sábado, 30 de novembro de 2013

O aí ao ler um livro

Um romance.  Era o que havia em minha frente.  Descobrira-me leitor.  Melhor dizer, fora descoberto.  Já que o autor da ficção me pediu uma leitura antes de terminá-la.  

Ler um livro cujo autor lhe é próximo como uma encarnação visceral, que almoça contigo, lhe fala um pouco de tudo e ri com você é uma experiência emocionante.  Diz tanto dele que só pode ter sido escrito para mim.  

Em nenhuma leitura tive tão nítida essa sensação de entrada num texto - uma necessidade hermenêutica sem a qual não sou um leitor na plenitude da expressão.  Pois ler um livro não é apenas ler seus parágrafos, mas ouvir a eloquência de seus silêncios.  

Meu amigo havia seguido uma indicação minha e está cursando sobre Heidegger com o Gilvan Vogel.  Peguei o livro e as páginas começam a me dizer um texto muito diferente das minhas expectativas.  Um romance sem personagens: eram partes de um projeto discursivo. 

Senti-me traído. Incomodado, mas ainda com boa vontade, insisti. Vivenciar a abertura afetiva à alteridade: gostar de gostar.  Intrigado por uma passagem do livro, na qual aparece Machado de Assis magistral, como, embatuquei eu durante dois dias inteiros, o protagonista pode ser tamanha negação de Machado, já que ele é planície?  E então eis que me veio o sopro:  Ele tem a profundidade de um espelho!

 
Mais duas madrugadas mal dormidas e o livro estava todinho lido.  Como nunca tinha lido um romance.  Sabia dele.  Estava pronto para ajudar meu amigo a terminá-lo.

Não entrei no texto enquanto impus um contexto.  Esperava e queria um quadro a óleo como um fim em si mesmo.  Mas, o livro abriu-se para mim, quando me abandonei por ele: descobri uma série de aquarelas para colorir e e emoldurar o discurso que meu amigo expressa em seu texto.  

aí, antes mesmo de dizer o ser,  já justificou; pois vem a ser lugar de comunhão.

domingo, 17 de novembro de 2013

Rosane, o STF e os brasileiros pardos

Rosane é minha amiga.  Apresentou-me seus pais, seus irmãos.  Li dela algumas páginas de drama.  Outras, divertidas.  Melhor, várias dessas, nas quais me incluo, às vezes, como personagem.   Conheci alguns de seus amores.  Ou, deveria dizer ilusões?  Enfim, Rosane é quem já não cabe em nenhum que para mim.  


Ela outro dia lembrou-se de mim. Compartilhou pelo facebook um post de Liam O'Ceallaigh sobre o Rei Leopoldo II com o pouco sutil título: 


Quando você mata dez milhões de africanos, não é taxado de "Hitler".

Veio este comentário dela:

Esta semana tive uma aula sobre colonialismo aqui na Holanda.. é impressionante como podemos ter visões diferentes sobre o mesmo fato..O livo da semana foi Sarah Tornhill da Kate Grenville ..livro ótimo que você pode ler como só uma história de amor açucarada ou perceber a crítica da autora em relação ao colonialismo e em como se extermina uma cultura..Aqui, em muitos livros, os colonizadores são tratados como desbravadores..tratar colonialismo aqui é tensão na sala de aula... ouvi coisas como:" A África deveria agradecer a chance de conhecer gente civilizada", " Os brancos realmente eram superiores"," Explorar as riquezas foi uma forma de recompensar todo o esforço que fizemos", " Podem falar agora que foi errado,mas a Holanda não seria o país que é hoje sem os nossos bravos desbravadores".........em uma sala de aula com a maior parte dos alunos com doutorado....Isso que é agregar valor rs,rss,rs....um abraço e bom final de semana!!!!!!!!!! 

Expus-me:  Em situações assim é bom para o coração lembrar a oração de S. Francisco: "que eu procure mais compreender que ser compreendido".  Em jogo na fala em sala está a empresa (mobilização de recursos, coordendação de esforços e instrumentalização da técnica) na conquista de objetivos, o que retrai os muitos significados da exploração dos seus frutos.  Na realização do real, entre a conquista dos objetivos e a exploração dos seus frutos, um impasse ético se manifestou em violência racial.  Eu me pergunto: que me adianta acusar holandeses  por terem inventado a Companhia das Indias, com todo o seu pacote de perversidades embrulhado?  Talvez seja melhor me perguntar com que posso contribuir para que doravante o destino dos que ainda vivem não seja como o de quem tombou pela violência racial.

E veio de quem não conheço, curto e direto:  ... só podia ser um Krueger.

Eu só posso ser quem sou.  Mas, sou ambíguo entre o que isso faz de mim e o que eu faço disso no devir.  

Ultimamente venho pensando muito na passagem bíblica de Jacó, que veio a se chamar Israel.  Era um grande general. Mas, se envolveu numa luta corporal extenuante.  Ao raiar do dia, descobre que seu oponente é Deus.  Isso diz muito do que seja lutar por dias melhores.

Humanidade é abismo entre poder realizar e conseguir (seguir-com) realizar.  Nesse abismo, desceu Lucifer.  

Como lidar com a revolta?  Na narrativa bíblica, a Sarça Ardente dá uma pista, ao dizer-se: Sou aquele que Sou.  Já não é um deus que se deixe dominar pela invocação, mas Verbo que nos chama pelo nosso nome.  

Na narrativa, todos a que o Verbo convoca, respondem.  Mas, as respostas têm um porém... um medo, uma fuga ou erro, uma fraqueza, uma dúvida... Em todo caso, essas respostas gestam uma perfeição a ser alcançada na condensação do Verbo em carne e sangue com uma moça que o acolherá em seu ventre como seu Filho.  

É irônico como a insistência no branco e no negro trai o ressentimento pela obsessão na coerência do raciocínio demonstrativo do que seja verdadeiro.  Isso é tão tipicamente moderno e europeu... classificatório e categórico.  Ora, essa luz meridiana, por ausência de sombras, cega tanto quanto a noite sem luar.

Mas, é no abrasileiramento e no entardecer, quando não só gatos, mas todos os homens são pardos, podemos enxergar melhor pelo jogo de sombras e luzes que se projetam. Como no mito da caverna. 

O poente é justiça tardia.  

Os Josés, Dirceu e Genoíno, tiveram anos para compreender o dilema do STF entre a cordialidade e o cinismo.  Uma Corte aprisionada entre a certeza de que bons advogados fazem diferença na administração da justiça e a constatação de que eles aprofundam o fosso da desigualdade, quando só pobres e pretos vão para a prisão.  

Esses Josés tiveram ambições políticas vorazes e por elas foram tragados.  Mas, este país em que quase nada acontece é esconderijo de um tesouro ético ainda por encontrar.  Bem aventurados os pardos brasileiros.

Esses Josés ironicamente se entregaram e um mito sobre justiça está sendo reescrito.  Nem só pobres e pretos vão presos.  Por outro lado, o apetite por poder que tiveram, quando se volta contra os próprios esfomeados, costuma aterrorizar, torturar, exilar, matar.  No Brasil em que quase nada acontece, agora lhes custou prisão em regime semiaberto.  

Tudo considerado, podia ser pior.  Bem pior.  Pensa no Egito.  Na Venezuela.  Deus me livre.


imagem 1 www.walkingbutterfly.com
imagem 2  detalhe de Jacob and the angel, de Jacob Epstein [1975] Cripta da Catedral de                          Liverpool.
imagem 3  oglobo.globo.com

sábado, 16 de novembro de 2013

A gula e a luxúria

Beije-me com os beijos de sua boca!  Seus amores são melhores do que o vinho 
(Cântico dos Cânticos, Capítulo 1:versículo 2)
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele. 
(João, 6:56)


Homens são condicionados pela natureza, mas o espírito ultrapassa a natureza e constitui a cultura.

Os homens vivem. E qual é o existencial comum a todo ser vivo? É a mortalidade. 

Mas, um sentido para morte, somos nós que damos.  Aos bichos não é dada essa liberdade. Até sentem dor; sentem medo. Mas não legam sentidos a essas sensações, o que requer valoração. Humanidade.



Comer é uma atividade vital. Todas as ações vitais, como comer, fazer sexo, respirar são brutais, dizem da vida.  Renunciar à possibilidade de comer carne por  valorar a morte é algo espiritual em sentido lato, mais que religioso. É sobrenatural.


Se existe uma desvalorização de atos brutais praticados para simplesmente satisfazerem sensações, tanta relevância ética então tem a prática de sexo só por prazer, por exemplo, porque isso afeta diretamente a relação com outra pessoa.   Pode o prazer ser recíproco e consensual, porém ainda assim será uma objetificação do corpo como meio para alcançar um fim, conquanto o corpo humano, como campo fenomênico da vida pessoal, já atrai para si a dignidade para além da reciprocidade e do consenso.

Uma dieta se legitima pela perspectiva do comedimento em exercício.  Prefiro a moral que restringe (mas não impede) o consumo da carne e define a gula como o mal. Bem como restringe e não impede o sexo por prazer, mas define a luxúria como o mal.




imagem 1: filme Sétimo Selo, de Ingmar Bergman (1956)
imagem 3: Wacław Wantuch.  www.waclawwantuch.com/
imagem 4: www.literaturaemfoco.com

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Macaco que se sabe macaco é alguém?

  


Os debates acalorados sobre bioética nos últimos dias me deram vontade de rever Planeta dos Macacos: a Origem (2011).

Intrigou-me atentar que alguns dos mais ardorosos defensores de argumentos contra testes em animais antes se solidarizaram com os que tinham pressa nos avanços que a indústria prometera durante o mais célebre julgamento do STF envolvendo bioética, que ocorreu em 2008, com o qual restou liberado o uso de embriões humanos (células-tronco embrionárias) em pesquisas. E desqualificavam como obscuros os argumentos contrários.


O filme não privilegia a violência catártica com um recheio generoso de seqüências de ação.  Em grande medida, é um drama psicológico: o argumento é a descoberta de si mesmo por um macaco.

À guisa de recurso narrativo, o argumento se apropria do “ainda não” que diz promissores, mas ainda inconclusivos, os avanços tecnológicos no âmbito das neurociências e da biomedicina: o desenvolvimento de uma vacina para o mal de Parkinson.  No roteiro, chimpanzés são utilizados nos experimentos com um vírus geneticamente modificado. Temos aí os ingredientes para a revolta dos macacos.

O argumento parte então da questão do corpo como limiar entre pessoa e mundo.  O corpo evidencia que nada nos separa do mundo, mas paradoxalmente entre pessoa e mundo há um abismo: animais são mundo, mas só pessoas não se confundem com o mundo - pessoas têm potência para se perceberem destacadas do mundo e isso acontece ao atribuírem um sentido textual para si mesmas, para outrem e para as coisas além da pura e simples vivência: a sobrevivência ou sucumbência (sentido de transitoriedade): conhecer, lembrar e imaginar como saber.   A resposta mais tradicional para essa questão existencial adota por pressuposta a transcendência expressa na decomposição de si e do mundo entre corpo e espírito.  Ainda que a leitura seja a busca de uma misteriosa ou silenciosa unidade perdida.

O roteiro do filme até que ia bem: “não confie em chimpanzés”.  A fala da mocinha, uma zoóloga, indicava a questão fundamental que prometia ser explorada.  Um chimpanzé transgênico apresentava uma inteligência que superava até mesmo a dos humanos.  Inteligência aí revelada por tomada de decisões estratégicas, táticas e operacionais logicamente adequadas a cada situação (mundo) que se lhe apresentavam.  Mas, humanidade transcende a inteligência.  Isso foi insinuado pela incapacidade desse chimpanzé em compreender interdições éticas.  Isso aconteceu ao lidar com um vizinho brigão: foi incapaz de compreender que foi expulso do paraíso. Ao não conter seu próprio impulso violento, morder o vizinho e ser por isso retirado de seu habitat.

Desce o pano.  Você pode estar sorrindo agora: "Ah, e dá para confiar em humanos? Fala sério!".  


  Então, tá.  Levei 3 crianças de 10 anos para ver Thor - Mundo Sombrio ontem.  Bom, para um deus mitológico, Thor, no filme, tem a profundidade de um bidê.  Mas bons roteiristas têm os seus caprichos.  Thor cumpria uma função de folhetim. 



Toda mitologia estava concentrada em seu irmão, Loki.  E as crianças saíram para a rua gritando: "Loki, Loki, Loki!"  Intuitivamente elas captaram um sentido de ser viking:  Loki, e não Thor, no filme, merecia ascender ao trono de Odin. 

Dei uma volta, não é? É.  Mas, não me perdi.  Em casa, assisti outro filme:  O martelo dos deuses.   Este retrata a sucessão heroica de um rei viking numa ilha britânica do Séc. IX em uma dinastia decadente por carência de guerreiros.  Mesmo assim, guerreiros vikings, de tão violentos, matam entre si, enquanto os saxões cristianizados, que os cercam, são numerosos, mas são desprezados como "aqueles agricultores". 

Disso diz o mito de Asgaard. E hoje a coroa inglesa,  noves fora, com sua notável estabilidade institucional e convívio persistente com a democracia, vem da tradição anglo-saxã e normanda. E não da viking.

Sobe o pano no Planeta dos Macacos. 

O enredo infelizmente seguiu pelo terreno pantanoso do politicamente correto.   O foco passou a ser a ganância da indústria farmacêutica e a crueldade com os animais.  Aí, o roteiro comete uma idiotice.  Numa contradição evidente no próprio argumento, o tal macaco consegue  estabelecer relações éticas com outros macacos do abrigo para animais em que é posto. É como se, de repente, a ética passasse a ser uma manifestação natural acessada e dominada pelo intelecto, tal como é a lei da gravidade.

Aí, o filme se torna um pastiche, uma comédia involuntária.  Os macacos se descobrem encarcerados e oprimidos. E estabelecem “naturalmente” um código moral típico entre presidiários. E o chimpanzé que ficou inteligente com o tal vírus furta e espalha mais dele. É uma paródia de preso político que conscientiza com ideologia censurada outros presos, antes “comuns”.  A consciência coletiva evolui na organização do PCC: Primatas no Comando da Capital.  Subversão como patologia é isso aí.


Então, acontece a batalha. A figuração é: macacos oprimidos contra as forças repressoras a serviço do cartel da indústria farmacêutica.  A batalha é o salve geral.




Moral da estória:  A ética é sobrenatural.  Até o mais tacanho ambientalista sabe disso.  Quando um surfista tem a perna estraçalhada por um tubarão, a responsabilidade subiu a prancha, pois só pode ser alguém quem criou a situação do ataque.  O que o tacanho não alcança é o que isso diz da liberdade e do sofrimento.  Não é o tubarão livre por ser um navegador errático pelos oceanos.  Nem sofre por ser implacavelmente pescado, porque sua barbatana tem valor de mercado.  Humanidade é liberdade e sofrimento. Na cocriação de mundo como lugar de comunhão, humanidade é resposta que o ser convoca na ontologia e justiça a que ele é convocado na ética.  Animalidade diz do mundo, não cocria mundo.