sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Os desafios do Profissional de Proteção e Segurança de Dados para com Assembleias Virtuais em Cooperativas

 

Para ler o artigo na Revista:  

https://www.dpomag.com/03/#p=78 

Para assistir uma apresentação em video

https://www.youtube.com/watch?v=KMtydRD159Q






Em um mundo ideal o ordenamento jurídico acompanha fielmente as evoluções sociais adequando-se quase que de forma automática e intuitiva a este. Movimento diferente, no entanto, verificamos no mundo real em que os desafios jurídicos se impõem a cada mudança social.

No contexto das Cooperativas brasileiras, a adoção de recursos tecnológicos para as Assembleias Gerais sempre foi postergada e resistida, apesar de não haver nenhuma restrição legal para a sua prática. Muito se questionava quanto à segurança e privacidade conferida aos dados pessoais dos cooperados e associados no ambiente virtual.

Diante da pandemia, no entanto, o mundo parou e todos, sem exceção, precisaram repensar seu modus operandi para dar seguimento às suas atividades e obrigações, e como não poderia deixar de ser, tal reflexão também foi imposta às Cooperativas.

A mudança do presencial para o virtual que poderia ter sido pensada e implementada com um amplo cronograma, baseado em testes e validações, se tornou uma necessidade imperiosa e emergencial. Uma necessidade que não poderia ser atendida, por sua vez, sem a devida observação da Lei Geral de Proteção de Dados[1], a LGPD, que naquele momento estava prestes a entrar em vigor no Brasil.

Evidentemente que as adversidades das Cooperativas, no que concerne ao tratamento de dados pessoais são independentes das Assembleias Gerais serem realizadas de modo presencial ou virtual, afinal a lei se aplica tanto ao tratamento de arquivos físicos quanto digitais.

Frente ao novo cenário, uma das grandes dificuldades enfrentadas pelas Cooperativas, passou a ser então como garantir a segurança no tratamento dos dados pessoais dos titulares para o pleno exercício do direito de voto e cumprimento das demais obrigações dentro dos prazos legais impostos às Assembleias Gerais.

Na governança dos dados pessoais dos cooperados e associados, os administradores, cuja responsabilidade é conferida através da Política Nacional de Cooperativismo[2], passam a contar com o auxílio de um novo profissional, denominado pela LGPD como Encarregado, o que seria semelhante à figura do DPO (Data Protection Officer) no Regulamento Europeu (Regulamento Geral de Proteção de Dados[3]).

Esse profissional chega às Cooperativas com a tarefa de auxiliar o gestor a exercer suas atividades, de modo que cada um se concentre nas especificidades de suas funções. De um lado o gestor, garantindo o exercício da democracia, de outro o profissional de proteção e segurança de dados, proporcionando que o processo seja realizado de forma segura.

Mas os desafios não são poucos! Um dos grandes desafios a que esse profissional é submetido, é o de fazer com que os princípios elencados no art. 6º da LGPD sejam incorporados nas rotinas das Cooperativas, assim como os direitos dos titulares, relacionados no art. 7º, sejam assegurados durante todo o ciclo de vida dos dados.

Vale destacar que as demandas do profissional de proteção e segurança de dados não se limitam ao cumprimento dos aspectos jurídicos exigidos, muito pelo contrário, a complexidade de suas atividades o impulsiona a enfrentar também desafios tecnológicos, de gestão de processos e éticos no exercício de suas funções.

Sob a perspectiva tecnológica, cabe a este profissional garantir aos dados pessoais dos titulares, a confidencialidade, integridade, disponibilidade e autenticidade necessárias para que a democracia seja exercida, permitindo assim que as Cooperativas, cumpram com o seu papel na sociedade.

 Confidencialidade, integridade, disponibilidade e autenticidade  remetem à ética necessária para o exercício da democracia. Trata-se aqui de valores e apelos.

Mas a urgência ética não se encontra nem na tecnologia nem na política, no sentido estrito da prática. Ela se encontra nos rostos. Visages[4], escreveu Emmanuel Lévinas. Ele pontuou muito bem que só a moral é alcançada por um pensamento abstrato-categórico; e a concretude da ética tampouco se submete inteiramente a um plexo lógico-procedimental. Complexo, não é o que sempre nos parece? Bastante lembrar de Crime e Castigo[5], de Dostoiévski.  Os problemas éticos expostos aí são intratáveis pela abstração ou qualquer forma sequencial de análise. No entanto, indiscutível que seu protagonista seja um personagem universal: ele fala de todos nós, sem exceção. 

Também Gogol e Tchekov foram hábeis em nos dar personagens assim. Muito por conta da identidade cultural deles com a raiz bizantina marcadamente iconográfica.  Todo ícone carrega intencionalidade, visceralidade e dramaticidade. Não são “pilares”; são rostos.  Visages.

Confidencialidade, integridade, disponibilidade e autenticidade dão coesão ao desafio das assembleias digitais das Cooperativas, mas também são divisores de águas. São o oceano, mas também o quebra-mar. Porquê? O profissional lida com os pilares. E o gestor?  Claro! Com os rostos dos cooperados.

A LGPD traz nela muito de conceção e visão de mundo próprias da cultura de integridade e conformidade que é um rebento da sociedade e gestão de riscos. Ao se examinar a literatura de integridade e conformidade (compliance), a expressão “pilar” é recorrente. Os “pilares” costumam variar de número e de nomenclatura. Porém, eles têm algo em comum: são construtos. Estão mais ligados à ideia de fundação encontrada na engenharia. Pois são funcionais: visam um resultado dado desde o início: uma eficácia para o que se apresente por “estar em conformidade”, como se os pilares da terra existissem sempre para se erguer catedrais. No nosso caso, em breve analogia à gestão, são catedrais de processos e normativas,tópico de intervenção do profissional de proteção de dados. Mas, catedrais nunca serão universais por mais funcionais que sejam para uma pretensão neste sentido. O que for universal será algo mais visceral. O fundamento fenomênico da integridade nunca é construído, mas percebido num (bom) senso.

O profissional de Proteção de Dados é neste cenário, o meio, o “pilar” que faz a conexão entre o propósito das Cooperativas e os desejos e garantias dos titulares cooperados e associados. Via de consequência, é possível revelar que parte do desafio enfrentado por ele é o de perceber a dinâmica de funcionalidade da Cooperativa e seus complexos fluxos de processos.

A compreensão de qual é a finalidade da Cooperativa e da Assembleia Geral, que em linhas gerais é o desenvolvimento local e a gestão democrática, deve ser perquirida de forma pormenorizada pelo Profissional de Proteção de Dados, a fim de que os dados pessoais sejam devidamente protegidos, sem que isso tire o protagonismo do propósito da Cooperativa.

Em síntese, as sociedades democráticas de mercado se mostraram hábeis e se lançaram à aceleração tecnológica em geração exponencial de dados: um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é decorrente, e com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a resiliência: a normatividade inflacionária de marcos regulatórios. Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia,


[1] Lei 13.709/18

[2] Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971

[3] Regulamento (UE) 2016/679

[4] Ética e infinito. Tradução: João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982

[5] Trad.  Oleg  Almeida.  São Paulo : Martin Claret, 2013


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