domingo, 13 de abril de 2014

Dizer verdade e fazer justiça

No post anterior, afirmei que, quando a sombra da cruz deitou-se na Semana Santa, marcou indelevelmente o que vem a ser justiça doravante na ideia de que ali pendia Deus por amor à humanidade inteira.  Fez-se uma verdade: não se faz justiça contra ninguém.  Não se faz justiça por muitos, nas manobras pelo consenso, nos cálculos da prática entre meios e fins, com argumentos políticos, históricos, raciais, religiosos, sociológicos ou jurídicos. Isso continua sempre sendo dizer a Lei. Mas, faz-se justiça por todos e se algum sacrifício for necessário, que seja de si mesmo pelo outro. Verdade de salvação.

 Então, você pode fazer uma pergunta: o que é verdade?  Bem, foi essa uma  das perguntas que Pilatos efetivamente dirigiu a Jesus (Jo 18,36-38).  Ele buscava avaliar a política de Jesus para ponderar a aplicação do direito penal romano no caso: a crucificação.  Jesus havia lhe dito que seu reino não era deste mundo.  Se fosse, seus súditos teriam combatido para que Ele não fosse entregue às autoridades do templo de Jerusalém.  Jesus então propunha um enigma para Pilatos, um homem com aguçado senso prático característico nos romanos:  a realeza reivindicada não era secular.  Pois a realeza em sentido secular personifica o Estado e este se define essencialmente pelo emprego, potencial ou efetivo, da violência legitimada.  Mas, Jesus renunciava ao uso da violência, o que, para Pilatos, significava negar a própria realeza.  

Mas, Pilatos insiste com uma pergunta direta a Jesus: É Rei?  Então Jesus dá uma resposta lapidar:  "Tu o dizes: Sou Rei.  Para isso nasci e para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade."  A resposta mais confundiu do que esclareceu Pilatos:  Jesus não impunha Sua realeza e Se definiu destinado ao serviço de grandeza - a Verdade, e não, como na concepção de realeza à época, ser servido como grande.

O que é verdade?

Bento XVI desdobrou uma resposta no contexto político contemporâneo em longa carta, a Encíclica Caritas in Veritate, mas a sintetizou como um dilema com as seguintes palavras:

"A mesma pergunta é colocada também pela moderna doutrina do Estado:  pode a política assumir a verdade como categoria para a sua estrutura?  Ou deve deixar a verdade, enquanto dimensão inacessível, à subjetividade e, ao contrário, esforçar-se por conseguir estabelecer a paz e a justiça com os instrumentos disponíveis no âmbito do poder?  Dado ser impossível um consenso sobre a verdade, a política, apostando nela, não se torna porventura instrumento de certas tradições que, na realidade, não passam de formas de conservação do poder?

"Por outro lado, se a verdade nada conta, que sucede?  Então, que justiça será possível?  Não deve porventura haver critérios comuns que garantam verdadeiramente a justiça para todos, critérios esses subtraídos à arbitrariedade das opiniões mutáveis e à concentração do poder?  Não é verdade que as grandes ditaduras existiram em virtude da mentira ideológica e que só a verdade pôde trazer a libertação?

"Que é verdade?  (....) É uma pergunta muito séria, na qual está efetivamente em jogo o destino da humanidade."   

Verdade de salvação é Verbo (Lógos).  Este é o eixo do Evangelho de João:  o Verbo Se fez carne e habitou entre nós.  Isso significa uma diferença fundamental face às verdades científicas ou técnicas.  Estas são essencialmente objetivas.  Isso significa que carregam sentidos que saem para fora das palavras que as revelam, mas que ainda estão acessíveis à cognição humana pela crítica (Episteme): a faticidade e a factibilidade.

Mas, Verdade de salvação, embora tenha um sentido que transcende as palavras que O revelam (Theós), Este não é acessível à razão crítica. Esta conjuga matéria e forma. Mas, o acesso à Verdade de salvação antes é emocional: o que está além é de uma materialidade sem forma alguma (Agápê).  Em todo caso, é uma Verdade, eis que faz  a si ao dizer-se; mas, uma vez dito, já não se pode mudar sem falsear (Poiesis), pois o real já mudou com ela (Metábasis). Só pode ser ressignificada na dinâmica com outras verdades que vão sendo encontradas ao longo da história.

Mas, essa interssubjetividade singular da Verdade de salvação já demanda a humildade de deixá-la escapar de nosso próprio domínio (Egó eimí ho on - Eu sou aquele que é).  Está em nós pela contínua afetação de sua Presença (Anamnesis - traz à memória) que nos atravessa na evidência de que fomos tocados por Sua Revelação.  Mas só é assim, porque Ele esteve lá: na cruz, morrendo por um erro como os nossos.  

Assim é, então não só se trata de uma ética (ainda que se trate de um acontecimento ético), ou muito menos de uma moral (ainda que haja uma moral).  Mais, é uma questão de ser encontrado por quem Lhe chama pelo seu nome e que, como todos nós, no momento da angústia extrema, bradou o Seu abandono, tomando para Si todo o sofrimento, toda a necessidade de ajuda da humanidade inteira.     Mas, assim fez, não como um mártir, pois os mártires são necessariamente mortais: querendo ou não, vão-se os homens ao fim (ser-para-morte).  Toda força do Verbo (ao ponto de transformar a finitude de morte em esperança de plenitude vital do ser humano - a ressurreição) está na mais radical aceitação de tomar para Si a morte como doação perfeita (Graça plena):  há divindade Nele, cujo destino não poderia ser trágico, uma vez imortal e onipotente até o momento em que, por amor à humanidade, Se deixou morrer por conta de um (como todos) erro de julgamento.






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