A
narrativa aponta para o espaço aberto no
modelo oferecido por Robert Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica. Escreveu ele: "Necessário é muito mais um modelo que, por um lado, permita as
convicções comumente aceitas e os resultados de prévias discussões jurídicas e,
por outro, deixe espaço aberto para critérios de correção."[1]
Ressalvo, no entanto, que uma narrativa diz muito mais da indagação pelo justo
a ser apropriado em qualquer modelo de argumentação, que essencialmente busca
demonstrar como correto um justo mais que possível, porque real.
Neste
sentido, não é ocioso observar que a palavra teatro deriva etmologicamente da palavra teoria. Sabemos que, nos
alvores da Grécia Antiga, o teatro surgiu nas festividades de Dionísio, que
celebravam a fertilidade na sobrevivência.
No mito, Dionísio é morto, mas volta à vida. O teatro marca
originalmente a relação entre vida e sofrimento em comunidade (paixão). O teatro deriva originalmente da avalanche de
linguagem que são os mitos. Orienta-se
para a extração dos nexos de determinação do vir a ser que se destaca do
angustiante horizonte do nada que vem
a ser a indistinção do todo, esse
desconhecido.
Na
orgia dionisíaca, a comunidade se mostra no esquecimento transitório das noções
de tempo e espaço individuais pelos ritos num transe coletivo que celebra o
sofrimento na morte e a vida que sobrevêm.
Com o teatro, a narrativa trágica passa a encenar repetidamente então
não mais o sofrimento e a sobrevida de
um deus, mas de seres humanos especiais - os heróis, os semideuses, no momento
em que a política grega e em especial a democracia ateniense alcança o seu
apogeu e enfatiza o aparecimento do espaço público em sua intersubjetividade. Pelas suas virtudes, o herói permanece nas
narrativas trágicas sobrevivente na
memória comunitária de suas realizações. E perpetua-se em seus filhos na variante mais
alegre das comédias (por essa origem, a sexualidade é ainda em grande medida a
matéria-prima delas).
O
teatro então surge como tal, quando se apropria dos elementos miméticos
(representações) do mito de Dionísio para criar representações vivas do
comportamento humano a partir da poética.
O teatro aí faz aparecer o espectador, aquele que, em comunidade,
contempla em afastamento reflexivo [theorein]
o que é encenado, é narrado; conquanto nos ritos dionisíacos isso não acontece,
na medida em que não aparece esse afastamento na participação orgiástica.
A
determinação do vir a ser aparece na glorificação da morte do herói em toda
narrativa trágica clássica. O desafio
proposto ao herói na tragédia é oportunidade de revelação de virtudes humanas
por entre desmedidas de suas ações (e medidas designadas pelos deuses em suas
interações) que não são predeterminadas, eis que só são mostradas no desenlace
trágico que a narrativa encaminha.
A
singularidade do teatro está na ambiguidade imediata do espectador, que não se
afasta totalmente na antecipação do que acontecerá na medida em que já espera o
desenlace trágico, pois ainda está próximo o suficiente para ser atravessado
pelo sofrimento dos heróis trágicos. Então,
a essência do teatro é a mimese.
Mimese
é a verossimilhança das ações humanas representadas. Não o que é, mas o que pode vir a ser ou
acontecer (recorrendo ao uso da ilusão e imaginação, e não da imitação). Na narrativa trágica, a mimese faz aparecer o
universal da humanidade na comunhão dos sentimentos de terror e piedade entre
os espectadores e os personagens. Essa
comunhão acontece na injunção (conexão) das ações narradas (intriga, enredamento)
que com ele o texto narrativo revela suas qualidades. O texto dramático então é literário e também
performático, daí que o texto narrado não é só poesia, mas já carrega uma
preocupação cênica, de contexto material, seu suporte fático. Tal integração já
leva a pensar constantemente nas questões que ligam a arte dramática à vida,
seja num contexto pedagógico, seja num contexto antropológico, seja no contexto
do entretenimento.
De
certo modo, o desenvolvimento do teatro a partir das orgias dionisíacas e das tragédias
clássicas para a manifestação cultural como a conhecemos revela o prazer como finalidade[2] e
sugere que a teoria originalmente não aponta para uma neutralidade do
conhecimento, um sobrevôo da consciência por sobre a transcendência, uma
pretensão efetivamente moderna derivada da matematização da natureza. Mas, aponta para a felicidade como perfeição
e esta como polo finalístico existencial do ser humano, que a filosofia aristotélica
já apresentava como realização plena da autossuficiência do pensar [Theós] num compromisso político de fazer
justiça.
Na
medida em que a culminação metodológica e sobretudo a tecnológica a tenha
esquecido, quiçá até por isso, é importante (re)lembrar que a abertura para o
vir a ser só acontece na medida em que se torna dizível na narrativa, de novo,
essa integridade existencial, que é eminentemente ética, e não estética,
política ou mesmo ontológica, da qual, de certo modo, derivam.
Tomando
como primeira referência as proposições de Aristóteles sobre a tragédia, Paul
Ricoeur propõe que a narrativa (e não o processo ou o sistema) se configure
como a representação da ação.[3] Que só é verossímel, na medida em que
reconhece a pré-figuração do agir humano com sua linguagem, simbologia e
história (donde surge o processo e o sistema no pensamento vigente em
predominância da técnica e da política no fazer). Mas,
mais do que isso, no compadecer-se e no abismar-se, é vivência da
verossimilhança, pois é aberta para a emergência de múltiplos sentidos como
verdade. Dar sentido ao mundo e permitir
a emergência de outros sentidos a esse mesmo mundo é vivência realizada por
mimese, o que estabelece o círculo
hermenêutico. Isto é, não somente pela razão em si do que
seja verdade o que permite ao mundo prefigurado a sua ressignificação, ato
essencialmente interpretativo.
Enfim, a narrativa é um modo privilegiado de
compreensão do mundo. Corresponde tanto
ao que Hans Geörg Gadamer chama de aplicação
como ao que Aristóteles chama de mimese
praxeôs. Ao representar a piedade e
o horror, a narrativa trágica propõe a possível inversão da sorte na tragédia,
com o que o espectador/leitor volta a encontrar o início da mimese, mas não ao
seu estado inicial, numa interseção do mundo da narrativa e do mundo do
espectador/leitor, numa ação hermenêutica efetiva e sua específica
temporalidade. Enfim, a mimese, convoca
o espectador/leitor da narrativa a integrar-se na trama. Nem em sobrevôo, nem como participante, mas
como quem exerce o papel de refiguração do mundo, tornando completo o círculo
hermenêutico.
[1] Trad.
Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo
: Landy, p. 25.
[2] VEIGA,
Guilherme. Teatro e teoria na Grécia
antiga. Brasília: Thesaurus, 2008
[3] RICOUER,
Paul. Tempo e Narrativa. Vol.
1. São Paulo : Martins Fontes, 2010.
foto 2: hamiltonborges.blogspot.com.br
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