quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Um Carnaval bom para todos

Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes o desejar bebida forte;
Para que bebendo, se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos.
Dai bebida forte aos que perecem e vinho, aos amargurados de espírito;
para que bebam e se esqueçam da sua pobreza, e de suas fadigas não se lebrem mais.
Abre a tua boca a favor do mudo, pela causa de todos que são designados à destruição.
Abre a tua boca; julga retamente; e faze justiça aos pobres e aos necessitados.

Provérbios 31:4-9




O Carnaval nos convida a pensar sobre os riscos de um pensamento que decomponha a pessoa e oponha o espírito ao corpo; a cultura à compreensão imediata da alteridade. Pois, perigamos esvaziar a poesia da verdade.  E por riso, enunciar uma condenação. 

É claro o carnaval não deve ser desculpa para o cultivo da intemperança.  Mas, tampouco há boa teologia ao se condenar foliões por serem foliões.

Entre o carnaval e o Cristo há uma relação rica.  O carnaval é uma festa em que o nosso olhar se defronta com a marginalidade, o travestimento e a transgressão.  Mas, de certo modo, Cristo já em seu nascimento, indicou que o nosso olhar a isso se volte.  Ao ser o Filho do Pai de todos, de certo modo, é um bastardo.  A crucificação, pena infamante, é o sinal confirmador que nosso olhar precisa se sustentar à face do bastardo, do transgressor, do marginal, do travesti.   Há, nesse olhar, quando carregado de benevolência e bonomia, a possibilidade de redenção.

O espírito de Cristo pode ser encontrado nesse velho samba de um carnaval passado: 

Minha embaixada chegou
Deixa meu povo passar
Meu povo pede licença
Pra na batucada desacatar
Vem vadiar no meu cordão
Cai na folia meu amor
Vem esquecer tua tristeza
Mentindo à natureza
Sorrindo à tua dor

Afinal, escreveu São Paulo na epístola aos Colossenses:

Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; porque Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade;

Também ele escreveu:

Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo.

E arremata, definitivo:

Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão.


Um carnaval bom para todos !

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A mãe, a juíza e os miseráveis

Um rapaz de 15 anos, cuja foto, negro, nu e preso pelo pescoço num poste do Flamengo varou o mundo na velocidade da internet assim protagonizou o velho debate entre (falta de) justiça e justiçamento e se fez presente nos lares,  nas conversas entre amigos, nas páginas por aí.

Para uns, sua humilhação era uma solução de autodefesa de uma comunidade que não se quer refém de ladrões.  Para outros, um problema maior ainda para uma comunidade que valorize a democracia.  E, entre uns e outros, permanecia a incômoda e incontornável remissão da imagem ao nosso passado negreiro.  Pois é isso que nossa cidade já foi: Rio de Janeiro, o maior porto negreiro do mundo.  

Mas, como ficção, a cena seguinte foi essa com a qual amanhecemos estampada em todos os jornais. O rapaz foi pego roubando um inglês em Copacabana.

Raquel é juíza.  Eu já muito a admirei.  Quando ela ainda era estudante de direito.  E eu, calouro na faculdade.  Ela, líder do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira.  E eu desejava uma revolta nas ruas.  Ela era para mim uma heroína.  

Passados 20 anos, há 20 dias atrás, ela, com a foto em seus dedos, lançou um desafio no ar:  cola seu rosto nesse rosto e vê o que vê.  E eu, depois desse tempo sem me fazer visível a ela, topei o desafio.  E lhe disse:  

"Coloco meu rosto onde indicado. Mas, vou além e também coloco meu rosto sob as mãos desse alguém. E pergunto a mim e a você: esse alguém pode ser redimido como o Jean Valjean em sua absoluta marginalidade? E como o Bispo Myriel, ou como o Agnus Dei a me oferecer alegremente aos esculachos que acontecem diariamente no Aterro do Flamengo? Em todo caso, ao aceitar sua proposta, já não sou eu quem vivo, mas alguém que vive em mim. Então, sua proposta não pode guardar uma resposta, pois permanece a pergunta: quem sou eu? Mas, já posso lhe fazer uma provocação: o humanismo de seu discurso está para a humanidade, como o realismo está para a realidade".

Ao que ela me replicou:  "Sou das que tentam mudar a realidade - cheia de pseudo realismos (de classe)".

Adriana é mãe.  Mas, não é uma mãe qualquer.  Afinal de contas, são 3 filhos cuidados com todas as exigências e responsabilidades legais, morais e performáticas a que se atribuem às mães hoje em dia.   Ah, não é daquelas que delegam às babás e um batalhão de profissionais. Não é mãe-empresa.  É mãe-mãe. Ela chama tudo isso para si e mata no peito um grito do ego.  Sei disso, porque sou pai de 3.  E tenho orgulho de minha esposa.  Ela também chama para si e mata esse grito todo dia.    Ainda admiro ela, mas a juíza Raquel já não é mais  minha heroína, isso foi ilusão de juventude.  A heroína da minha estória é a mãe de meus 3 filhos.  E a Adriana, ó, não fica atrás, não... São heroínas que se socorrem na porta da escola todo dia: quem cuida de 3 filhos com a dedicação integral da própria vida pode até errar, se escabelar, mas realiza  para melhor o real.  Já são aí 6 pessoas que se lembrarão da devoção de Helenas como memória de si mesmas.   Helenas de um povo real.  Sem realismos, pois não há tempo para elaborarem um propósito narrativo para si.  É pura ação, as crianças estão ali, o supermercado para ir, o telefone toca, maldita vontade de ir ao banheiro, gente buzinando enlouquecida.  Outros que narrem.



E 20 dias depois, diante da notícia de recolhimento do rapaz em flagrante delito, agora de acordo com o devido procedimento legal, não é que a Adriana me lança um desafio inverso ao da Raquel?!


"Ué, achei que aquele poste redentor e aquela tranca de bicicleta tinham resolvido tudo! Poxa, por que será que não funcionou, né?"

Eu topo o desafio.

Mário Quintana, em dois versos, disse que respostas não importam.  O essencial está nas perguntas.  

As perguntas essenciais aí...  ainda inspirado em Os Miseráveis, penso que sejam essas, pois se voltam para mim, para o ladrão, para você e para os justiceiros do Flamengo:  há redenção para nós?  Redenção é uma questão de mérito?  Ou de punição?  Ou é de misericórdia?  

Qualquer que seja a resposta, cuidado para não nos tornarmos céticos, ainda que honestos. Como o inspetor Javert é convincente: neste caso, a única resposta honrosa não é o assassinato, nem mesmo a prisão.  É o suicídio.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Santiago e eu

Num Sonho de Liberdade, há uma cena pungente em que um presidiário, após muitos anos recluso, sai em liberdade condicional. E, desesperadamente perdido no nada que sua liberdade abria para si, se suicida.

Quando é atraída nossa atenção para algo ou para alguém, este para  já nos atravessa e nos mergulha na história.  Assim,  água é água para nossa sede.  Não é solvente das bulas de remédios que estão no nosso banheiro, mas aquilo que molhará nossa garganta, quando nos dirigimos à geladeira.  E é nosso desafio, quando estamos no bloco à beira da piscina esperando o tiro de largada para uma tomada de tempo.   Assim, a identidade de alguém na história carrega sempre um para si.  Somos sedentos, competidores para sermos quem somos.  

Na integridade dos esquecimentos e lembranças que se enredam para tornar mundo como nós o expressamos, a água não toma decisões ou faz escolhas nem cria situações. Então, o jogo de ser e não ser em meio a esses esquecimentos e lembranças não lhe importam em ser aí.  Permanece sempre como que.  Aí, só nós há como quem.

Na morte do cinegrafista, as múltiplas possibilidades do vir a ser dos diversos personagens tecem intrigas que se nos apresentam.  Interessa a mim a diferença dos possíveis:  agentes provocadores infiltrados por milicianos ou militantes irresponsáveis povoam as diferentes versões para um acontecimento trágico. 

Muito menos me interessa o que diferentes hipóteses e teorias supõem do que aconteceu ou que as provas a serem produzidas pressionarão para a prevalência de uma em relação a outras.  Afinal, não sou relator de nada do episódio.  Porém, a verossimilhança dessas diferentes hipóteses já  dizem muito do que está acontecendo em nossa cidade e podem já nos dizer quem somos como cidadãos ao tendermos a essa ou aquela resposta.

O que há de comum entre as versões que distribuem responsabilidades a torto e a direito?  A violência como meio, recurso.  É água em vagalhão que nos apavora ou nela surfamos de braçada.  O que aproxima milicianos, militantes e oportunistas em geral é essa disposição de se identificarem como quem nada de braçada  num empoderamento da história de nossa cidade.


E eu nisso? Bem, eu, um não-tempo que torna dizível o que é dito no tempo, prefiro lembrar que miséria,  descontentamento e qualquer razão já são para-si.  

Bem aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Justiça e Teatro na Democracia

A narrativa aponta para o espaço aberto no modelo oferecido por Robert Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica.  Escreveu ele: "Necessário é muito mais um modelo que, por um lado, permita as convicções comumente aceitas e os resultados de prévias discussões jurídicas e, por outro, deixe espaço aberto para critérios de correção."[1] Ressalvo, no entanto, que uma narrativa diz muito mais da indagação pelo justo a ser apropriado em qualquer modelo de argumentação, que essencialmente busca demonstrar como correto um justo mais que possível, porque real.

Neste sentido, não é ocioso observar que a palavra teatro deriva etmologicamente da palavra teoria.  Sabemos que, nos alvores da Grécia Antiga, o teatro surgiu nas festividades de Dionísio, que celebravam a fertilidade na sobrevivência.  No mito, Dionísio é morto, mas volta à vida. O teatro marca originalmente a relação entre vida e sofrimento em comunidade (paixão).  O teatro deriva originalmente da avalanche de linguagem que são os mitos.  Orienta-se para a extração dos nexos de determinação do vir a ser que se destaca do angustiante horizonte do nada que vem a ser a indistinção do todo, esse desconhecido.

Na orgia dionisíaca, a comunidade se mostra no esquecimento transitório das noções de tempo e espaço individuais pelos ritos num transe coletivo que celebra o sofrimento na morte e a vida que sobrevêm.  Com o teatro, a narrativa trágica passa a encenar repetidamente então não mais  o sofrimento e a sobrevida de um deus, mas de seres humanos especiais - os heróis, os semideuses, no momento em que a política grega e em especial a democracia ateniense alcança o seu apogeu e enfatiza o aparecimento do espaço público em sua intersubjetividade.  Pelas suas virtudes, o herói permanece nas narrativas trágicas  sobrevivente na memória comunitária  de suas realizações.  E perpetua-se em seus filhos na variante mais alegre das comédias (por essa origem, a sexualidade é ainda em grande medida a matéria-prima delas).

O teatro então surge como tal, quando se apropria dos elementos miméticos (representações) do mito de Dionísio para criar representações vivas do comportamento humano a partir da poética.  O teatro aí faz aparecer o espectador, aquele que, em comunidade, contempla em afastamento reflexivo [theorein] o que é encenado, é narrado; conquanto nos ritos dionisíacos isso não acontece, na medida em que não aparece esse afastamento na participação orgiástica.

A determinação do vir a ser aparece na glorificação da morte do herói em toda narrativa trágica clássica.  O desafio proposto ao herói na tragédia é oportunidade de revelação de virtudes humanas por entre desmedidas de suas ações (e medidas designadas pelos deuses em suas interações) que não são predeterminadas, eis que só são mostradas no desenlace trágico que a narrativa encaminha. 

A singularidade do teatro está na ambiguidade imediata do espectador, que não se afasta totalmente na antecipação do que acontecerá na medida em que já espera o desenlace trágico, pois ainda está próximo o suficiente para ser atravessado pelo sofrimento dos heróis trágicos.   Então, a essência do teatro é a mimese.

Mimese é a verossimilhança das ações humanas representadas.  Não o que é, mas o que pode vir a ser ou acontecer (recorrendo ao uso da ilusão e imaginação, e não da imitação).  Na narrativa trágica, a mimese faz aparecer o universal da humanidade na comunhão dos sentimentos de terror e piedade entre os espectadores e os personagens.  Essa comunhão acontece na injunção (conexão) das ações narradas (intriga, enredamento) que com ele o texto narrativo revela suas qualidades.  O texto dramático então é literário e também performático, daí que o texto narrado não é só poesia, mas já carrega uma preocupação cênica, de contexto material, seu suporte fático. Tal integração já leva a pensar constantemente nas questões que ligam a arte dramática à vida, seja num contexto pedagógico, seja num contexto antropológico, seja no contexto do entretenimento.

De certo modo, o desenvolvimento do teatro a partir das orgias dionisíacas e das tragédias clássicas para a manifestação cultural como a conhecemos revela o prazer como finalidade[2] e sugere que a teoria originalmente não aponta para uma neutralidade do conhecimento, um sobrevôo da consciência por sobre a transcendência, uma pretensão efetivamente moderna derivada da matematização da natureza.  Mas, aponta para a felicidade como perfeição e esta como polo finalístico existencial do ser humano, que a filosofia aristotélica já apresentava como realização plena da autossuficiência do pensar [Theós] num compromisso político de fazer justiça. 

Na medida em que a culminação metodológica e sobretudo a tecnológica a tenha esquecido, quiçá até por isso, é importante (re)lembrar que a abertura para o vir a ser só acontece na medida em que se torna dizível na narrativa, de novo, essa integridade existencial, que é eminentemente ética, e não estética, política ou mesmo ontológica, da qual, de certo modo, derivam.

Tomando como primeira referência as proposições de Aristóteles sobre a tragédia, Paul Ricoeur propõe que a narrativa (e não o processo ou o sistema) se configure como a representação da ação.[3]  Que só é verossímel, na medida em que reconhece a pré-figuração do agir humano com sua linguagem, simbologia e história (donde surge o processo e o sistema no pensamento vigente em predominância da técnica e da política no fazer).  Mas, mais do que isso, no compadecer-se e no abismar-se, é vivência da verossimilhança, pois é aberta para a emergência de múltiplos sentidos como verdade.  Dar sentido ao mundo e permitir a emergência de outros sentidos a esse mesmo mundo é vivência realizada por mimese, o que estabelece o círculo hermenêutico.  Isto é, não somente pela razão em si do que seja verdade o que permite ao mundo prefigurado a sua ressignificação, ato essencialmente interpretativo. 

Enfim, a narrativa é um modo privilegiado de compreensão do mundo.  Corresponde tanto ao que Hans Geörg Gadamer chama de aplicação como ao que Aristóteles chama de mimese praxeôs.  Ao representar a piedade e o horror, a narrativa trágica propõe a possível inversão da sorte na tragédia, com o que o espectador/leitor volta a encontrar o início da mimese, mas não ao seu estado inicial, numa interseção do mundo da narrativa e do mundo do espectador/leitor, numa ação hermenêutica efetiva e sua específica temporalidade.  Enfim, a mimese, convoca o espectador/leitor da narrativa a integrar-se na trama.  Nem em sobrevôo, nem como participante, mas como quem exerce o papel de refiguração do mundo, tornando completo o círculo hermenêutico.




[1] Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva.  São Paulo : Landy, p. 25.
[2] VEIGA, Guilherme. Teatro e teoria na Grécia antiga. Brasília: Thesaurus, 2008
[3] RICOUER, Paul.  Tempo e Narrativa.  Vol. 1.  São Paulo : Martins Fontes, 2010. 
foto 2: hamiltonborges.blogspot.com.br
foto 3: viuvanegraromero.blogspot.com.br
foto 5: www.mythindex.com

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Selecionado para o Congresso Brasil-Alemanha de Teoria do Direito e Direito Constitucional:

O Professor Robert Alexy vai a Belo Horizonte semana que vem.  Tive a minha investigação da Lei 12.690/2012 selecionada para apresentação no Congresso:  Verdade nas Cooperativas de Trabalho.