O país
foi dormir horrorizado ontem.
Corria
um boato perto da praia. Crianças estavam sendo sequestradas para
sacrifícios de magia negra. Um horror ancestral. Há séculos, bruxas
e judeus são os suspeitos usuais. Mas, como tantas mulheres no passado,
Fabiane, uma pessoa diferente, esquisita por inspirar cuidados especiais
(transtorno bipolar), ontem levou azar: foi a bruxa da vez.
Linchada para salvar uma comunidade da desgraça, da magia negra.
Amanheci
pensando em como o caldeirão da maga ainda pode estar fumegando em pleno
Guarujá do séc. XXI. Quem pôs a lenha na fogueira? Pensei nos
pastores das igrejas neopentecostais. Pensei eu em como são afeitos às
literalidades nos textos testamentais, mas não identificam, nos seus
ritos de exorcismo, Baal, Belial, Asmodeu... Numa conveniente
interpretação de que os demônios bíblicos são subversões de deuses pagãos, os
refiguram e atualizam como orixás, eguns ou outras entidades da umbanda. Os demônios
então deixaram os terreiros e as encruzilhadas para encarnarem nos pastores que
vociferam ao microfone. Eles são os "meus" bruxos do dia.
Mas,
uma amiga postou no Facebook: "Esses
imbecis desses Datenas e Sherazades da vida tb tem q ter 1 pingo de senso de
responsabilidade antes de ficar vomitando aquele monte de merda q falam na
TV!!!" Flavinha, minha amiga, certamente entende que o
"controle sociai" sobre a mídia é uma questão em aberto. Então
a bruxaria deixou os templos neopentecostais e em salas de imprensa foi fazer
mal.
Essa
facilidade com que os demônios pulam de bruxa em bruxa nos dá um outro jeito de
pensar tudo isso. Remete ao outro suspeito de sempre: os judeus.
Hoje
temos um certo pudor em apontarmos o dedo para judeus como culpados de sempre,
porque três dedos apontarão imediatamente para nós mesmos: neonazista!
Mas, a gente não é nazista!
Retratamos
nazistas facilmente como monstros desumanos. Mas, não é bem assim.
Os oficiais da SS nos campos de extermínio, em geral, eram pessoas
comuns, em que pesem os milhões que lá sucumbiram. É fácil ver a maldade nos
oficiais da SS: atuavam com entusiasmo sob a égide de um Estado
autoritário, professavam uma ideologia avassaladora e desenvolveram uma tecnologia
especialmente voltada para o genocídio.
Mas, o
que aconteceu em Ruanda coloca em xeque tal transparência do mal. Em
1994, hutus massacraram tutsis a uma taxa de 7.000 por dia. Mais mortos
que os campos nazistas de extermínio foram capazes de produzir. A situação era de
anarquia, o discurso hostil não era muito mais ideológico do que chamar
os tutsis de baratas e os culpar por tudo de ruim e a tecnologia empregada...
bem, pedras, paus, facões e fuzis deram conta.
Mas, há
algo em comum em ambos os genocídios. E
isso não aparece nos testemunhos dos sobreviventes. Está evidente nos depoimentos dos algozes. Era um trabalho a ser feito e então era para
ser feito da melhor forma possível. Essa
resposta recorrente à pergunta pelo porquê levanta suspeita de que todos nós
somos humanos entre alemães e hutus no que fazemos. Em que sentido? Quando
esquecemos dos múltiplos sentidos do que fazemos e não nos flagramos mais
elegendo "nossos" judeus, "nossos" tutsis,
"nossas" bruxas.
E por
que é tão humano elegermos "nossos" judeus, tutsis e bruxas? Porque, diante do horror, é muito mais
difícil nos deixar flagrados em nossa nudez assustadora, do que agarrarmos alguém
travestido, vestido como alguém que conosco não se identifica e jogarmos na
vala comum do horror ao horror.
Trata-se
de algo tão ancestral em nós, quanto as bruxas, os judeus e os deuses pagãos: o
impulso de expiação. O impulso da
expiação é o impulso em afastar a desgraça de nós e de quem amamos. É expiação, quando esse afastamento se dá por
transferência da desgraça a substitutos que não amamos. Se a desgraça recai a quem não amamos, a
justiça está restabelecida.
Desgarrega-se a punição. No afã
de salvarmos a quem amamos, a inocência ou a culpa pessoal importam menos: dá-se a expiação.
A
passagem bíblica em que o sacrifício por Abraão é desviado de Isaac para o
cordeiro diz muito disso. Todo filho de
Abraão precisa saber que todo holocausto não é um ato intencional de malefício, mas é um ato de expiação.
Fabiane
ontem foi dada em holocausto. Se
formos procurar culpados pelo erro de julgamento e isso bastar para nos redimir
e também a quem amamos, já estamos preparando um novo holocausto para daqui a
pouco.
Mas, se pudermos também pensar que Fabiane é o cordeiro que foi dado em sacrifício pelos erros de julgamento, sua memória nos faz sentir no coração uma vergonha que dói na alma - nossa nudez assustadora nos aparece. Essa dor pode ser tal a deitar nossos joelhos por terra e murmuraremos: Cordeiro, tem piedade de nós! Nessa dor e nesse pedido de misericórdia, a esperança de redenção de toda humanidade nascerá de graça. Então, nenhum outro holocausto será necessário.
Mas, se pudermos também pensar que Fabiane é o cordeiro que foi dado em sacrifício pelos erros de julgamento, sua memória nos faz sentir no coração uma vergonha que dói na alma - nossa nudez assustadora nos aparece. Essa dor pode ser tal a deitar nossos joelhos por terra e murmuraremos: Cordeiro, tem piedade de nós! Nessa dor e nesse pedido de misericórdia, a esperança de redenção de toda humanidade nascerá de graça. Então, nenhum outro holocausto será necessário.
A imolação de Fabiane é um acontecimento que continua me intrigando, que vai e volta ao meu pensamento, sem evolução entre suas manifestações. Na verdade, estou perplexo com essa barbárie.
ResponderExcluirVc disse com propriedade que o desaparecimento dela PRECISA uma finalidade, a de nos conscientizar de que a canalização da nossa violência imanente nos torna superiores à nossa natural brutalidade.
Esse ciclo se iniciou com Jesus e seu sacrifício. Mas o que percebo é que o exemplo Dele ainda precisa se reproduzir a cada geração de novos humanos, apesar da força de propagação da Mensagem.
E a minha perplexidade está fundamentada em uma experiência de vida que me levou a entender, agora com 46 anos, que a natureza humana tem muito a ver com o Estrangeiro de Camus.
Guilherme, acho que a fonte dessa barbárie é a indiferença, que subjaz à necessidade de afastar o mal. É uma espécie de estágio de latência da natureza humana, adormecida no coração das feras com que convivemos.
Particularmente, de uns tempos pra cá, como editor de livros, habituei-me a trabalhar com os assuntos mais diversos entre si. E, desde 2010, estou envolvido com o segmento evangélico.
E sabe o que aprendi? Que a igreja é uma das linhas de frente, talvez a mais radical, de manipulação dessa indiferença brutal que é parte constitutiva da natureza humana.
Como no poema de Augusto dos Anjos, "o homem que mora entre feras; sente a inevitável necessidade de também ser fera", percebi que vivemos em meio a zumbis, como os de Walking dead.
E pessoas como essas precisam de QUALQUER coisa que as acorde desse sono maligno que as engolfa. São como os gólens dos judeus; criaturas sem alma que agem limitadamente e que não compartilham da luz da Criação.
Entrevistando um bispo recentemente para um livro cuja edição me foi confiada, aprendi uma lição bastante interessante. A historia de Naamã, que o profeta Eliseu mandou banhar-se no Jordão (2 Reis 5.10).
Naamã só se curou da lepra depois de se banhar sete vezes no rio mais poluído daquela localidade. Mas como pode ser isso? E aí o bispo me disse que, para se curar, é preciso conhecer sua própria natureza.
O ambiente mais infecto é justamente aquele em que circula a matéria-prima de que somos feitos bem no fundo. É no reconhecimento de nossa própria natureza que expiamos e superamos os nossos medos e ódios.
Seu raciocínio foi muito tocante para mim e motivou uma reflexão profunda acerca da nossa natureza. Só sei que o que me chamou mais atenção foi a indiferença das pessoas em relação ao sofrimento de Fabiane.
Como um grupo pode bater em alguém até a morte e não refletir sobre aquilo? É sobrepor um processo de racionalidade tortuosa sobre a situação de alguém claramente em inferioridade.
Meu amigo, a estupidez coletiva é algo assustador que mora no coração das multidões. Ela leva a atrocidades como os linchamentos e os genocídios porque acontece um curto-circuito de responsabilidades nas pessoas.
Parece que cada pessoa entende que o bom senso próprio passa a ser uma responsabilidade delegada ao próximo, e assim se cria uma rede de indiferença em que as pessoas delegam ao próximo seus limites.
E o resultado é o que vc descreveu: horror contra os milhões de cordeiros que são sacrificados um após o outro por essa mesma coletividade estúpida que, dessa vez, "bateu na porta" da Fabiane.
Gustav, este fim de semana tenho compromissos inadiáveis. Deixamos nosso reencontro no La Mole para o dia 23 ou 24?
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