Não se descobre o absurdo
sem ser tentado a escrever
algum manual de felicidade.
sem ser tentado a escrever
algum manual de felicidade.
Albert Camus
Paris ocupada, 1942
Paris ocupada, 1942
Desde há meses, tenho um projeto
para a efeméride dos meus 50 anos. Carvear
a pista que tem para isso na ilha da Gigóia.
Não é particularmente perigosa, tampouco vistosa. O lance é o seu traçado. Exige agilidade e
pressupõe condicionamento físico e prática invejáveis para alguém com metade de
um século nas costas. Estou quase lá...
bem a tempo. Fiquei até tentado a
produzir um vídeo protagonizando nas ondas de concreto do Spot Lab, como também
as das águas na Macumba. Registrar meus
50 com essa voracidade performática que testemunhamos pandêmica nas redes
sociais e coisas afins.
Mas, não é sobre este
projeto que quero escrever.
Frequento uma costela de cobra
perto de casa. Uma pista de skate muito
gostosa para gente coroa como eu (foi lá, aliás, que fiquei sabendo da outra
pista na Gigóia). Vou para o Znake bem
cedinho praticar. Todo dia. Menos, quando chove. Nas manhãs assim, me contentava em
correr. Com o tempo, me acostumei a
correr em ladeira. É ótimo para o
condicionamento físico. Assim, melhorei
meu desempenho nas manobras que exigem muito dos tornozelos. Fora isso, em dias de chuva, bonito ver o
casario, arboredo, muros e telhados molhados.
Tocar o céu cinza e olhar a cidade tom sobre tom. Aí, descobri uma trilha que dá numa nascente
na mata que se estende até o Sumaré.
Comecei a limpar o lixo que encontrava na trilha e na nascente. É mais agradável ir lá, quando está
limpa. Crianças da Coreia frequentam. Quando sujavam, eu limpava. Valia a pena pelas vezes que voltava lá e
encontrava o lugar sem polímeros sintéticos. Sujavam quase todo final de semana. Ás vezes, muito. Era meio irritante. Mas, tudo bem; não me
importava muito com a irritação. Cruzei
com esses garotos só uma vez. Não
reclamei nem conscientizei de nada. Não
me deu vontade disso. Mas, pelo visto,
com o tempo, não sei por que, pararam de deitar lixo lá. Bem, uma vez,
encontrei um latão vazio de tinta por lá.
Estava com o fundo furado.
Lembrei-me do conceito nudje.
Então deixei bem a vista como se fosse uma cesta de lixo. Com um requinte, sempre deixo um pouco de
lixo dentro. Só para comunicar a
sugestão. Não sei
se o latão tem parte na mudança de padrão.
Claro, de vez em quando, tem lixo espalhado. Mas, muito menos do que no começo.
Como fiquei sem mais ter o que
fazer lá, pensava que seria um bom exercício físico levantar um dique de pedra.
Passei meses movendo pedras em manhãs de chuva.
De fato, é um ótimo exercício.
Verão passado, num temporal, a
cabeça d´água derrubou o dique. E eu a
refiz. Só que um pouco diferente. Olhando como as pedras foram arrastadas,
imaginei um jeito de fazer o dique que resistisse melhor a próxima enxurrada. Ainda não caiu um temporal para pressionar o novo
dique. Estou aguardando pelo teste. Enquanto isso, o espelho d´água começou a me
preocupar com mosquitos. Então, despido
o leito das pedras que serviram no dique, comprei uma pá de trincheira e comecei
a escavar o leito; jogava areia nos cantos onde havia remansos. Faz mais de ano que vou lá. Corto a mata para manter a trilha aberta e
até escavei degraus fantasiando que minha mãe septuagenária possa um dia ir também. Realmente, a trilha está uma
beleza. Tiro sempre as folhagens e galhos caídos do fundo da piscina, deixando seu chão macio ao pisar. A piscina virou um viveiro de girinos e
peixinhos. Agora, apareceram
lampreias. É uma pequena delícia ver os
peixes nadando na água transparente com o fundo claro da areia.
Às vezes, penso que poderia estar
gastando toda essa energia e engenhosidade num lote de terra comprada. A grande
maioria das pessoas da minha idade só consideraria razoável empreender como estou
fazendo somente no caso de dispor do lugar como patrimônio. Ou talvez como tática de conscientização
ambiental... Eu me pergunto por que
afinal de contas eu faço o que faço.
Ora, cavucar o leito para mantê-lo branquinho é um trabalho
ininterrupto. E tudo que tenho como retorno
são alguns minutos nos quais eu fico mirando encantado um canto do mundo que
ficou bonito. Mas, não posso
retê-lo. Qualquer dia, aquele lugar vai
atrair animais perigosos, ou vai acontecer um deslizamento de encosta, ou traficantes
de comunidades próximas irão me ameaçar... enfim, há muitos riscos e, por conta de algum, deixarei de ir lá de uma hora para outra.
Enquanto alguma coisa assim não acontece, quando acordo e vejo que a rua
está molhada, não penso que isso seja frustrante, porque não vou andar de
skate. Eu simplesmente mal posso esperar
para sair de bike rumo à mata e então passar uns bons três quartos de hora, a minha pá na mão para cavar com metade do corpo metido em água fria num lugar
que nunca me pertencerá. Tudo que tenho ali é a pá. Essa pá é o objeto que hoje
em dia mais me dá alegria.
Guulhermo, espero que as sementes do seu trabalho meio ambiental continuem crescendo, a árvore mais forte e alta cresce devagarinho e é perseverante.
ResponderExcluirMeus parabéns e que tenha muitos seguidores... O exemplo é uma força dinâmica. Saudações desde a Catalunha.
Teresa Prada
Grato pelo voto de reconhecimento e incentivo.
ExcluirUm verdadeiro e valoroso trabalho!
ResponderExcluirO futuro agradece!
De Sofia e Cia...em 06 02 22.
ResponderExcluirAbraco!