o vínculo sanguíneo/biológico entre pessoas que há muito tempo não se falam, não se ajudam, não se interessam umas pelas outras? Nestas opções, na definição de direitos sucessórios, a quem caberia a herança de um falecido? A ênfase moral na transcendência do sacramento justificaria a transmissão patrimonial herdada conforme a hipótese 2? Hoje em dia, resta claro que não. O apontamento em direção à hipótese 1 em nada contraria, por exemplo, a encíclica Deus Caritas Est, escrita pelo Papa Bento XVI e na qual este nosso teólogo maior da virada de milênio ensinou a gradação moral entre o amor que seja Eros e o amor que seja Ágape. Para o Ágape, aponta coerentemente Francisco no contexto contemporâneo da cidadania.