sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O Advento


Não quero entrar na especulação de como pôde Cristo ter se relacionado com o Diabo enquanto esteve no deserto, ou se ele ainda se encontrou com alguém mais por ali, Deus sabe o que andaram fazendo.  Prefiro encarar outra especulação zombeteira:  a credulidade de José, quanto ao fato de ter a virginal Maria engravidado.  Piada pronta.  Incluí-la numa sátira é nota zero em criatividade. 

A virgindade de Maria serve fácil como uma ilustração de como o credo cristão é obscuro, ficção ou irracional.  Nos dias de hoje, talvez seja mais fácil acreditar num fundo de verdade na sátira com a piada pronta, do que no fundo do dogma. 

Insisto neste fundo mais difícil – a verdade no credo.  O Filho nasceu de uma Virgem.  Disso, uma inferência:  na família, o Filho é de sangue desconhecido.     O dogma postula que Maria seja a nova Eva.  Entre Eva e Maria, a condição tão universal como abissal que, numa mulher, é reveladora.  Entre Eva e Maria cabe a humanidade inteira.

Cabe uma jovem virgem de uma terra conflagrada na qual esteja acontecendo uma limpeza étnica e teve a infelicidade extrema de ser capturada viva por uma milícia da etnia rival.  Ela foi submetida por dias, semanas a todo tipo de sevícias por todos daquela tropa brutal e brutalizada. E, por alguma intervenção providencial, conseguiu sobreviver ao seu martírio.  E então... se descobriu grávida!  E se decidiu por esse embrião; apesar de tudo, ela quis conservá-lo em seu ventre!  E sofreu mais, as dores do parto.  E amamentou essa criança.  Cuidou dela como filho que é; amou-a como filho que é.  Um amor mais que gratuito.  Um amor sublime, porque contra toda chance.

 Imagina o dia em que este filho descobre a verdade sobre a sua paternidade desconhecida.  Mais, imagina  sua mãe no momento em que fica sabendo que o filho sabe:  Meu Deus!  Meu filho!  Virgem Santa, acode aqui!  Para esta mulher, seu filho vivifica a verdade que está no fundo do dogma da virgindade de Maria:  doravante, todas as gerações lhe dirão bendita. 

Você pode me perguntar onde está Deus, quando alguém sofre tanto assim.  Bem, Jó também se fazia esta pergunta durante todo o seu tormento.  E a resposta é:  estava ali silente, sofrendo a dor de Seu Filho amado.  Cada vez que alguém sofre assim,  Deus ergue-se ao alto.  Mas, não em majestade. Ergue-se no madeiro.  Está na cruz outra vez; toda vez.    E Maria ainda será lembrada como bem aventurada.




Feliz Natal!

sábado, 28 de setembro de 2019

A PÁ ABSURDA



Não se descobre o absurdo 
sem ser tentado a escrever 
algum manual de felicidade.
Albert Camus 
 Paris ocupada, 1942

Desde há meses, tenho um projeto para a efeméride dos meus 50 anos.  Carvear a pista que tem para isso na ilha da Gigóia.  Não é particularmente perigosa, tampouco vistosa.  O lance é o seu traçado. Exige agilidade e pressupõe condicionamento físico e prática invejáveis para alguém com metade de um século nas costas.  Estou quase lá... bem a tempo.  Fiquei até tentado a produzir um vídeo protagonizando nas ondas de concreto do Spot Lab, como também as das águas na Macumba.  Registrar meus 50 com essa voracidade performática que testemunhamos pandêmica nas redes sociais e coisas afins. 

Mas, não é sobre este projeto que quero escrever. 

Frequento uma costela de cobra perto de casa.   Uma pista de skate muito gostosa para gente coroa como eu (foi lá, aliás, que fiquei sabendo da outra pista na Gigóia).  Vou para o Znake bem cedinho praticar. Todo dia. Menos, quando chove.  Nas manhãs assim, me contentava em correr.  Com o tempo, me acostumei a correr em ladeira.  É ótimo para o condicionamento físico.  Assim, melhorei meu desempenho nas manobras que exigem muito dos tornozelos.  Fora isso, em dias de chuva, bonito ver o casario, arboredo, muros e telhados molhados.  Tocar o céu cinza e olhar a cidade tom sobre tom.  Aí, descobri uma trilha que dá numa nascente na mata que se estende até o Sumaré.  Comecei a limpar o lixo que encontrava na trilha e na nascente.  É mais agradável ir lá, quando está limpa.  Crianças da Coreia frequentam.  Quando sujavam, eu limpava.  Valia a pena pelas vezes que voltava lá e encontrava o lugar sem polímeros sintéticos.  Sujavam quase todo final de semana. Ás vezes, muito.  Era meio irritante. Mas, tudo bem; não me importava muito com a irritação.  Cruzei com esses garotos só uma vez.  Não reclamei nem conscientizei de nada.  Não me deu vontade disso.  Mas, pelo visto, com o tempo, não sei por que, pararam de deitar lixo lá. Bem, uma vez, encontrei um latão vazio de tinta por lá.  Estava com o fundo furado.  Lembrei-me do conceito nudje.  Então deixei bem a vista como se fosse uma cesta de lixo.  Com um requinte, sempre deixo um pouco de lixo dentro.  Só para comunicar a sugestão.    Não sei se o latão tem parte na mudança de padrão.  Claro, de vez em quando, tem lixo espalhado.  Mas, muito menos do que no começo.   

Como fiquei sem mais ter o que fazer lá, pensava que seria um bom exercício físico levantar um dique de pedra. Passei meses movendo pedras em manhãs de chuva.  De fato, é um ótimo exercício.      Verão passado, num temporal, a cabeça d´água derrubou o dique.  E eu a refiz.  Só que um pouco diferente.  Olhando como as pedras foram arrastadas, imaginei um jeito de fazer o dique que resistisse melhor a próxima enxurrada.  Ainda não caiu um temporal para pressionar o novo dique.  Estou aguardando pelo teste.  Enquanto isso, o espelho d´água começou a me preocupar com mosquitos.  Então, despido o leito das pedras que serviram no dique, comprei uma pá de trincheira e comecei a escavar o leito; jogava areia nos cantos onde havia remansos.  Faz mais de ano que vou lá.  Corto a mata para manter a trilha aberta e até escavei degraus fantasiando que minha mãe septuagenária possa um dia ir também.  Realmente, a trilha está uma beleza.  Tiro sempre as folhagens e galhos caídos do fundo da piscina, deixando seu chão macio ao pisar.  A piscina virou um viveiro de girinos e peixinhos.  Agora, apareceram lampreias.  É uma pequena delícia ver os peixes nadando na água transparente com o fundo claro da areia. 


Às vezes, penso que poderia estar gastando toda essa energia e engenhosidade num lote de terra comprada. A grande maioria das pessoas da minha idade só consideraria razoável empreender como estou fazendo somente no caso de dispor do lugar como patrimônio.  Ou talvez como tática de conscientização ambiental...  Eu me pergunto por que afinal de contas eu faço o que faço.  Ora, cavucar o leito para mantê-lo branquinho é um trabalho ininterrupto.  E tudo que tenho como retorno são alguns minutos nos quais eu fico mirando encantado um canto do mundo que ficou bonito.  Mas, não posso retê-lo.  Qualquer dia, aquele lugar vai atrair animais perigosos, ou vai acontecer um deslizamento de encosta, ou traficantes de comunidades próximas irão me ameaçar... enfim, há muitos riscos e, por conta de algum, deixarei de ir lá de uma hora para outra.  Enquanto alguma coisa assim não acontece, quando acordo e vejo que a rua está molhada, não penso que isso seja frustrante, porque não vou andar de skate.  Eu simplesmente mal posso esperar para sair de bike rumo à mata e então passar uns bons três quartos de hora, a minha pá na mão para cavar com metade do corpo metido em água fria num lugar que nunca me pertencerá. Tudo que tenho ali é a pá. Essa pá é o objeto que hoje em dia mais me dá alegria.   

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Becho Elementos de Direito Cooperativo 2a ed


MINHA APRESENTAÇÃO PARA A 2a. EDIÇÃO

1.
A promulgação da Lei 13.806/2019 trouxe mais pertinência para a reedição dos Elementos de Direito Cooperativo, uma vez que ela toca num ponto nevrálgico entre  identidades e diferenças da sociedade cooperativa para o Direito.  Essa Lei  introduz no regime societário brasileiro um instituto que, até então, no Direito Privado, era coisa só para associações - a substituição processual na defesa de direitos transindividuais:
Art. 88-A.     A cooperativa poderá ser dotada de legitimidade extraordinária autônoma concorrente para agir como substituta processual em defesa dos direitos coletivos de seus associados quando a causa de pedir versar sobre atos de interesse direto dos associados que tenham relação com as operações de mercado da cooperativa, desde que isso seja previsto em seu estatuto e haja, de forma expressa, autorização manifestada individualmente pelo associado ou por meio de assembleia geral que delibere sobre a propositura da medida judicial.

Com uma pitada de ironia, poder-se-á anunciar que há um sentido atual para a extravagância na Lei 5.764/71.  Isso porque, diante da escala econômica e sofisticação operacional de muitas cooperativas pelo mundo, parece natural e até necessário pensá-las como uma iniciativa empresarial.  Isso assim é, aliás, positivado amiúde, o que pode ser aferido num esforço investigatório na seara do Direito Comparado, mesmo que só num voo de passarinho.  O conceito de empresa é plástico até a sua identificação com qualquer sujeito ou centro autônomo de imputação jurídica, seja privado ou público, que desenvolva atividade operacional relevante do ponto de vista econômico. 

Se formos categóricos em afirmar que, em toda cooperativa, aparece uma empresa, a tramitação do processo legislativo que culminou na Lei 13.806/2019 irá manifestar a tensão que qualquer alusão às cooperativas em geral carregará no esforço de delineamento da sua especificidade. 

O projeto de lei teve sua iniciativa no Senado Federal (PL 93/2013).  O Sen. Antônio Carlos Valadares a justificou como suprimento à carência acusada pelo STJ no REsp 901.782, assim ementada:
O artigo 4º, X, da Lei 5.764/71 dispõe que as cooperativas são sociedades de pessoas, tendo por característica a prestação de assistência aos associados. Nessa linha, é possível que a cooperativa propicie a prestação de assistência jurídica aos seus cooperados, providência que em nada extrapola os objetivos das sociedades cooperativas. Contudo, à míngua de expressa previsão legal, a cooperativa não pode litigar em juízo, em nome próprio, defendendo alegado direito dos cooperativados. O artigo 83 da Lei 5.764/71, mesmo em interpretação sistemática com os demais dispositivos do referido diploma legal, não permite inferir que a Lei tenha previsto a substituição processual para esse fim.

A menção ao art. 83 precisa a intenção com que a pretendida legitimidade postulatória em juízo, no Congresso Nacional, focou o cerne de atividades operacionais no agronegócio.  Disso não fez segredo o Dep. Otávio Leite no seu parecer proferido na qualidade de relator nomeado pela comissão de desenvolvimento econômico da Câmara, quando o projeto ali tramitou sob o registro 3748/2015.  Ele conta que o caso a dar ensejo ao projeto de lei dizia respeito ao litígio entre rizicultores e a CONAB, e tinha por objetos contratos de comercialização sem a interveniência da cooperativa de São Lourenço do Sul.  Muito embora nela repercutisse os efeitos contratuais, já que o arroz era estocado pela cooperativa na forma do citado art. 83.  Portanto, o contrato, ainda que assinado pelos cooperados diretamente com a CONAB, dizia respeito a operações nas quais havia decorrências na prática habitual de atos cooperativos.  Segundo o Deputado:
 O caso relatado merece a nossa atenção, pois pragmaticamente haveria todo o sentido a cooperativa proteger os interesses de seus cooperados na questão trazida à luz. Por uma falta de previsão legal, embaraça-se a atividade da cooperativa na defesa do interesse de seus cooperados. Tantos outros casos parecidos certamente ocorrem no mundo jurídico envolvendo operações de cooperados que, em conjunto, têm seus direitos desrespeitados ou interesses contrariados. Reconhecendo essa possibilidade e dando vida ao parágrafo segundo do art. 174 da Constituição, segundo o qual a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo, este projeto de lei é digno de nosso apoio.

O Parlamento recorreu ao signo das associações em discurso no qual resta retraída a empresa como categoria própria para o Direito Cooperativo, ainda que esteja o tempo todo interessado pragmaticamente em favorecer o agronegócio pela via das cooperativas.  Aliás, a Senadora Gleisi Hoffmann se justificou em seu voto condutor na Comissão de Constituição de Justiça:
A tutela coletiva dos direitos dos cooperativados afigura-se completamente em sintonia com o princípio do acesso à Justiça, por facilitar a defesa de direitos de pessoas que de outra forma não teriam como ingressar com ação judicial, ou ainda, por exemplo, proporcionando escala suficiente para a defesa de direitos que, individualmente considerados, não viabilizariam uma ação judicial devido a pouca expressão econômica.

Ora, uma alusão explícita à hipossuficiência na ordem econômica destoa no imaginário com a categórica presença empresarial no agronegócio.  Então, no Parlamento, diante da situação posta pelo precedente do STJ, cooperados não estão representados como sócios de uma empresa do agronegócio.  São produtores rurais associados em cooperativa.  Aí, entre ser e não ser categórico, há uma lógica não linear:  A=A ● B=B ® A≠B não dá conta do real.  O cooperado, assim sendo, é e também não é, naquilo que dele se alude por  empresa na cooperativa como objeto do conhecimento. 

E por que digo isso? 

Na etimologia, categoria significa: pela interrogação, caminho de cima abaixo.  Na filosofia moderna, aquilo que, em toda resposta, perfaz (organiza) no ente ele mesmo num objeto conhecido: (re)presentação como reflexo transcendental de si no sujeito que o entende.  

Categoria é, em Kant, elemento de ordenação constitutiva, isto é, um apriori transcendental de todo conhecimento; a categorização é intrínseca à razão pura[1]  Só que categoria responde insistentemente por uma decadência[2] moderna: a certeza.  Queremos transformar, superar, progredir, mas paradoxalmente queremos também que haja alguma permanência.  Este é o fascínio da certeza.  Toda cooperativa certamente é uma empresa?  

Temos aqui uma questão elementar e ainda atual para o Direito Cooperativo. 

É certo que a categoria em Kant responde criticamente à metafísica num deslizamento do pensar para além dela.  Mas, dela, permanece decadente o que se alude com o radical etimológico katá.   Pois é sabido que a metafísica imediatamente anterior a Kant deriva de um magistério afetado pela catafasia:  o conhecimento constitutivo do ser pela repetição temporal de manifestações que se lhe são atribuídas.  Em sua degeneração, a catafasia é um fenômeno da linguagem a fazer com que certamente se repita muitas vezes uma palavra ou frase.  No limite, uma patologia que trai o próprio sentido de certeza.

De certo modo, tomamos isso por natureza, porque esse modo catafático de certificação do real naquilo que se manifesta do ser em cada ente remonta à monumental obra de organização do conhecimento por Aristóteles.  Tão monumental que o existente parece se confundir com o próprio conhecimento: organizar o pensamento como reflexão necessária corresponderia a constituir todo ente no mundo real, como tal.

Bem, mas não é bem assim.  Ao atentarmos à patrística, avultará na margem do devir, desde a teologia catafática até o aparecimento do humanismo moderno, um magistério apofático:  todo conceito já carrega, em si, o afastamento deletério entre o conhecer e o ser. É.  Algo do que se diga pós-moderno resgata algo da vetusta patrística.  E não há nada mais elementar do que se apresente por aí. 

Há vacuidade na falação deitada aqui?  Claro que há!  Mas, é dessa vacuidade que se constitui a universalidade nos personagens de Dostoiévski.  Na cooperativa, enquanto certamente elas forem empresas, somente no seu subsolo essa universalidade se fará presente.  Porém, nas sociedades anônimas, os homens do subterrâneo até podem ser afastados pelo darwinismo concorrencial.  Dada a democracia como valor vital para a gestão de uma cooperativa, esses homens permanecem nela aumentando o seu custo de transação. Cooperativas são empresas tendentes à ineficiência competitiva, enquanto eles encharcam o solo com o ácido do ressentimento até que o castelo de cristal ceda ruinoso, eis que, do subsolo, os ratos, volta e meia, emergem como na peste de Camus:
Porque a morte do mundo é produzida in vitro, está em estado de laboratório.  No laboratório, a tecnologia cria o mundo sob a forma de realidade.  E mata as multiplicidades que, como bactérias rebeldes, empanam o brilho da simplicidade das experiências.  Morte in vitro: podemos quebrar os vidros, como no início da Revolução Industrial os operários quebravam as máquinas; mas de nada adiantaria, a peste se espalharia, morte descontrolada e sem nenhuma piedade.  Podemos sair do laboratório, deixar para trás a realidade e seu controle e cair na real.  Cair na real:  passar para o estado de guerra.  Aqui tudo é explosão de multiplicidades, multiplicações, alianças e traições – e nada é grave, tudo ri.  Mas não haja ilusão: cair na real não é algo simples, como saltar uma janela e ganhar a rua.  Cair na real é o espaço da mais cruel das batalhas, a que mais violentamente sacudirá, em dor e espasmos, o corpo já ferido do Ocidente.[3]

2.
Universidade de São Paulo.  Durante aqueles anos excepcionais para a democracia brasileira.  Ali, se encontravam Waldírio Bulgarelli, Miguel Reale e Walmor Franke.  Mas, não somente ali.  Em Brasilia, também.  Mais precisamente, na Casa Civil.  Não vem ao caso quantas vezes eles pegaram avião dali para lá[4].  Ao caso vem que eles falavam de Direito Privado. E também, animadamente, de cooperativas.  Waldirio introduzira dois tópicos.  O primeiro, a autonomia do Direito Cooperativo em relação ao Direito Privado e ao Direito Público.  Um Direito Social, comunitário. E o segundo, umbilicalmente ligado ao primeiro, o ato cooperativo.  Walmor Franke foi um gaúcho que falava melhor alemão do que português (e, ouvi dizer, que tocava violino melhor do que falava).  Também um  cooperativista, uma paixão herdada dos fundadores das (der) Reifeissenbanken.  Homem de confiança do regime militar para assuntos jurídicos. Por sua vez, encarava o Direito Cooperativo como um belo galho do tronco de um carvalho mais antigo: Direito Cooperativo para ele era Direito das Sociedades Cooperativas.   Um diálogo para lá de interessante, filosofava Miguel Reale. 

Passaram-se os anos e, desde 2002, elementos desse diálogo e filosofia nos assombram de um modo inventivo.  Para o Código Civil, cooperativa nunca será uma sociedade empresária.  Sociedade Simples.  Na unificação do Direito Privado, um abismo intransponível se positivou para o Direito entre a Sociedade Cooperativa e a Sociedade Anônima. Uma nunca será como a outra.  E, por quê? 

O ato.

Atrás de certezas, nos perdemos em interminável debate sobre ele, o ato cooperativo, quando tínhamos um problema muito pragmático para resolver: equacionar cargas tributárias que tornassem competitivas num mesmo mercado sociedades que nunca se igualam.  Waldírio e Walmor jamais imaginaram o tamanho da enrascada em que se meteriam a Fazenda Nacional e contribuintes diante do ato cooperativo.  Nem os constituintes da Carta de 88.

Eu pessoalmente, hoje em dia, culpo a Revolução Francesa por isso.  Por motivos paroquiais deles lá, inventaram para o nosso imaginário que metafísica é uma coisa caduca, obscura e desinteressante.  Só que a diferença entre ato e fato para o Direito é como o latim para o português.  Fica muito mais fácil compreender do que se trata, quando se sabe metafísica. 

Mas, nem latim, nem metafísica.  Tem muita coisa mais importante para pensar, ler, estudar, escrever. O mundo não para.  Os negócios urgem.  O contencioso só cresce. É uma pena. Do limão, a limonada: também é uma oportunidade.  Latim e metafísica são assuntos convenientes para quem não tem mais o que fazer. 

Antes de ato predicado.  O ato puro.  Eu sei.  Isso é categórico a guisa de análise.  Evidentemente, catafático.  Mas, é de propósito.  Para São Tomás de Aquino, o que é ato puro?  Vontade manifesta na história, mas sem forma alguma.  Exemplo? Fiat lux.  O sentido aqui para a expressão forma alguma é mistério.  Não faz sentido perguntar-se por alguma forma.  Alguma forma tem o fato, e não a tem o ato, necessariamente.  Forma pura, só a lógica.

Considerando a metafísica, o ato cooperativo não necessita de alguma forma.  Cooperativo é um predicado para o ato. Cooperação pode ser muito bem um valor, e não um suporte fático para outros valores.  Assim é com o ato amoroso.  Que o digam os juízes de varas criminais, às voltas com a criminalização da homofobia. 

Mas, as cargas tributárias são resultados matematizados a partir de fatos contábeis.  Tem que haver forma.  Mais do que isso, a forma que é determinante, e não o valor.  O amor determina alguma carga tributária?  Então por que a cooperação seria determinante?  Então, por que discutir sempre o ato?  Ah, é porque está na Constituição Federal.  Então, porque o adequado tratamento tributário é expresso ali, a cooperação no ato cooperativo nada tem a ver com o amor?  Há séria controvérsia fenomenológica aqui.

Waldírio dizia que o ato cooperativo era a outorga de um mandato sem representação.    Esta definição foi decisiva para a redação do art. 83 da Lei 5.764/71.  Já em 2002, eu professava que um modo de compreender o que acontecia de fato em decorrência da manifestação da vontade como ato cooperativo era a analogo à substituição processual.  De um ato cooperativo em prática, decorria possivelmente um fato contábil: a substituição contratual.  A cooperativa pode operar habitualmente por conta do cooperado, mas em nome próprio perante terceiros sem haver qualquer distinção de seus interesses jurídicos e econômicos face aos de seus cooperados.  Mas, quanto mais empresarial for a lógica operacional da cooperativa, mais por conta própria a cooperativa tende a atuar.  Isso, por exemplo, se reflete na capacidade e necessidade de crédito a ser alavancado por ela mesma no mercado financeiro para financiar suas atividades operacionais.   Que se tornam mais e mais distintas das capacidades e necessidades de seus cooperados, quando pessoalmente considerados. E, com isso, os interesses jurídicos e econômicos da cooperativa quedar-se-ão bem diferentes das dos seus cooperados.  E o ato cooperativo se retrairá no horizonte da indistinção nos fatos que se apresentem sob a perspectiva mercadológica, em que pese o disposto no parágrafo único do art. 79 da Lei 5.764/71.  Será um esforço digno de Sísifo demonstrá-lo.  Mais do que isso, distingui-lo no mundo da vida[5].  Neste contexto, os precedentes judiciais de aplicação do CDC em litígios envolvendo cooperados e suas cooperativas de consumo.  Ou, a CLT em outro ramo do cooperativismo.  Ou, o CTN.  Então, os cooperados são hipossuficientes em relação aos interesses e capacidades de suas cooperativas?  Acontece, como já constataram muitos juízes.  Daniel Sarmento, analisando as decisões do STF nos RREE 598.085 e 599.362, opinou:
[P]ode haver incidência dos referidos tributos em relação à receita auferida pela cooperativa, quando decorrente de atos externos voltados ao mercado que não envolvam diretamente a produção, os serviços ou o trabalho de cooperados, e sim de terceiros não associados. Tal incidência também ocorre, quando não se tratar de autênticas cooperativas, mas de entidades que, apesar de formalmente constituídas sob essa forma, desempenhem atividade tipicamente empresarial.[6]

3.
Hipossuficiência concorrencial.  Quando enfrentei o desafio de distinguir cooperativas de cartéis em debates no CADE, descobri que este é um elemento próprio de ser cooperativa.  Há sempre um sentido de imperfeição de mercado no fenômeno constitutivo de uma cooperativa.  Ela é genuína, quando manifesta uma necessidade de atribuição de algum poder compensatório aos cooperados face a um oligopólio ou oligopsônio.

Ilustro.

Postos de gasolina.  O histórico no CADE indica que basta você piscar o olho e na sua vizinhança postos formariam um cartel.  Mas, se postos de gasolina fundassem uma cooperativa que compre em nome próprio combustível dos distribuidores e precifique para os consumidores no bico da bomba? Houve um ato cooperativo?  Parece. Há alguma possibilidade de ser lícita  essa solução?  Nenhuma. 

Mas, nem sempre será fácil distinguir o limite de licitude, não obstante nos gritar a consciência do justo que cooperativas e cartéis sejam coisas diametralmente opostas. De fato, é contraintuitivo.  Mas, teorias econômicas costumam ser contraintuitivas, mesmo.  O princípio das portas abertas permite que a cooperativa potencial e mesmo efetivamente se comporte como um cartel, quando atuante em mercados com características favoráveis a isso.  Não depende tanto da cooperativa, depende mais do mercado ser propenso a isso.  Pelo menos, olhando para dados categorizados em gráficos demonstrativos da teoria dos oligopólios, isso acontece.  Então, em defesa da concorrência, haverá mercados vedados às cooperativas?  Ou que a cooperativa seja obrigada a fechar suas portas para novos cooperados?  Um problema de matiz constitucional, na certa!  Há solução alternativa que permita o cooperativismo vicejar em qualquer mercado?  Desde que ele se mostre imperfeito ou tendente à imperfeição.

Sabemos que, perante a legislação vigente em defesa da concorrência, irrelevante, ingênua mesmo a solução dada na Lei 5.764/71: no mínimo, 20 pessoas físicas precisam ser cooperadas e as pessoas jurídicas que sejam também cooperadas precisam ter as mesmas atividades delas, ou não terem finalidade lucrativa.  O problema é muito mais íntimo ao acontecimento da cooperação na ordem econômica em relação à concorrência no mercado.  Para essa distinção, até agora, o único modo experimentado no CADE em mercados propícios passa por distinguir a cooperação da colusão.  Cooperação e concorrência coexistem na ordem econômica, sem o que ela conflitará insuportavelmente com a ordem social por conta do elemento egóico no humanismo, irmã do utilitarismo mais do que influente na formação clássica da economia.  A colusão é um desvalor, tanto face à cooperação quanto à concorrência.

A cooperação, a concorrência e a colusão são vitais.  Ou seja, são entes axiológicos manifestos nos modos de vida.  A cooperação manifesta necessariamente uma comunhão. Conquanto a colusão mitiga, frustra mesmo a competitividade sem, no entanto, manifestar um estado de comunhão num modo de vida. 

Comunidades nunca formam cartéis. Mais do que empresas, cooperativas são comunidades organizadas na ordem econômica.  Como certa feita aleguei no CADE, há um sentido de zugehörigkeit zur Hanse que simplesmente não existe num cartel. Cooperativas podem assumir formas mais parecidas com guildas medievais do que com cartéis modernos.   Isso porque cooperados não são redutíveis à representação como agentes econômicos que dispõem de seus ativos num mercado orientados por seu apetite de ganhos ou pelos riscos que estão dispostos a assumir.  No cartel, não há nenhum outro sentido para sua existência que não a apropriação predatória de ganhos marginais num mercado.  Cooperativas podem até praticar ilícitos concorrenciais, mas não serão ilícitas per se, não importa o que os gráficos de economia estejam delineando sobre o comportamento.  Embora, claro, o que delineiem seja relevante para se encontrar soluções satisfatórias na defesa da concorrência.  Enfim, para sintetizar: são elementos de Direito Cooperativo a comunidade e a imperfeição de mercado.

É, estou sendo catafático, eu sei.  É para não incendiar pontes.  Nessas pontes, meu amigo vai passar.

4. 
Os antigos, com razão, diziam que todos os caminhos levavam a Roma.  Mas, nem sempre eu quero chegar a algum lugar.  Eu me encanto com as flores nas beiras do caminho, me perco nas conversas com os viajantes, sento numa pedra e me deixo ficar sem uma rota.  E isso me basta muito frequentemente.  Basta-me agora, aliás.

Basta-me, porque confio que o Renato sempre chegue a Roma.  Alguém precisa.  Que seja ele, então.  Ele planeja meticulosamente o trajeto; é metódico toda vida; debalde os obstáculos, ele não descansa; não desfoca até chegar lá.  Conquanto eu tenha muito de Estragon, ele definitivamente não é Godot.  Ele vem.  Aqui eu o espero passar; aqui onde estou: entre nenhum lugar e lugar algum.  Paradoxalmente, mesmo que escolham diferentes caminhos para chegar a Roma, todos, cedo ou tarde, mas nunca ao meio-dia, passam por aqui. 

Vai, Renato! E diga-nos o que você vê ao final deste caminho.



[1] São 12 as categorias:   unidade, pluralidade e totalidade; realidade, negação e limitação; constância (substância), causa e interação;  possibilidade, existência e necessidade.
[2] Decadência aqui não tem um sentido pejorativo, mas de degeneração.  Apenas expressa mais do mesmo.  O que se repete à exaustão só pode degenerar da sua genealogia em relação ao devir.
[3] D´AMARAL, Marcio Tavares.  Comunicação e diferença.  Rio de Janeiro : Ed. UFRJ, 2004.  Pp. 75-76.
[4] Por mais amor que eu  tenha pelos fatos, também não vou complicar mais ainda a minha narrativa inserindo um quarto personagem que atenderia pelo nome de Sylvio Marcondes.
[5] Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais, ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa seqüência de atos sem nexo que setorna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar.  (CAMUS, Albert.  O Mito de Sísifo. http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Albert%20Camus-2.pdf)
[6] Conclusão d do parecer de 20/06/2016 em resposta à consulta formulada pela Federação Brasileira de Cooperativas de Anestesiologistas, que postula seu reconhecimento como amicus curiae no RE 672.215, cuja tese 532 de repercussão geral é a incidência de COFINS, PIS e CSLL sobre o produto de ato cooperado ou cooperativo.

quarta-feira, 12 de junho de 2019


Ética para tempos de muita certeza

 Estou ficando velho... cada vez mais apreciando o trabalho de Clint Eastwood.


Esta é a cena em que seu personagem, um irlandês católico praticante e sexista, após se confessar com um padre, vai praticar a eutanásia em sua pupila, a Menina de Ouro, a quem canalizava sua afetividade por ter relações rompidas com sua filha.

Esta tomada dura uns 5 segundos no mais absoluto silêncio.

 Clint não construiu o drama a partir de uma abordagem psicológica.  Mas, teológica.  Muito sutil.  Ao longo do filme, ele salpica de cenas em que o personagem "atormenta" o padre com perguntas sobre dogmas especialmente difíceis de serem demonstrados: a Santíssima Trindade e a Imaculada Conceição.  Isso aponta que o personagem tinha consciência das implicações de seu ato sob a perspectiva salvífica que não nega; sequer questiona. Ao se confessar antes da eutanásia, já sabia que o padre não poderia lhe absolver.

Clint constrói a narrativa a partir da crucificação, em particular o desafio hermenêutico das passagens sinóticas "Eloi, Eloi, lamá sabactani?” (Marcos 15: 34) e“Eli, Eli, lemá sabactani” (Mateus 27: 46). Em português: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” 

Bento XVI enfrentou este desafio no seu magistério:
Essa oração de Jesus nunca cessou de estimular os cristãos a questionarem-se e refletirem:  como podia o Filho de Deus ser abandonado por Deus?  Que significa esse brado? (....) Seja como for, só a comunidade crente entendeu a exclamação de Jesus (....) como o início do salmo 22 e, com base nisso, pôde entendê-lo como brado verdadeiramente messiânico.  Não se trata de um brado qualquer de abandono.  Jesus recita o grande Salmo de Israel sofredor e, deste modo, assume em Si todo o tormento não só de Israel, mas de todos os homens que sofrem neste mundo pela ocultação de Deus.  Ele leva perante o coração do próprio Deus o brado de angústia do mundo atormentado pela ausência de Deus.  Identifica-se com o Israel sofredor, com a humanidade que sofre por causa da ´obscuridade´ de Deus, assume em Si o seu brado, o seu tormento, toda a sua necessidade de ajuda e, ao mesmo tempo, desse modo o transforma.  (....) Pronunciando Jesus as palavras iniciais do Salmo, em última análise, já está presente o conjunto dessa magnífica oração (....).  O brado no tormento extremo é simultaneamente certeza da resposta divina, certeza da salvação não só para o próprio Jesus, mas para muitos.  (....) Encontramo-nos sempre de novo no hoje abissal do sofrimento (...).  Numa tal perspectiva, nada do horror da Paixão de Jesus é cancelado; pelo contrário, aumenta, porque não é só individual, mas traz em si realmente a tribulação de todos nós.  Ao mesmo tempo, porém, o sofrimento de Jesus é uma paixão messiânica: um sofrer em comunhão conosco, por nós; um estar com que deriva do amor e assim já traz em si a redenção, a vitória do amor.
Voltando ao filme: o personagem de Clint, ao assumir conscientemente um pecado  mortal sem absolvição, atraiu para si mesmo todo sofrimento indizível da Menina de Ouro.  Um  feminicídio com significado ético.   O arco hermenêutico é tensionado na narrativa, pois logrou ligar sincronicamente um conceito (no caso, a eutanásia ou o feminicídio) ao dado empírico e ao  noema (o dado vivenciado).

A maestria de Clint Eastwood na construção da narrativa cinematográfica evoca pela Menina de Ouro a expressão grega para felicidade: eudaimonia.  O radical daimon (δαίμων) é o mesmo de demônio (dæmon).  Felicidade é um demônio bom.  Na estória de Aladim, onde está a felicidade?  Na lâmpada.  E quando você a esfrega, muito cuidado com o que não só deseja, mas também com o que diz.  Porque a felicidade pode voltar-se contra você.  Sabedoria antiga.

O que tudo isso significa nos tempos de hoje?


Quando a gente acredita sem sombra que está do lado certo da história, está a um passo do abismo.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

VIII Caminhada com Maria rumo ao Redentor.



Relembrando os 40 dias em que Deus caminhou entre nós com Seu corpo glorioso, concluí a VIII Caminhada com Maria rumo ao Redentor com a Congregação Mariana do Hospital Colônia de Curupaiti. 
Saindo da Igreja da Ressurreição no Arpoador, como que seguindo os passos dos discípulos de Emaús, fui encontrando o Cristo eucarístico pelo caminho em Ipanema, Fonte da Saudade, Botafogo, Laranjeiras, Cosme Velho até chegar ao Santuáriio do Cristo Redentor do Corcovado que evoca a ascensão de Cristo ao céu, evento que celebramos hoje com especial devoção mariana. Durante toda caminhada, Cristo conversou por meio do Santo Rosário. 
Especial agradecimento à Ordem Franciscana do convento de Santo Antônio da Carioca pela celebração da Santa Missa na capela aos pés do Redentor no final da caminhada. Especial também pela solenidade de entrega das fitas a 3 novas congregadas marianas, jovens que agora prometem a continuidade da congegação nas próximas décadas. 
Tudo fiz na intenção da Santa Igreja, em especial do Papa Francisco, da Opus Dei, da arquidiocese do Rio de Janeiro, e de nossa cidade que tanto anda precisando da inventiva do Espírito Santo. E de nosso país. Num tempo em que quase ninguém quer dialogar e praticamente todo mundo jura que tem razão sobre quase tudo, um dia inteiro dedicado a uma andança contemplativa e orações silenciosas é o que melhor pude dar de mim hoje para que sejamos todos dignos da misericórdia do Cordeiro de Deus.