Cheguei cedo. Foi a
primeira e última vez que o Balanço da Mura saiu. Era o único tamborim na sua bateria, a gente já tocava com as Carmelitas e os pares que moravam na Francisco Muratori nos convidaram para essa brincadeira.
Avós confeccionavam os chapéus para a bateria, para mim, que não conheciam,
com plumas e palha. A bandeira,
costurada ali na calçada. Crianças nos
paralelepípedos brincavam ao sol e sombra dos sobrados. Alma de uma ladeira
bicentenária e espírito de comunidade viva unidos no encantamento de um
carnaval.
Mas a graça maior foi depois de descermos a Muratori. Os
moradores no bloco viraram na Mem de Sá em direção à Lavradio. Era um tempo de Lapa ainda meio sonolenta entre seus ciclos de boemia. Mas, as lavadeiras da noite
não hibernam. Elas estavam de pé onde sempre
estiveram. Como o tamborim vai na frente
com seu floreio bordando o ritmo, este foi o mais querido dos meus carnavais. Vi aquelas marginais de corpo industrial se
esquecerem surpresas de tudo mais para, cada uma delas, se coroarem ad hoc rainhas
e sambaram como se não houvesse amanhã.
Monarcas voluntárias de nossa bateria, riam agradecidas aquela
alegria com que as avós da Muratori nos abençoaram.
Passam-se os anos e reencontro este encantamento como sempre
vivo bem pertinho, ali na Inválidos. Desde 76, uma bateria de quem não tem lugar
no desfile das escolas na Sapucaí. Consolados, não poderiam mesmo fazer música senão num pequeno bloco de
moradores numa rua tão antiga quanto o entrudo.
É mesmo por um encanto de generosidade que todos brinquem e fica parecendo que a
própria Portela desfila seu manto azul e branco. As adamadas estavam, é claro, postas à testa
do cortejo. Tão antigas quanto a
rua. Todas alegres como sempre. Orfeu não faltou à festa.
Mas, em toda magia se esconde um abismo. O carnaval de rua no Rio há anos concorre com
a avenida na afluência. E o que era um
detalhe a mais na banda de Ipanema tomou conta da Farme, se espalhou pelos
bairros da zona sul. Alimentada pelo
lucro de um turismo sexual e por um certo modo de ver as coisas.
Dita a moda que família é feita de afeto. De estados que vem e vão. E como ventam os afetos, a felicidade está sempre
alhures numa ilusão dos relacionamentos de prateleira. Um lançamento pelo que a
gente suspira e se endivida para satisfação de acionistas. Só os cães e gatos, que não dialogam, para
fazerem companhia até a morte aos Narcisos nossos de cada dia. Por
isso, compreendo essa bioética que borra com afeto homens e animais.
Em véspera orgulhosa de pouco siso, passei por um fim
de bloco em Botafogo. Um fim de carnaval
em pleno domingo. Corpos embriagados se
buscavam e se devoravam como se isso fosse o fim do mundo. Com a vergonha dos bandos de micos no Horto,
quando encontram uma janela aberta na cozinha. No abrir e fechar das alas, desapareceram as
avós e as crianças às 9 horas da noite em Botafogo.
Exemplificam famílias diversas e elas existem de verdade, eu
creio, porque o amor é improvável, gerador de si mesmo. Mas, o
paradoxo de se tornarem exemplares no afeto é que nunca a solidão foi tão
presente.
O carnaval nasceu, quando Orfeu um dia fez adormecer o
Minotauro: “Orfeu ensinava enquanto
cantava (....) e o seu canto era de tal modo pujante que a natureza toda lhe
obedecia (....) os lobos quedavam-se perto dos veados e das corças. Que significa tudo isso? (....) Orfeu é encarnação da devoção e da piedade, (....) quando a alma se volta para o que está além de todos os
conflitos. (....) E, ao fazer isso, ele
é verdadeiramente Orfeu, isto é, o bom pastor, sua primeira encarnação.” (Linda
Fierz-David, apud Joseph L. Henderson em Os mitos e o homem moderno)
Mas, quando o erótico ultrapassa o lúdico, o carnaval é sua Eurídice, que morre. Nessa morte, o ancestral tributo de horror volta a ser cobrado em devoradores, devastadores e insaciáveis desejos. Um
apocalipse zumbi no labirinto de Creta. Tristeza da qual a Inválidos me resgata na
segunda-feira. As famílias estão fundadas na transcendente promessa de eternidade: disso me lembro até no carnaval, quando
reencontro a Tia Yvone, e ela me diz que não iria sair esta noite, mas me viu e
se animou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário