"Não compreendeis que é do vosso interesse
que um só homem morra pelo povo
e não pereça a nação inteira?"
(Jo 11, 50)
No Direito, há uma pretensão de, ao se dizer a Lei, fazer justiça. Mas para que isso seja possível, já precisa ser mais que possível.
Dizer a Lei carrega a memória daquilo que já deixamos para trás, mas fazer justiça é deitar sombra por quem virá.
Dizer a Lei é o que fez Moisés no deserto, no contexto da memória do Egito e da escravidão de seu povo. Mas, dizer a Lei até os juízes no III Reich fizeram no contexto da memória da opressão e humilhação do povo alemão que se seguiram ao fim da I Guerra Mundial.
Mas, fazer justiça é o dedo de Deus sobre a areia diante de uma prostituta.
Quantas prostitutas já haviam sido lapidadas por conta da Lei mosaica, e mesmo depois também? Por que então aquela em especial? Eis o interessante: não havia nada de especial naquela, porque o dedo de Deus escreveu justiça na areia por todos nós. Porque todos nós somos ambíguos entre a figura da prostituta e da multidão que apedreja.
De certo modo, a mesma questão aparece na reunião do Sinédrio que decidiu pela perseguição a Jesus, mas, dessa vez, Deus escreveu justiça na própria carne e no sangue derramado.
Bento XVI soube bem compreender o que ali se passou, como se passa até hoje. A entrada de Jesus em Jerusalém às vésperas da Páscoa coincidia com o afluxo anual de peregrinos ao templo de Deus como a principal manifestação da identidade judaica e de coesão possível do povo judeu diante da submissão à paz, à soberania e ao direito romano naquele momento.
Mas as homenagens messiânicas à entrada de Jesus montado, sua atitude no templo reivindicando autoridade como filho de Deus (o que colocava em xeque a concepção monoteísta vigente) e a notícia que se espalhava na multidão de peregrinos - ele havia trazido Lázaro de volta à vida - arriscava transformar-se numa insurreição descontrolada seguida de uma avassaladora repressão romana. As autoridades reunidas no Sinédrio parecem conscientes da própria responsabilidade em evitar isso e avaliavam o modo que era preciso agir diante do risco real que a situação se lhes apresentava.
Quando Caifás convence as autoridades do Sinédrio de que a morte de Jesus era necessária, agiu pelo bem do povo judeu. Aqui é preciso lembrar a palavra de Jesus a seus discípulos: "Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas, não imiteis as suas ações" (Mt 23, 2-3). Este "mas" nas palavras de Jesus é significativo do que ambiguamente se encontrava nas palavras de Caifás.
Pois ele não agia somente movido pelo temor por seu povo, mas na afirmação de sua própria autoridade e no desejo de domínio sobre a situação: um temor por si mesmo, um egoísmo que larga o outro entregue à própria sorte. Essa ambiguidade mergulha o consenso obtido por Caifás na história. 40 anos depois, aquilo que ele tanto temia pelo bem vai de fato acontecer com o próprio exercício da autoridade pelos escribas e fariseus: a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão do povo judaico por força das legiões romanas.
Conquanto a morte de Jesus vai ensejar uma nova, mais poderosa e ampla congregação num revolucionário sentido de templo: o próprio corpo humano. É uma resposta ao dizer da Lei em Caifás. No mais radical despojamento de Si mesmo (Ele, que podia conjurar as legiões celestes para afirmar Sua autoridade messiânica, não o fez). A sombra da cruz deitou-se e marcou indelevelmente o que vem a ser justiça doravante na ideia de que ali pendia Deus por amor à humanidade inteira.
Não se faz justiça contra ninguém. Não se faz justiça por muitos, nas manobras pelo consenso, nos cálculos da prática entre meios e fins, com argumentos políticos, históricos, raciais, religiosos, sociológicos ou jurídicos. Isso continua sempre sendo dizer a Lei. Mas, faz-se justiça por todos e, se algum sacrifício for necessário, que seja de si mesmo pelo outro. Faz-se justiça com verdade. Verdade de salvação.
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