sábado, 28 de setembro de 2019

A PÁ ABSURDA



Não se descobre o absurdo 
sem ser tentado a escrever 
algum manual de felicidade.
Albert Camus 
 Paris ocupada, 1942

Desde há meses, tenho um projeto para a efeméride dos meus 50 anos.  Carvear a pista que tem para isso na ilha da Gigóia.  Não é particularmente perigosa, tampouco vistosa.  O lance é o seu traçado. Exige agilidade e pressupõe condicionamento físico e prática invejáveis para alguém com metade de um século nas costas.  Estou quase lá... bem a tempo.  Fiquei até tentado a produzir um vídeo protagonizando nas ondas de concreto do Spot Lab, como também as das águas na Macumba.  Registrar meus 50 com essa voracidade performática que testemunhamos pandêmica nas redes sociais e coisas afins. 

Mas, não é sobre este projeto que quero escrever. 

Frequento uma costela de cobra perto de casa.   Uma pista de skate muito gostosa para gente coroa como eu (foi lá, aliás, que fiquei sabendo da outra pista na Gigóia).  Vou para o Znake bem cedinho praticar. Todo dia. Menos, quando chove.  Nas manhãs assim, me contentava em correr.  Com o tempo, me acostumei a correr em ladeira.  É ótimo para o condicionamento físico.  Assim, melhorei meu desempenho nas manobras que exigem muito dos tornozelos.  Fora isso, em dias de chuva, bonito ver o casario, arboredo, muros e telhados molhados.  Tocar o céu cinza e olhar a cidade tom sobre tom.  Aí, descobri uma trilha que dá numa nascente na mata que se estende até o Sumaré.  Comecei a limpar o lixo que encontrava na trilha e na nascente.  É mais agradável ir lá, quando está limpa.  Crianças da Coreia frequentam.  Quando sujavam, eu limpava.  Valia a pena pelas vezes que voltava lá e encontrava o lugar sem polímeros sintéticos.  Sujavam quase todo final de semana. Ás vezes, muito.  Era meio irritante. Mas, tudo bem; não me importava muito com a irritação.  Cruzei com esses garotos só uma vez.  Não reclamei nem conscientizei de nada.  Não me deu vontade disso.  Mas, pelo visto, com o tempo, não sei por que, pararam de deitar lixo lá. Bem, uma vez, encontrei um latão vazio de tinta por lá.  Estava com o fundo furado.  Lembrei-me do conceito nudje.  Então deixei bem a vista como se fosse uma cesta de lixo.  Com um requinte, sempre deixo um pouco de lixo dentro.  Só para comunicar a sugestão.    Não sei se o latão tem parte na mudança de padrão.  Claro, de vez em quando, tem lixo espalhado.  Mas, muito menos do que no começo.   

Como fiquei sem mais ter o que fazer lá, pensava que seria um bom exercício físico levantar um dique de pedra. Passei meses movendo pedras em manhãs de chuva.  De fato, é um ótimo exercício.      Verão passado, num temporal, a cabeça d´água derrubou o dique.  E eu a refiz.  Só que um pouco diferente.  Olhando como as pedras foram arrastadas, imaginei um jeito de fazer o dique que resistisse melhor a próxima enxurrada.  Ainda não caiu um temporal para pressionar o novo dique.  Estou aguardando pelo teste.  Enquanto isso, o espelho d´água começou a me preocupar com mosquitos.  Então, despido o leito das pedras que serviram no dique, comprei uma pá de trincheira e comecei a escavar o leito; jogava areia nos cantos onde havia remansos.  Faz mais de ano que vou lá.  Corto a mata para manter a trilha aberta e até escavei degraus fantasiando que minha mãe septuagenária possa um dia ir também.  Realmente, a trilha está uma beleza.  Tiro sempre as folhagens e galhos caídos do fundo da piscina, deixando seu chão macio ao pisar.  A piscina virou um viveiro de girinos e peixinhos.  Agora, apareceram lampreias.  É uma pequena delícia ver os peixes nadando na água transparente com o fundo claro da areia. 


Às vezes, penso que poderia estar gastando toda essa energia e engenhosidade num lote de terra comprada. A grande maioria das pessoas da minha idade só consideraria razoável empreender como estou fazendo somente no caso de dispor do lugar como patrimônio.  Ou talvez como tática de conscientização ambiental...  Eu me pergunto por que afinal de contas eu faço o que faço.  Ora, cavucar o leito para mantê-lo branquinho é um trabalho ininterrupto.  E tudo que tenho como retorno são alguns minutos nos quais eu fico mirando encantado um canto do mundo que ficou bonito.  Mas, não posso retê-lo.  Qualquer dia, aquele lugar vai atrair animais perigosos, ou vai acontecer um deslizamento de encosta, ou traficantes de comunidades próximas irão me ameaçar... enfim, há muitos riscos e, por conta de algum, deixarei de ir lá de uma hora para outra.  Enquanto alguma coisa assim não acontece, quando acordo e vejo que a rua está molhada, não penso que isso seja frustrante, porque não vou andar de skate.  Eu simplesmente mal posso esperar para sair de bike rumo à mata e então passar uns bons três quartos de hora, a minha pá na mão para cavar com metade do corpo metido em água fria num lugar que nunca me pertencerá. Tudo que tenho ali é a pá. Essa pá é o objeto que hoje em dia mais me dá alegria.   

4 comentários:

  1. Guulhermo, espero que as sementes do seu trabalho meio ambiental continuem crescendo, a árvore mais forte e alta cresce devagarinho e é perseverante.
    Meus parabéns e que tenha muitos seguidores... O exemplo é uma força dinâmica. Saudações desde a Catalunha.

    Teresa Prada

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  2. Um verdadeiro e valoroso trabalho!
    O futuro agradece!

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