quinta-feira, 24 de abril de 2014

Noé não é e então é

Um amigo tem feito o trocadilho de  Não é com Noé para explicitar a infidelidade do filme escrito, dirigido  e produzido por Darren Aronofsky e estrelado por Russel Crowe, Jennifer Connely e, como coadjuvantes, Anthony Hopkins e Ray Winstone para com o Genesis, primeiro livro do Antigo Testamento.


Mas não se trata de uma falsificação da memória de Noé. Antes, há propósito da construção de um personagem dramático inspirado no patriarca bíblico.  A intenção dramatúrgica do filme já aparece explicitado visualmente no figurino, o que está particularmente evidente em Noema, esposa de Noé:  ela veste calças justas  e botas... evidentemente não se quer retratar o testamento de um patriarca bíblico.

Uma distinção essencial entre o testamento e a dramaturgia: esta traz um personagem à presença pela sua representação. O testamento traz uma pessoa à presença pela sua memória.  A diferença entre a memória da pessoa e representação do personagem está no aparecimento da humanidade por reflexo. No testamento, a humanidade é inflexiva. Mas, em todo caso, há narrativa.  A representação carrega uma intenção autoral criativa.  A singularidade da memória nas narrativas bíblicas advém também de uma intenção. Mas, não é autoral criativa.  A intenção é a revelação (e não a criação) de Deus.

As relações sutis entre memória e representação; pessoa e personagem; testamento e dramaturgia me parecem ser o interesse de Darren Aronofsky por sua obra, na escolha de Noé como figura central. Essas relações são tecidas entre o Noé que é na Bíblia e o Não é do filme, a partir da proximidade da linguagem dos mitos, da qual a narrativa dramática é tributária pela tragédia (no filme, Tubalcaim e Cam são personagens trágicos), conquanto também o Gênesis é um texto de passagem da linguagem mitológica para a linguagem testamental constitutiva da soterologia (palavras de salvação).

Aronofsky não pretende colocar em xeque a Revelação bíblica.  Mas, por outro lado, sabe que, tanto nos mitos como nas tragédias e nos testamentos bíblicos, a traição é fecunda na abertura de diferentes possibilidades de desdobramentos narrativos.  Então, ele trai sem culpa o Noé que é na Bíblia.  Sem culpa, porque se desculpa: o seu Não é traidor  também é traído por Matusalém (um ancestral masculino que, embora vivo, não exerce papel patriarcal) com magia (sinal feminino de subversão ao patriarcado), sendo essa traição a própria fertilidade consumada na gravidez da filha adotiva de Não é, Ila.  A gravidez é inesperada para Não é e indesejada por ele, eis que empenhado na extinção da humanidade e na preservação da criação, porque está convicto de que a humanidade está reduzida pelo Criador a este papel.

Trai na figuração de Deus. Ele Se revelou como Pessoa que falou com Noé.  Mas, Aronofsky não está tão interessado em Deus como está interessado em seus personagens.  Então, ele cala Deus.  No filme, Deus não é um personagem, muito menos um mito.  É "o" Criador - princípio de determinação.  Daí, existirem no filme os  Guardiões como um recurso narrativo para uma mediação dialógica entre humanidade e divindade, cuja relação, no filme, não pode ser imediata, uma vez que "o" Criador é mudo feito uma porta.  Daí, esses gigantes não guardarem qualquer semelhança com os Nefilins bíblicos, senão pela desgraça que os abate.  No filme, são anjos.  E o são para dar referência bíblica à cooperação dos gigantes, pois os anjos, na Bíblia, são recorrentemente cooperativos no diálogo entre Deus e os homens.

Trai no estabelecimento de uma dialética  no domínio sobre a natureza entre a sua exploração e a sua preservação, o que está muito longe de ser inspirado nos testamentos  bíblicos.  Mas, no filme, essa dialética é o eixo do antagonismo entre Tubalcaim, um patriarca da linhagem que se contrapõe à de Noé, descendente de Abel.  A partir de Deus como "o" Criador mudo - um fazedor de meio ambiente - o acontecimento ético é bioético: uma manifestação humanista que paradoxalmente aprisiona a humanidade no mundo por sua própria visão biocêntrica de mundo. 

Em todo caso, como sustentabilidade e preservação ambiental são conceitos correntes de marketing, a proposta bioética no filme atende perfeitamente à sua função de entretenimento: um Não é ambientalista fica inteligível e politicamente correto para quem não está nem aí para debates políticos, religiosos ou éticos.  Apenas, está querendo ver um filme como outro qualquer, mastigando pipoca.

Mas, vamos lá:  Aronofsky é grato ao Noé que é na Bíblia, ainda que o traia sem dó.  Na gratidão que mostra toda a sua habilidade como roteirista.  A sua conciliação com o Noé bíblico está na reconciliação de seu personagem  com sua esposa.  Aí, o seu Não é passa a ser Então é.  De certo modo, o filme retrata as desventuras de um personagem em busca de sua fonte de inspiração.  Explico melhor:  Tanto o Noé bíblico como o Não é do filme admitem Deus como existente.  Mas, o Genesis é explícito em afirmar que Noé andava com Deus.  A fonte de sua inspiração está próxima.  Então, no seu testamento não há qualquer sentido de busca por Deus.  Mas, para Não é, Deus está distante, inalcançável nos primórdios da criação.  Em Não é, o sentido de busca acontece, mas só pode ser expresso em metalinguagem:  sua fonte de inspiração é o Noé bíblico, que andava com Deus.   Somente no encontro de sua fonte de inspiração, o Não é pode encontrar Deus. Não é então busca por Noé ao longo de todo o filme.

Posso dizer quiçá melhor em outras palavras.  O climax no filme já é uma evidente remissão a outro patriarca bíblico:  Abraão, no sacrifício de Isaac, seu filho.  O protagonista, obsecado por sua própria interpretação do papel dado pelo Criador-mudo, avança para matar suas netas, na recusa de si como um co-criador. 

Mas, eis que Então é salva de si as netas por amor.  Já que, no filme, Deus é mudo feito porta, Noema fica encarregada em expressar o sentido de eternidade humana na própria comunidade que se estabelece a partir do vínculo ético originário, que é a hospitalidade sem razão, sem determinação alguma - acolhimento, aceitação sem reserva de alguém como querida, a entrega de si a quem lhe inspira cuidado.  O amor que não está determinado, pois é radicalmente gratuito, mas que inunda o mundo de esperança e faz do homem co-criador reconciliado com o Criador na criação.   Aronofsky acentua ser essa a Revelação que preserva em sua gratidão por Noé ao sinalizar também em seu filme, como na Bíblia, o arco-íris como aliança entre Deus e os homens.    

Ouso afirmar que Então é de Aronofsky coloca em xeque um discurso que associa desequilíbrio ambiental à explosão demográfica e que induz à validação da assistência ao aborto como solução sanitária.  A transformação de Não é em Então é insinua que a legalização do aborto pode ser a repaginação das velhas matanças bíblicas.

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