quinta-feira, 29 de agosto de 2013

AMOR: Ato puro - II

Qual o valor com o qual um Estado político pode cumprir suas promessas mais legítimas aos cidadãos sob seus cuidados?  A democracia?  Talvez...

Mas, sem um senso amoroso, uma comunidade se esvai na sociedade.  Para uma sociedade sem essa comunhão incerta, espontânea e graciosa da bondade, o Estado só pode seguir fundado em cálculos de utilidade, em meio ao jogo dos interesses, movido pelos medos do pior.  O Estado se reduz a um contingente de servidores burocratas ou demagogos alimentado por concurseiros e candidatos profissionais.  Cada um cuida de si mesmo, mesmo engajado num coletivo e tudo mais é só discurso e gestão.

Pensar em amor como fundamento primeiro e fim último do Estado é resgatar para o servidor público a nobreza em sua servidão.  Algo muito além dos direitos e obrigações da cidadania.  Então, já não é o Estado o promitente de um bem sempre posto adiante, o construtor de uma utopia.  A comunidade sob os cuidados do Estado já vem a ser esse lugar, ainda que prenhe de esperança por dias melhores.

"A experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente no amor.  Neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer, enriquece nosso olhar". É o que nos ensina Francisco em Lumen Fidei, diante de nossos receios de cerceamento da liberdade e da perda da autonomia do sujeito por imposições intransigentes. O que tem nos obrigado a exilar a verdade nos fatos e cálculos (recusando-lhe a presença nos atos) e a encarcerar o amor no interior dos nossos afetos. O que até é capaz de confortar o indivíduo, mas faz o amor difícil de ser proposto como realização comum.
   
O amor não é só olhar, é também a escuta de quem nos chama e nos convoca à promessa de amor e nos mantém fiéis a ela.  O amor não endurece, mas nos põe no caminho do diálogo que respeita o outro, porque antes o acolhe no que há de mais espantoso, estranho e difícil de ser aceito por nossas próprias razões.



É este o sentido de crucifixos em repartições públicas: a boa-fé como ânimo das relações entre servidores e cidadãos na memória de que Deus Caritas est e Caritas omnia vincit - Deus é amor e o amor tudo vence (até a morte e os medos).  

Eu te convido a se perguntar:  pode haver grandeza numa idéia de Estado laico que acaba por recusar uma memória do amor como o alfa e o ômega do serviço público?  Talvez...






quinta-feira, 22 de agosto de 2013

MARCELO EDUARDO TALVEZ SEJA UM SEMIDEUS

A perplexidade nos assalta. Um garoto tão familiar. É assustadora a perspectiva aberta no mais prosaico dos convívios. O que pensar de nossos filhos diante do gesto tão brutal e devastador? Desviamo-nos desse confronto recorrendo a uma causa: uma doença, vidas passadas...  Até podemos comprovar causas.  Mas, só encontraremos fatos e coisas.

É justamente na gratuidade insinuada a mais eloquente expressão de humanidade, que vem a ser um abismo de possibilidades entre duas perguntas fundamentais: O que podemos realizar? E o que conseguimos com o todo esse poder? Aí está a semelhança e a diferença entre os homens e os deuses. Homens e deuses são radicalmente livres, mas aos deuses é negado um destino.

Se admitirmos que nada separa a humanidade e a divindade em toda realização, a força do Cristo e de Marcelo Eduardo mora na narrativa.  Nela, encontramos homens e deuses.  Fora dela, encontramos homens, ou deuses.  Se encontramos só uns, mas não encontramos os outros, estamos cegos em todo caso.  Jesus e Marcelo Eduardo foram homens.  Mas, só um é Deus.  O outro, um semideus.

De um jeito ou de outro, temos de encarar as escalas entre a maldade e a banalidade, chaves hermenêuticas para o sofrimento.  Para isso, não é preciso cogitar um genocídio.  Um possível parricídio já faz pauta.  





domingo, 18 de agosto de 2013

AMOR: Ato Puro

O amor não se esconde, nem se ausenta.  Por isso, é besteira procurá-lo.  Não obstante, ele se revela. Então, antes mistério.

Confundimos o amor com um desejo, um sentido de ausência.




Mas, amar não é desejar. Se o desejo acaba, o amor não acaba.  Se acaba, nunca foi amor.  Foi só desejo de viver a ilusão de um amor.  

Amar também é sustentabilidade e preservação.  Mas nem toda preservação e sustentabilidade é amorosa.  Precisamos de uma sustentabilidade ecológica por um simples motivo: não podemos sobreviver além de nosso planeta.  Há amor, quando a sustentabilidade advém de uma escolha.  É claro que podemos sobreviver à desistência de viver por alguém.  Não desistir neste contexto é uma escolha.  Mas, uma escolha pode ter várias motivações: interesses financeiros, por exemplo.  Quando nada motiva essa escolha, isto é, a preservação e a sustentabilidade valem  a pena sem motivo, é o amor que se revela.

Então, qual o sentido de uma aliança por amor?  O sentido da revelação do amor na promessa que se mantém sem razão alguma.  O desejo e a consciência são estados de passagem.  Mas uma promessa não se modifica, não se altera, senão sempre foi falsa.   Na promessa, o amor encontra seu corpo.



Uma promessa de amor é sempre esperança de seu cumprimento na morte.  Não se trata a morte de evento adiante, mas condensação de um percurso inteiro numa presença imediata.  É a promessa, e não o desejo e a consciência, que convoca de verdade o amor à existência (Verbo). Uma memória fiel ao seu fim . É o que nos ensina Francisco na Encíclica Lumen Fidei. 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

OS MÉDICOS NO CADE


Devido Processo Regulatório no CADE – a Nova Lei de Defesa da Concorrência em Debate foi um evento que aconteceu dia 2 de agosto de 2013 na sede da Fecomércio.  Fui convidado para o painel Defesa da Concorrência e Poder Judiciário.  Apresentei O Cálculo e o Rosto.  Transcrevo uma parte.


Há colusões que não envolvem acordos para fixar preços, nem para controlar a produção, dividir mercados ou impor barreiras de entrada. Mas atenuam as rivalidades entre os integrantes do grupo.

Será tormentoso para a magistratura, se o CADE acusar milhares de médicos de adquirirem por pelas suas entidades (CFM, AMB, FENAM e cooperativas de especialidades médicas) um poder artificial de mercado,  enquanto que, em sua defesa, eles reivindicam para si algum poder compensatório diante das operadoras de planos de saúde e o SUS.

O que é justo não desintegra comunidades.  E a comunhão sempre nos remete ao ser humano, que é alguém anterior à distinção entre sujeito e objeto.

No idealismo, consciência é o eu que observa, pensa e é capaz de um sobrevôo sobre a realidade.  Mas, esse sobrevôo é antes uma realização do real.  Esse sobrevôo é a razão.  Mas, a materialidade da percepção lança desconfiança à toda cognição que se pretenda totalização do real.


No entanto, a utrapassagem do subjetivismo no Direito não se traduz em realismo, numa pretensa decomposição da realidade em elementos capazes de uma plena determinação das idéias por estímulos exteriores traduzíveis em linguagem matemática ou redutíveis a qualidades primárias.  A experiência empírica vai ao encontro da razão, mas não o aprisiona.

O Direito se volta às descobertas ligadas às noções de justiça emergentes de um comportamento que seja percebido como justo.  A relação entre percepção e comportamento é instrínseca e circular.  E a experiência inclui uma atitude filosófica que ultrapassa a justiça como uma idéia da ordem cultural e alcança o momento de originalidade de uma vivência sua; momento este em que se relacionam o possível e o ausente.  A experiência, neste sentido, é ambígua:  tanto uma falta, um vazio que faz necessária uma presença, como um excesso que demanda nova expressão sobre um mundo que já foi expresso.

A relação entre mundo e existência é expressão de um modo coletivo e estrutural de pensar e sentir, mas nem por isso deixa de ser radicalmente pessoal na irredutível singularidade da experiência vivida.

Na defesa da concorrência, o pensamento serve para alguma coisa.  A verdade se valida pelos resultados de sua afirmação.  Não há mistério.  Só há desconhecimento.  O Direito, se não utilizado, resta como uma verborragia bizantina.  O Direito, então, não visa tanto a desocultação da justiça, mas um fazer para certos fenômenos gerais:  a base para a decisão de um juiz deve ser a relação custo-benefício.

Mas, a mensuração quantitativa dos fatos econômicos não aprisiona os sentidos da cooperação e da rivalidade.  O justo convoca uma percepção da cooperação e da rivalidade para além dos estreitos limites pragmáticos do cálculo utilitário. 

Uma análise dos custos de transação é uma descrição do mundo, mas também é uma representação dele como um mosaico de elementos conceituais pelos quais a ciência se pretende soberana sobre seu objeto, por construí-lo matematizado, e, ao fazê-lo, submetido ao seu próprio ideal de medida. 

Entretanto, o apelo atraente a um fazer pragmático não dissolve os limites de um projeto de posse do mundo pelas representações construídas pelo sujeito.  Ao contário, coloca tal ideal de medida fora de questão.  Ou seja, priva-o dos meios intuitivos pelos quais se pode pôr em questão o arranjo conceitual mesmo de sua experiência.

Claro que a tarefa prescritiva no Direito pode seguir apoiada em trabalhos científicos que instrumentalizem estes significados com que o pensamento  constrói pontes entre os princípios constitucionais e os valores como fins da Constituição.

Mas, se o Direito pode contar com as contribuições da Economia na construção de standarts com a redução de toda experiência possível à observação, precisa também admitir que a experiência pode  se apresentar também como iniciação.

É possível formular uma teoria sobre a justiça que admita a pluralidade normativa para além das contingências históricas.  É o que fez, por exemplo, John Rawls. Ele propôs às pessoas uma condição não histórica, anterior a seus contextos.  Essa posição original está sob o véu da ignorância.

Por esse véu, o que é já está entregue a si mesmo.  O mistério é o ponto de partida para a articulação entre a liberdade e a moral.  E só então há o alcance da existência histórica  e política.

As pessoas possuem diferentes valores e formulam diferentes projetos para a realização do bem comum. Às vezes, esses projetos versam sobre o mesmo objeto e realidade e, mesmo assim, são heteronômicos.  Isso é particularmente relevante para os atores econômicos que cooperam entre si, mas estão longe de ignorar o que é exigível para a defesa da concorrência.  Um julgador então precisa admitir uma pluralidade de concepções da legitimidade.  Na medida em que essa diversidade seja admitida na defesa da concorrência, então o sacrifício da cooperação pode não ser justa.




terça-feira, 6 de agosto de 2013

O Hércules e a Lei 12.690/2012.




Os casos difíceis convocam Hércules como juiz, escreveu Ronald Dworkin, um professor norte-americano de filosofia e direito muito conhecido. Pois, para as cooperativas de trabalho, esse Hércules foi o Min. Ives. Mas ele não foi só corajoso.  Ele foi também amoroso. E, na aurora da Lei 12.690/2012, ele me fez lembrar outro mito: Antígona. 

As sutilezas dialéticas não encontravam eco entre operadores do direito cooperativo e do direito trabalhista, tal como restou insolúvel o trágico antagonismo entre Antígona, demasiado orgulhosa, e Creonte, cruel ao levar suas razões e seus medos às últimas consequências.  Antígona e Creonte nunca conseguirão se entender sobre a hierarquia dos direitos aplicáveis ao caso em que se confrontam. 

Recordemo-nos.  Creonte ascende ao trono de Tebas após uma luta fraticida entre Eteócles e Polinice, seus sobrinhos.  Ambos já estão marcados por uma questão originária: a maldição lançada por Pélope sobre a dinastia Labdácida e consumada no parricídio de Édipo.  Creonte (irmão de Jocasta) é movido pelo desejo de restabelecer a autoridade pública numa cidade afetada pela sucessão dos terríveis acontecimentos em torno de seu trono. Após a sangrenta guerra civil, ele condena Polinice post mortem  por traição e decreta (kérugma) a mais afrontosa interdição: ele não deve ser enterrado.  Contra essa afronta, se insurge Antígona, irmã dos falecidos.  Ela evoca a tradição (agrapta nomima) em igualmente afrontosa desobediência.  O desfecho?  Antígona é enterrada viva.    O filho de Creonte, noivo e apaixonado por Antígona, por desgosto se mata.  A morte de Hêmon leva Eurídice, sua mãe e esposa de Creonte, ao suicídio.  Creonte e Antigona fazem valer suas respectivas certezas ao preço do aniquilamento da fertilidade.  Fenece a linhagem de Cadmo, fundador mítico de Tebas e avô de Lábdacos.

Ambos, Creonte e Antígona, afirmam suas convicções, que se bastam a si mesmas.  A questão fundamental na tragédia é a indeterminação da justiça.  O direito se ressente da impetuosidade, na incontinência que abala a segurança erigida por seus institutos.  Mas não pode prescindir da altivez, como uma de suas fontes imaginárias fundadoras: a historicidade no direito dá-se pela insistente tensão entre a consciência pessoal e a razão de Estado, sendo que ambos se legitimam por um senso de justiça, que nem sempre encontrará um modo de sobrepô-los sem desfechos trágicos.

Se, na democracia, o justo não pode se submeter à exatidão, a perplexidade suscitada pelo trágico indaga:  como ordenar os atos livres para que haja justiça, na medida em que, paradoxalmente, o direito é contenção?  O marginal precisa ser avaliado pela perspectiva da norma, tanto quanto o normal precisa ser reavaliado com a nova perspectiva aberta pela marginalização.  Não é somente o normal que determina a norma, pois o marginal insinua o que precisa ser, de novo, normatizado.


Pois, os cooperativistas do ramo trabalho, por tanto tempo marginalizados, só abriram uma perspectiva nova para a Lei, quando admitiram que Lei é o que  dá garantias fundamentais de um trabalho digno.  Encontramos o futuro que Antígona e Creonte perderam.