sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A mãe, a juíza e os miseráveis

Um rapaz de 15 anos, cuja foto, negro, nu e preso pelo pescoço num poste do Flamengo varou o mundo na velocidade da internet assim protagonizou o velho debate entre (falta de) justiça e justiçamento e se fez presente nos lares,  nas conversas entre amigos, nas páginas por aí.

Para uns, sua humilhação era uma solução de autodefesa de uma comunidade que não se quer refém de ladrões.  Para outros, um problema maior ainda para uma comunidade que valorize a democracia.  E, entre uns e outros, permanecia a incômoda e incontornável remissão da imagem ao nosso passado negreiro.  Pois é isso que nossa cidade já foi: Rio de Janeiro, o maior porto negreiro do mundo.  

Mas, como ficção, a cena seguinte foi essa com a qual amanhecemos estampada em todos os jornais. O rapaz foi pego roubando um inglês em Copacabana.

Raquel é juíza.  Eu já muito a admirei.  Quando ela ainda era estudante de direito.  E eu, calouro na faculdade.  Ela, líder do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira.  E eu desejava uma revolta nas ruas.  Ela era para mim uma heroína.  

Passados 20 anos, há 20 dias atrás, ela, com a foto em seus dedos, lançou um desafio no ar:  cola seu rosto nesse rosto e vê o que vê.  E eu, depois desse tempo sem me fazer visível a ela, topei o desafio.  E lhe disse:  

"Coloco meu rosto onde indicado. Mas, vou além e também coloco meu rosto sob as mãos desse alguém. E pergunto a mim e a você: esse alguém pode ser redimido como o Jean Valjean em sua absoluta marginalidade? E como o Bispo Myriel, ou como o Agnus Dei a me oferecer alegremente aos esculachos que acontecem diariamente no Aterro do Flamengo? Em todo caso, ao aceitar sua proposta, já não sou eu quem vivo, mas alguém que vive em mim. Então, sua proposta não pode guardar uma resposta, pois permanece a pergunta: quem sou eu? Mas, já posso lhe fazer uma provocação: o humanismo de seu discurso está para a humanidade, como o realismo está para a realidade".

Ao que ela me replicou:  "Sou das que tentam mudar a realidade - cheia de pseudo realismos (de classe)".

Adriana é mãe.  Mas, não é uma mãe qualquer.  Afinal de contas, são 3 filhos cuidados com todas as exigências e responsabilidades legais, morais e performáticas a que se atribuem às mães hoje em dia.   Ah, não é daquelas que delegam às babás e um batalhão de profissionais. Não é mãe-empresa.  É mãe-mãe. Ela chama tudo isso para si e mata no peito um grito do ego.  Sei disso, porque sou pai de 3.  E tenho orgulho de minha esposa.  Ela também chama para si e mata esse grito todo dia.    Ainda admiro ela, mas a juíza Raquel já não é mais  minha heroína, isso foi ilusão de juventude.  A heroína da minha estória é a mãe de meus 3 filhos.  E a Adriana, ó, não fica atrás, não... São heroínas que se socorrem na porta da escola todo dia: quem cuida de 3 filhos com a dedicação integral da própria vida pode até errar, se escabelar, mas realiza  para melhor o real.  Já são aí 6 pessoas que se lembrarão da devoção de Helenas como memória de si mesmas.   Helenas de um povo real.  Sem realismos, pois não há tempo para elaborarem um propósito narrativo para si.  É pura ação, as crianças estão ali, o supermercado para ir, o telefone toca, maldita vontade de ir ao banheiro, gente buzinando enlouquecida.  Outros que narrem.



E 20 dias depois, diante da notícia de recolhimento do rapaz em flagrante delito, agora de acordo com o devido procedimento legal, não é que a Adriana me lança um desafio inverso ao da Raquel?!


"Ué, achei que aquele poste redentor e aquela tranca de bicicleta tinham resolvido tudo! Poxa, por que será que não funcionou, né?"

Eu topo o desafio.

Mário Quintana, em dois versos, disse que respostas não importam.  O essencial está nas perguntas.  

As perguntas essenciais aí...  ainda inspirado em Os Miseráveis, penso que sejam essas, pois se voltam para mim, para o ladrão, para você e para os justiceiros do Flamengo:  há redenção para nós?  Redenção é uma questão de mérito?  Ou de punição?  Ou é de misericórdia?  

Qualquer que seja a resposta, cuidado para não nos tornarmos céticos, ainda que honestos. Como o inspetor Javert é convincente: neste caso, a única resposta honrosa não é o assassinato, nem mesmo a prisão.  É o suicídio.

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