sexta-feira, 27 de setembro de 2013

As voltas do mundo e os ajustes de conta

Domingo, 8 de setembro.  Visitamos, eu e minha família, a família de uma amiga de escola de minha esposa.  Casada com um coronel do Exército, somos agora vizinhos e eles moram na antiga residência oficial do Ministro do Exército nos tempos do Estado Novo, ali ao lado do solar do inesquecível Chalaça.  Enfim, um domingo ameno à sombra de palmeiras imperiais.

Não deixei de me admirar com as voltas que o mundo dá.  Ele está comandando o famoso Batalhão Zenóbio da Costa, da Polícia do Exército.  No 7 de setembro, ele estivera lá, lidando com os garotos do "black block".  No dia seguinte, estávamos nós, homens feitos, celebrando comunhão com nossas esposas e filhos em torno de uma refeição. Há 25 anos, contei a ele ali, eu estava em formações "Schwarzer Block" em Berlim e Hamburgo.  Sim, eu também já fui um agitador anarquista desses que agora estão sendo presos.  




Olhamo-nos e compreendemo-nos.  A respeito dos acontecimentos do dia anterior, gás, feridos, gritos, fúria... concordamos: testosterona, impaciência e ilusão. Naquele momento, não iríamos discordar em nada, mesmo.  Éramos gratos pelo que tínhamos ali conosco.  O bastante.  Nossas esposas e filhos reunidos partilhando pacificamente o alimento.  

A Polícia do Exército foi criada sob o comando do General Zenóbio da Costa no seio da Força Expedicionária Brasileira.  E é justamente o seu 1o Batalhão, aquele que ocupa desde sempre o quartel da Barão de Mesquita, originalmente formado pelos heróis da luta contra a barbárie e pela democracia durante a 2a Guerra Mundial.

Que bem se pode fazer, quando se quer preservar a memória do mal em detrimento da memória do bem que se fez?

O coronel Luciano me sensibilizou.  O Batalhão Zenóbio é um monumento à democracia brasileira pelos bons soldados que por lá passaram.  Ele ainda me contou que, em 31 de março de 64, seu antecessor não se sublevou.  Avisou à tropa que cumpriria até o fim o seu dever institucional de garantir a segurança do Jango (o seu embarque para o estrangeiro) e depois entregaria o batalhão. Por respeito, não foi deposto; foi reformado.

É verdade que gente má e suas vítimas por lá passaram nos anos de chumbo. Isso precisa ser apurado.  Tampouco pode ser esquecido.  Mas, de tanto que se aperta essa mesma tecla, é injusto e deseducativo para nossos filhos que lhes seja negada, na prática, a memória do que o Batalhão Zenóbio da Costa tem de melhor para nos lembrar.


sábado, 21 de setembro de 2013

A língua e o sino

"Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, 
se eu não tivesse amor, seria como sino ruidoso ou como bronze estridente"
(1a Carta de São Paulo aos Coríntios 13:1)

O nosso (Papa) Francisco mandou bem.



Na sua primeira grande entrevista, concedida aos jesuítas, ao tratar das políticas de planejamento e organização familiar e da defesa da vida diante de temas como aborto e homossexualidade, voltou-se aos católicos para lhes pedir respeito, compaixão, sensibilidade e acolhimento para com quem pensa e age em desacordo com os ensinamentos da Igreja.  

Não.  Francisco não está propondo mudança de posições da Igreja.  Não se curva às modas. É uma marca de abordagem pastoral.  Só está sendo franciscano: compreender mais do que ser compreendido, consolar mais do que ser consolado, perdoar mais do que ser perdoado.  

Os fundamentos teológicos sobre os quais a Igreja assenta suas posições sobre esses temas já estão para lá de amadurecidos.  Mas, a questão relevante suscitada pelo Francisco é: os católicos não precisam se comportar o tempo todo como doutores da Lei divina.  Isso significa apenas uma leitura fragmentada dessa mesma teologia.  

Às vezes, até mesmo para os mais sinceros católicos é preciso lembrar que Moisés nos trouxe a Lei.  E Cristo a fez perfeita nos trazendo a paz. 

Ouso dizer que isso está expresso no Magnificat.  Maria canta que Deus olhou para sua humilhação como serva e doravante todas as gerações a felicitarão. Ela está grávida, mas seu filho não tem um pai de sangue conhecido.  Pela Lei mosaica, na sociedade patriarcal da época, a posição de Maria é a mais marginalizada que uma mulher poderia estar, mas por amor como ato puro (a sombra do Espírito Santo); isto é, sem forma alguma (e não de alguma forma, pois ela continua virgem), ela é elevada à condição de Mãe de Deus. 





O saudoso imortal Luiz Paulo Horta, em seu Diário de Leitura da Bíblia soube dar tratamento jornalístico a essa teologia:


"E há o Cristo cuja humanidade transborda como um rio de águas profundas.  Essa fascinante humanidade aparece em histórias como a que conta são João [ele reconta o encontro com a prostituta e o famoso tirocínio "atire a primeira pedra quem estiver sem pecado"] (....) 



"Esse é o Cristo da misericórdia, que aparece muitas e muitas vezes.  Ele tem todos os sentimentos humanos, ainda que expurgados de suas deformações.  Por isso, é falso o Cristo de algumas representações açucaradas.  Ele pode, eventualmente, falar com a mesma severidade de um profeta antigo.  E se há uma coisa que ele não tolera é a hipocrisia. Daí ele ser tão duro com os escribas e fariseus.

"(....)Não se pode condená-los indistintamente.  (....) Tendiam a enrijecer devido às condições políticas e culturais da época - a começar por uma moral que ia se desfazendo. (....) Contra esse contágio é que se erguiam os fariseus - e que eles foram capazes de criar uma consciência heróica em Israel fica visível na epopeia dos macabeus.


"Mas, a natureza humana tem suas armadilhas, e, por uma autoconsciência orgulhosa, os 'doutores da Lei' podiam cair na mesma miopia espiritual que atinge eventualmente um prelado católico ou um pastor protestante.  É a deformação contra a qual, um pouco depois, vai lançar-se São Paulo; a ilusão de que com a observância meticulosa dos textos da Lei [e não com a misericórdia] garante-se a justificação - a salvação eterna.  E tratando dessa cegueira espiritual, que se transforma em hipocrisia, o Cristo explode numa cólera terrível:  'Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais ao homem o Reino dos Céus! Vós mesmos não entrais nem deixais que entrem os que querem entrar."



Francisco, essa brisa que vem da janela aberta em seu claustro areja nossa Igreja.  Essa brisa é o Espírito Santo, que vivifica!

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Termo de Cooperação

Firmei um termo de cooperação com os amigos e colegas Paulo Roberto Galli Chuery e Fabio Medina Osorio.  


Paulo Roberto é hoje o gerente jurídico da Unidade Nacional do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo. Nem é preciso mencionar o quão longa é a nossa trajetória comum. Bastante dizer que foi ele quem me apresentou o Fabio Medina Osorio tão logo soube que eu havia distratado a minha sociedade de advogados.  


O Fabio dispensa elogios. Conhecido entre a magistratura e o magistério, é Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Público pela UFRGS.  Seu livro Teoria da Improbidade Administrativa, publicado pela Revista dos Tribunais, já se encontra em 3a edição.  Outro livro que merece destaque é o Direito Administrativo Sancionador.  Membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul até 2006, exonerou-se para exercer a advocacia.

Por este termo, estaremos colaborando permanentemente uns com os outros e, por isso, estamos impedidos, enquanto o termo não for rescindido, de advogar para partes adversas numa lide.

Sabemos que somos bons, muito bons, no que fazemos.  Admiramos uns aos outros.  Mas, estamos planejando para, compartilhando nossas virtudes, que, em 2014, nossos clientes tenham em Brasília e no Rio de Janeiro de nós uma atuação em conselhos e tribunais administrativos e judiciais ainda melhor, muito melhor.  

sábado, 14 de setembro de 2013

Três paradoxos de um tempo aos pedaços

Esgotamos o corpo e a mente para acumularmos patrimônio freneticamente
Consumimos o patrimônio para recuperarmos com urgência saúde
Projetamos com tanta ansiedade um futuro
que não o gozamos nem pelo convívio, nem pelo sonho
Afastamos o sofrimento a todo custo
e morremos como se nunca tivéssemos vivido.



domingo, 8 de setembro de 2013

Pai e filha

Temos uma brincadeira.  Ela joga um tema e nós pensamos juntos o pensamento do dia.  

Ela é gulosa.  Do limão, a limonada.  A Janete está ensinando ela cozinhar.  

Ontem, ela fez pudim.  Um, não.  Claro, dois.  Um, de pão.  Outro, de leite.  

Acordou hoje e me saudou como? "Pai, tema do dia é pudim!".  

Pensei, pensei....  Depois de muitas gargalhadas com ela... Bom, taí o pensamento: 

"A macaca  virou mulher, quando aprendeu a cozinhar.  Mas a mulher só descobriu que tinha valido a pena o esforço, quando serviu pudim."


A dor e a delícia de advogar

Há 5 anos, fui contratado por uma cooperativa de dentistas registrada na ANS que estava sofrendo bloqueios on line por execuções fiscais de ISS.  Havia feito exceções de pré-executividade, mas não embargado.  Fumo nas exceções.  Nada podia parar as penhoras?  Lá fui eu:  parcelamento e no dia seguinte, uma ação anulatória.  

Prudente, pedi liminar sem me fiar na tese do ato cooperativo.  E só consegui por Agravo de Instrumento.  Ufa!  Sobrevivência da cooperativa.  Todo cuidado foi pouco.  Perícia feita.  Depósitos em juízo.  Mas, o patrimônio líquido virou e a direção fiscal da ANS aconteceu.  E a situação acabou sendo de vida ou morte para a cooperativa nos anos seguintes.  

Abandonei a tese do ato cooperativo no meio do caminho e o TJ... adotou e... (p*ta que pariu!) insistiu.   Fiz o REsp por cotejo analítico.  E forcei a subida por Agravo, porque o TJ dizia que a questão do ato cooperativo era prejudicial.  Aí, já não foi uma questão de direito, mas de lógica.  Tive de demonstrar que base de cálculo é ontologicamente independente de fato gerador.  

Maneiro foi o final da estória semana passada.  Estava eu vestido de graúna na tribuna para fazer a sustentação oral, o Min. Pargendler, se vira para mim e pergunta: "é isso mesmo que eu entendi o que o doutor quer?"  Eis toda a minha sustentação oral:  "é".  Pois ele proclamou:  "Sr. Presidente, dou provimento".

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Para ler RENATO BECHO



Sua Filosofia do Direito Tributário, de 2009, originalmente, é a sua tese de livre docência em direito tributário pela USP.
Havia anos que não conversava com ele ou lia algo dele.  Um silêncio de anos realçado pela comunhão de uma antiga paixão: o direito cooperativo. Aparentemente, eu segui fiel a essa paixão, conquanto meu amigo descobriu um novo amor no exercício da magistratura. 
Mas duas almas, quando arrebatadas numa mesma epifania, não se tornam mais estranhas.  Ler Renato agora é descobrir um pouco mais de mim mesmo. Pois ler seu texto é reencontrá-lo no texto: tão dele que só pode ser para mim.
Ao terminar a leitura dessa obra sua, sorri para mim mesmo.  Escrevíamos sobre a mesma paixão, mas tanta diferença havia!  Agora, escrevemos sobre assuntos diversos, mas as diferenças são as mesmas.  
Sem que soubéssemos um do outro,  agora diante de objetos diversos, nos fizemos as mesmas perguntas.  E bebemos da mesma água: a axiologia. Enquanto ele se dedicava à tese, eu ingressei no programa de pós-graduação em filosofia da UFRJ. Entre nós, a comunhão foi mais uma vez positivada: os valores.
Nunca me dei ao trabalho de escrever eu mesmo uma obra toda amarrada, fruto de uma pesquisa exaustiva cuja determinação já estava causada num projeto racional.  Sempre fui movido pela inquietude existencial.  Minha pena é de um fôlego só: ela para, quando me sacio de um excesso ainda por dizer diante de uma ausência num mundo já expresso.  O Renato escreve o que jamais escreverei.  E isso me basta, e também me estimula não parar de escrever. Mesmo nos fazendo perguntas parecidas, nossa palavra continua muito diferente.
A proposição central de sua tese é a humanização no direito tributário, conquanto o tributo, que não desaparece (é claro !), de certo modo é “marginalizado” nesse vir a ser do próprio direito.  Suas conclusões no capítulo 9 são sintéticas nesse sentido:
“Como resultado dos direitos humanos aplicados na tributação, diversos temas acadêmicos passam a ser revistos, como o próprio conceito do que seja o direito tributário, o papel dos princípios, das fontes e da nova hermenêutica jurídico-tributária.  Pelos direitos humanos, a ética volta a ser considerada como um fundamento do direito, limitando a atuação do Estado e atuando como fator de proteção do contribuinte.
“Os direitos humanos na tributação funcionam, de certa forma, como um retorno do direito natural.  Entretanto, o direito natural não volta com a mesma configuração, pois a normatividade desenvolvida a partir do juspositivismo é aproveitada enquanto instrumento de identificação do fenômeno jurídico.  O positivismo funciona como análise técnica, metodológica, enquanto a ética funciona verificando o conteúdo das normas jurídicas.”
Eu sorri, pois é assim mesmo para o Renato:  os direitos e a ética funcionam ! Não, não estou sendo irônico, por favor, pois aqui não quero dizer que os direitos e a ética, no Brasil, funcionam mal. Não me apetece esse tipo de clichê. Mas dou acento às amarras de sua compreensão nos estreitos liames de postulados epistemológicos explicitados desde o início do seu texto, com os quais o direito tributário é didático e os direitos humanos dizem da tributação como técnica de interpretação de suas normas.
Esse projeto tão entusiasticamente humanista do Renato (olha só como isso diz de mim) me deu uma vontade louca de reler a carta sobre o humanismo, opúsculo de Heidegger.  Há, nessa carta, logo no seu início, uma passagem bem conhecida (talvez a mais conhecida, que descolada descuidadamente da obra dele, se prestou a alguns mal-entendidos recorrentes, resvalando naquilo para o qual ele não se presta – o relativismo lingüístico):
“(....) só pode ser con-sumado o que já é.  Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser.  O pensamento con-suma a referência do Ser à Essencia do homem.   Não a produz nem a efetua.  O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser.  Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem.  A linguagem é a casa do Ser.  Em sua habitação mora o homem.  Os pensadores e poetas lhe servem de vigia.  Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.”
Entre o que Heidegger e Becho escreveram, existe uma ponte já construída por Miguel Reale, na sua obra com sugestivo título Verdade e Conjetura:
“o valor é um ente autônomo, por ser-lhe inerente um sentido vetorial do dever-ser, em razão do qual se põem os fins, os quais podem ser vistos como ‘vestes racionais do valor’, ou por outras palavras, são os valores mesmos enquanto focalizados segundo uma relação de meios aptos a atingir-se algo de valioso.”
Não é portanto um despropósito o apego de meu amigo à Kant:
“O intuito é esquematizar sinteticamente o direito tributário brasileiro atual, sob a nossa perspectiva.”
Ao contrário do que possa parecer o seu texto, numa leitura ingênua, Renato não lança uma renovação do direito tributário, mas antes dá expressão à retenção desse direito em nossa época.  A tradução do emérito Prof. Carneiro Leão àCarta, publicada pela Tempo Brasileiro em 1967, traz também uma introdução desse orientado do Heidegger bastante elucidativa para se compreender o intuito do Renato, que é a de mensurar cientificamente a influência da ética na disciplina tributária:
“No destino se dispõem estruturas que articulam possibilidades de referência entre ser e ente.  E é justamente para destinar-se em estruturas de possibilidades que o Ser não se destina, mas se retém como a totalidade de todas as possibilidades.  A História se essencializa assim em vicissitudes de destinações e ao mesmo tempo de retenções do Ser como totalidade. (....)
“A época da Técnica e da Ciência se essencializa numa ‘época’ em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade do ente como na subjetividade do homem.  O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o ‘sujeito’ da objetividade.  A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for ‘subjetividade’.  Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade.  A objetividade é o supremo valor.”
 Meu amigo está são.  Sou eu o intoxicado.  Já não consigo manter-me amarrado num devir ditado pela técnica e didática.  Minha pena já corre para este enigma: o tempo.    Pois o que intriga é exatamente esse paradoxo entre esse outro direito tributário, que é o direito tributário mesmo.
Para dialogar com o meu amigo, não posso mais correr da leitura do saudoso hermeneuta Paul Ricoeur.  Neste propósito, recorro a um “vestígio” científico: a intencionalidade longitudinal proposta por Edmund Husserl, resgatada por Ricoeur (tempo e narrativa III):
“É essa intencionalidade longitudinal e não objetivante que garante a própria continuidade da duração e preserva o mesmo no outro. Embora seja verdade que não posso ficar atento a essa intencionalidade longitudinal, geradora de continuidade, sem o fio condutor do objeto uno, é efetivamente ela, e não a intencionalidade objetivante sub-repticiamente introduzida na constituição hilética, que garante a continuação do presente pontual no presente estendido da duração una.  (....)  A retenção é precisamente o que mantém juntos o presente pontual e a série de retenções conectadas a ele. Relativamente ao presente pontual, ‘o objeto em seu como’ é sempre outro.  A função da retenção é estabelecer a identidade do presente pontual e do objeto imanente não pontual.  A retenção é um desafio à lógica do mesmo e do outro; esse desafio é o tempo.”
Como Ismália ao contemplar a lua no sonho em que se perdeu, vou voando. Para onde ?  Donde meu amigo fugiu como o Diabo da Cruz: da narrativa como linguagem de integração.  Confio, no entanto, nas minhas habilidades como nadador para não me afogar como ela no oceano poético.  Já dando as minhas braçadas, mantenho o meu foco em meu amigo Renato. 
Retomando, meu amigo está são.  Sua aposta em Kant é certeira.  Os valores, como transcendentes desnudos, não têm cabelos onde se possa segurar.  E como já escreveu outro sujeito são, o emérito Prof. Aquiles Côrtes Guimarães,  o direito não pode esperar que o Ser se mostre em meio ao seu jogo de esconde-esconde.
Recorrendo à (júris)prudência, meu amigo diz que o neoconstitucionalismo é uma técnica de realização dos direitos humanos, que são os fins do Direito: a proteção do homem.  Mas, cuida em não se aventurar na indagação pelo ser que é humano.  Para ele, basta isso: o homem é o sujeito de direitos positivados com fundamento na sua liberdade legisladora.  Mas como ninguém vê “o” homem zanzando por aí, a alteridade é muito própria para meu amigo Renato:
“Alguns autores argumentam que não há como se sustentar nenhuma das afirmações do objetivismo.  Mas, consideram possível que um determinado grupo chegue a um acordo sobre uma dada conduta, que seja aceita ou não aceita por eles como correta ou incorreta, justa ou injusta.  Eis a indicação do consenso intersubjetivo, muito importante para o presente trabalho. (....)
“Ao menos para o direito, o conceito de consenso intersubjetivo é suficiente, ao menos para nós”.
É assim que meu amigo Renato se vacinou das patinadas de  quem escreve sobre filosofia do direito, quando se arrisca para dar conta da enunciação reguladora no âmago do direito, depois de uma imersão na ontologia dos valores ou na ética radicalmente materializada na experiência diante do infinito espaço assimétrico estampado na nudez do rosto que convoca a palavra, demanda o justo e institui o si como eu
De que patinadas eu falo?  Outro dia, respondendo ao meu estimado sucessor no jurídico da OCB, Adriano Campos Alves,  escrevi um tributo implícito ao meu amigo Renato:
“Vou te alertar de um mau hábito que já estou percebendo se espraiar na comunidade acadêmica do Direito.  Como um corte transversal entre direito e linguagem está na moda, tem gente que anda misturando alhos com bugalhos.  A ontologia de Heidegger não tem nada a ver com a virada lingüística da filosofia analítica.  Quem quiser trilhar a linha analítica, que estude Wittgenstein, Russell e Peirce.  A grosso modo, eles associam linguagem e lógica.   Heidegger, Gadamer e Ricoeur associam linguagem e poética.  Quer bosquejar o fenômeno lingüístico e se fixar numa teoria epistemológica na filosofia do Direito ?  Se contenta com o Kant, que ainda dá caldo à beça.  Não inventa.”
Não sei se o Renato leu, mas ele parece, de algum modo, sensível aos cuidados da Prof. de filosofia na Universidade de Caen, Simone Goyard-Fabre:
“As investigações ‘ontológicas’ atualmente realizadas por inúmeros filósofos do direito são atraentes.  (....) Percorrendo os numerosos trabalhos ou artigos que demonstram a intensidade dessa pesquisa, acudiu-nos, no entanto, uma dúvida.  Embora os autores (....) de fato expressem seu acordo quanto ao caráter regulador do direito, nem por isso deixam de enveredar por vias divergentes: ou a regulação jurídica, dizem, é dependente do meio que a suscita e que, portanto, heteronomiza o direito; ou, então, as regras de direito pertencem à ‘galáxia auto’ na qual sua auto-organização torna, ao contrário, a ordem jurídica perfeitamente autônoma; ou, ainda, o direito se manifesta entre uma programação externa e uma programação interna, de modo que, encontrando seu lugar ‘entre ordem e desordem’, funciona conforme o modelo do jogo... Como não se sabe a qual critério apelar para pôr fim a essa hesitação, a pluralidade das respostas dadas à problemática ontológica do direito revela que o ser do direito ainda não se desvelou.
“(....)Fica-se tentado a crer que mais uma vez, apesar das promessas de uma investigação nova, a filosofia do direito tomou caminhos que não levam a lugar algum. (....)
“Será que a filosofia do direito está condenada a escapar de uma dificuldade apenas para ver surgir outras?  Faz séculos que jurisconsultos e filósofos se interrogam sobre o que constitui a juridicidade do direito; pensar o universo jurídico seria, por natureza, um projeto sem esperanças ? (....) Estaria ela condenada a estagnar no impasse de discursos eruditos mas obscuros ?”
No final das contas, meu amigo e livre docente Renato Becho, como magistrado que também é, se insinua na senda indicada pela professora francesa:
“Em vez de se interrogar sobre a existência do direito, de seus enunciados e de sua prática, o filosofo passará a examinar o que constitui a normatividade jurídica, isto é, a validade das proposições e dos efeitos jurídicos no próprio cerne de um edifício de direito.  A partir daí, na medida em que todo dispositivo jurídico induz uma expectativa normativa, o problema de fundo já não é explicar a gênese material, nem deduzir a estrutura formal de uma ordem de direito; consiste em descobrir por que a aplicação das regras jurídicas gera conseqüências válidas no tocante ao próprio direito positivo. Esse problema consiste em perscrutar a capacidade normativa da subjetividade transcendental.  Esse problema, fundamentalmente crítico, convida ao reexame da esfera jurídica à luz das lições do kantismo.
“Tirar ensinamentos do criticismo kantiano pode parecer, depois da paciência da dialética hegeliana ou da perseverança das pesquisas fenomenológicas, uma regressão singular e inesperada.  Mas a cronologia não deve enganar: existem voltas no tempo que marcam um progresso filosófico.”
Pelo que se lê, ele vem em boa companhia.