sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Para ler RENATO BECHO



Sua Filosofia do Direito Tributário, de 2009, originalmente, é a sua tese de livre docência em direito tributário pela USP.
Havia anos que não conversava com ele ou lia algo dele.  Um silêncio de anos realçado pela comunhão de uma antiga paixão: o direito cooperativo. Aparentemente, eu segui fiel a essa paixão, conquanto meu amigo descobriu um novo amor no exercício da magistratura. 
Mas duas almas, quando arrebatadas numa mesma epifania, não se tornam mais estranhas.  Ler Renato agora é descobrir um pouco mais de mim mesmo. Pois ler seu texto é reencontrá-lo no texto: tão dele que só pode ser para mim.
Ao terminar a leitura dessa obra sua, sorri para mim mesmo.  Escrevíamos sobre a mesma paixão, mas tanta diferença havia!  Agora, escrevemos sobre assuntos diversos, mas as diferenças são as mesmas.  
Sem que soubéssemos um do outro,  agora diante de objetos diversos, nos fizemos as mesmas perguntas.  E bebemos da mesma água: a axiologia. Enquanto ele se dedicava à tese, eu ingressei no programa de pós-graduação em filosofia da UFRJ. Entre nós, a comunhão foi mais uma vez positivada: os valores.
Nunca me dei ao trabalho de escrever eu mesmo uma obra toda amarrada, fruto de uma pesquisa exaustiva cuja determinação já estava causada num projeto racional.  Sempre fui movido pela inquietude existencial.  Minha pena é de um fôlego só: ela para, quando me sacio de um excesso ainda por dizer diante de uma ausência num mundo já expresso.  O Renato escreve o que jamais escreverei.  E isso me basta, e também me estimula não parar de escrever. Mesmo nos fazendo perguntas parecidas, nossa palavra continua muito diferente.
A proposição central de sua tese é a humanização no direito tributário, conquanto o tributo, que não desaparece (é claro !), de certo modo é “marginalizado” nesse vir a ser do próprio direito.  Suas conclusões no capítulo 9 são sintéticas nesse sentido:
“Como resultado dos direitos humanos aplicados na tributação, diversos temas acadêmicos passam a ser revistos, como o próprio conceito do que seja o direito tributário, o papel dos princípios, das fontes e da nova hermenêutica jurídico-tributária.  Pelos direitos humanos, a ética volta a ser considerada como um fundamento do direito, limitando a atuação do Estado e atuando como fator de proteção do contribuinte.
“Os direitos humanos na tributação funcionam, de certa forma, como um retorno do direito natural.  Entretanto, o direito natural não volta com a mesma configuração, pois a normatividade desenvolvida a partir do juspositivismo é aproveitada enquanto instrumento de identificação do fenômeno jurídico.  O positivismo funciona como análise técnica, metodológica, enquanto a ética funciona verificando o conteúdo das normas jurídicas.”
Eu sorri, pois é assim mesmo para o Renato:  os direitos e a ética funcionam ! Não, não estou sendo irônico, por favor, pois aqui não quero dizer que os direitos e a ética, no Brasil, funcionam mal. Não me apetece esse tipo de clichê. Mas dou acento às amarras de sua compreensão nos estreitos liames de postulados epistemológicos explicitados desde o início do seu texto, com os quais o direito tributário é didático e os direitos humanos dizem da tributação como técnica de interpretação de suas normas.
Esse projeto tão entusiasticamente humanista do Renato (olha só como isso diz de mim) me deu uma vontade louca de reler a carta sobre o humanismo, opúsculo de Heidegger.  Há, nessa carta, logo no seu início, uma passagem bem conhecida (talvez a mais conhecida, que descolada descuidadamente da obra dele, se prestou a alguns mal-entendidos recorrentes, resvalando naquilo para o qual ele não se presta – o relativismo lingüístico):
“(....) só pode ser con-sumado o que já é.  Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser.  O pensamento con-suma a referência do Ser à Essencia do homem.   Não a produz nem a efetua.  O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser.  Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem.  A linguagem é a casa do Ser.  Em sua habitação mora o homem.  Os pensadores e poetas lhe servem de vigia.  Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.”
Entre o que Heidegger e Becho escreveram, existe uma ponte já construída por Miguel Reale, na sua obra com sugestivo título Verdade e Conjetura:
“o valor é um ente autônomo, por ser-lhe inerente um sentido vetorial do dever-ser, em razão do qual se põem os fins, os quais podem ser vistos como ‘vestes racionais do valor’, ou por outras palavras, são os valores mesmos enquanto focalizados segundo uma relação de meios aptos a atingir-se algo de valioso.”
Não é portanto um despropósito o apego de meu amigo à Kant:
“O intuito é esquematizar sinteticamente o direito tributário brasileiro atual, sob a nossa perspectiva.”
Ao contrário do que possa parecer o seu texto, numa leitura ingênua, Renato não lança uma renovação do direito tributário, mas antes dá expressão à retenção desse direito em nossa época.  A tradução do emérito Prof. Carneiro Leão àCarta, publicada pela Tempo Brasileiro em 1967, traz também uma introdução desse orientado do Heidegger bastante elucidativa para se compreender o intuito do Renato, que é a de mensurar cientificamente a influência da ética na disciplina tributária:
“No destino se dispõem estruturas que articulam possibilidades de referência entre ser e ente.  E é justamente para destinar-se em estruturas de possibilidades que o Ser não se destina, mas se retém como a totalidade de todas as possibilidades.  A História se essencializa assim em vicissitudes de destinações e ao mesmo tempo de retenções do Ser como totalidade. (....)
“A época da Técnica e da Ciência se essencializa numa ‘época’ em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade do ente como na subjetividade do homem.  O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o ‘sujeito’ da objetividade.  A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for ‘subjetividade’.  Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade.  A objetividade é o supremo valor.”
 Meu amigo está são.  Sou eu o intoxicado.  Já não consigo manter-me amarrado num devir ditado pela técnica e didática.  Minha pena já corre para este enigma: o tempo.    Pois o que intriga é exatamente esse paradoxo entre esse outro direito tributário, que é o direito tributário mesmo.
Para dialogar com o meu amigo, não posso mais correr da leitura do saudoso hermeneuta Paul Ricoeur.  Neste propósito, recorro a um “vestígio” científico: a intencionalidade longitudinal proposta por Edmund Husserl, resgatada por Ricoeur (tempo e narrativa III):
“É essa intencionalidade longitudinal e não objetivante que garante a própria continuidade da duração e preserva o mesmo no outro. Embora seja verdade que não posso ficar atento a essa intencionalidade longitudinal, geradora de continuidade, sem o fio condutor do objeto uno, é efetivamente ela, e não a intencionalidade objetivante sub-repticiamente introduzida na constituição hilética, que garante a continuação do presente pontual no presente estendido da duração una.  (....)  A retenção é precisamente o que mantém juntos o presente pontual e a série de retenções conectadas a ele. Relativamente ao presente pontual, ‘o objeto em seu como’ é sempre outro.  A função da retenção é estabelecer a identidade do presente pontual e do objeto imanente não pontual.  A retenção é um desafio à lógica do mesmo e do outro; esse desafio é o tempo.”
Como Ismália ao contemplar a lua no sonho em que se perdeu, vou voando. Para onde ?  Donde meu amigo fugiu como o Diabo da Cruz: da narrativa como linguagem de integração.  Confio, no entanto, nas minhas habilidades como nadador para não me afogar como ela no oceano poético.  Já dando as minhas braçadas, mantenho o meu foco em meu amigo Renato. 
Retomando, meu amigo está são.  Sua aposta em Kant é certeira.  Os valores, como transcendentes desnudos, não têm cabelos onde se possa segurar.  E como já escreveu outro sujeito são, o emérito Prof. Aquiles Côrtes Guimarães,  o direito não pode esperar que o Ser se mostre em meio ao seu jogo de esconde-esconde.
Recorrendo à (júris)prudência, meu amigo diz que o neoconstitucionalismo é uma técnica de realização dos direitos humanos, que são os fins do Direito: a proteção do homem.  Mas, cuida em não se aventurar na indagação pelo ser que é humano.  Para ele, basta isso: o homem é o sujeito de direitos positivados com fundamento na sua liberdade legisladora.  Mas como ninguém vê “o” homem zanzando por aí, a alteridade é muito própria para meu amigo Renato:
“Alguns autores argumentam que não há como se sustentar nenhuma das afirmações do objetivismo.  Mas, consideram possível que um determinado grupo chegue a um acordo sobre uma dada conduta, que seja aceita ou não aceita por eles como correta ou incorreta, justa ou injusta.  Eis a indicação do consenso intersubjetivo, muito importante para o presente trabalho. (....)
“Ao menos para o direito, o conceito de consenso intersubjetivo é suficiente, ao menos para nós”.
É assim que meu amigo Renato se vacinou das patinadas de  quem escreve sobre filosofia do direito, quando se arrisca para dar conta da enunciação reguladora no âmago do direito, depois de uma imersão na ontologia dos valores ou na ética radicalmente materializada na experiência diante do infinito espaço assimétrico estampado na nudez do rosto que convoca a palavra, demanda o justo e institui o si como eu
De que patinadas eu falo?  Outro dia, respondendo ao meu estimado sucessor no jurídico da OCB, Adriano Campos Alves,  escrevi um tributo implícito ao meu amigo Renato:
“Vou te alertar de um mau hábito que já estou percebendo se espraiar na comunidade acadêmica do Direito.  Como um corte transversal entre direito e linguagem está na moda, tem gente que anda misturando alhos com bugalhos.  A ontologia de Heidegger não tem nada a ver com a virada lingüística da filosofia analítica.  Quem quiser trilhar a linha analítica, que estude Wittgenstein, Russell e Peirce.  A grosso modo, eles associam linguagem e lógica.   Heidegger, Gadamer e Ricoeur associam linguagem e poética.  Quer bosquejar o fenômeno lingüístico e se fixar numa teoria epistemológica na filosofia do Direito ?  Se contenta com o Kant, que ainda dá caldo à beça.  Não inventa.”
Não sei se o Renato leu, mas ele parece, de algum modo, sensível aos cuidados da Prof. de filosofia na Universidade de Caen, Simone Goyard-Fabre:
“As investigações ‘ontológicas’ atualmente realizadas por inúmeros filósofos do direito são atraentes.  (....) Percorrendo os numerosos trabalhos ou artigos que demonstram a intensidade dessa pesquisa, acudiu-nos, no entanto, uma dúvida.  Embora os autores (....) de fato expressem seu acordo quanto ao caráter regulador do direito, nem por isso deixam de enveredar por vias divergentes: ou a regulação jurídica, dizem, é dependente do meio que a suscita e que, portanto, heteronomiza o direito; ou, então, as regras de direito pertencem à ‘galáxia auto’ na qual sua auto-organização torna, ao contrário, a ordem jurídica perfeitamente autônoma; ou, ainda, o direito se manifesta entre uma programação externa e uma programação interna, de modo que, encontrando seu lugar ‘entre ordem e desordem’, funciona conforme o modelo do jogo... Como não se sabe a qual critério apelar para pôr fim a essa hesitação, a pluralidade das respostas dadas à problemática ontológica do direito revela que o ser do direito ainda não se desvelou.
“(....)Fica-se tentado a crer que mais uma vez, apesar das promessas de uma investigação nova, a filosofia do direito tomou caminhos que não levam a lugar algum. (....)
“Será que a filosofia do direito está condenada a escapar de uma dificuldade apenas para ver surgir outras?  Faz séculos que jurisconsultos e filósofos se interrogam sobre o que constitui a juridicidade do direito; pensar o universo jurídico seria, por natureza, um projeto sem esperanças ? (....) Estaria ela condenada a estagnar no impasse de discursos eruditos mas obscuros ?”
No final das contas, meu amigo e livre docente Renato Becho, como magistrado que também é, se insinua na senda indicada pela professora francesa:
“Em vez de se interrogar sobre a existência do direito, de seus enunciados e de sua prática, o filosofo passará a examinar o que constitui a normatividade jurídica, isto é, a validade das proposições e dos efeitos jurídicos no próprio cerne de um edifício de direito.  A partir daí, na medida em que todo dispositivo jurídico induz uma expectativa normativa, o problema de fundo já não é explicar a gênese material, nem deduzir a estrutura formal de uma ordem de direito; consiste em descobrir por que a aplicação das regras jurídicas gera conseqüências válidas no tocante ao próprio direito positivo. Esse problema consiste em perscrutar a capacidade normativa da subjetividade transcendental.  Esse problema, fundamentalmente crítico, convida ao reexame da esfera jurídica à luz das lições do kantismo.
“Tirar ensinamentos do criticismo kantiano pode parecer, depois da paciência da dialética hegeliana ou da perseverança das pesquisas fenomenológicas, uma regressão singular e inesperada.  Mas a cronologia não deve enganar: existem voltas no tempo que marcam um progresso filosófico.”
Pelo que se lê, ele vem em boa companhia.

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