terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Orfeu do Carnaval

Cheguei cedo.  Foi a primeira e última vez que o Balanço da Mura saiu.  Era o único tamborim na sua bateria, a gente já tocava com as Carmelitas e os pares que moravam na Francisco Muratori nos convidaram para essa brincadeira.  Avós confeccionavam os chapéus para a bateria, para mim, que não conheciam, com plumas e palha.  A bandeira, costurada ali na calçada.  Crianças nos paralelepípedos brincavam ao sol e sombra dos sobrados. Alma de uma ladeira bicentenária e espírito de comunidade viva unidos no encantamento de um carnaval. 

Mas a graça maior foi depois de descermos a Muratori. Os moradores no bloco viraram na Mem de Sá em direção à Lavradio.  Era um tempo de Lapa ainda meio sonolenta entre seus ciclos de boemia.    Mas, as lavadeiras da noite não hibernam.  Elas estavam de pé onde sempre estiveram.  Como o tamborim vai na frente com seu floreio bordando o ritmo, este foi o mais querido dos meus carnavais.  Vi aquelas marginais de corpo industrial se esquecerem surpresas de tudo mais para, cada uma delas, se coroarem ad hoc rainhas e sambaram como se não houvesse amanhã.  Monarcas voluntárias de nossa bateria, riam agradecidas aquela alegria com que as avós da Muratori nos abençoaram.

Passam-se os anos e reencontro este encantamento como sempre vivo bem pertinho, ali na Inválidos.    Desde 76, uma bateria de quem não tem lugar no desfile das escolas na Sapucaí.  Consolados, não poderiam mesmo fazer música senão num pequeno bloco de moradores numa rua tão antiga quanto o entrudo.  É mesmo por um encanto de generosidade que todos brinquem e fica parecendo que a própria Portela desfila seu manto azul e branco.  As adamadas estavam, é claro, postas à testa do cortejo.  Tão antigas quanto a rua.  Todas alegres como sempre.  Orfeu não faltou à festa. 

Mas, em toda magia se esconde um abismo.  O carnaval de rua no Rio há anos concorre com a avenida na afluência.  E o que era um detalhe a mais na banda de Ipanema tomou conta da Farme, se espalhou pelos bairros da zona sul.  Alimentada pelo lucro de um turismo sexual e por um certo modo de ver as coisas.

Dita a moda que família é feita de afeto.  De estados que vem e vão.  E como ventam os afetos, a felicidade está sempre alhures numa ilusão dos relacionamentos de prateleira. Um lançamento pelo que a gente suspira e se endivida para satisfação de acionistas.  Só os cães e gatos, que não dialogam, para fazerem companhia até a morte aos Narcisos nossos de cada dia.   Por isso, compreendo essa bioética que borra com afeto homens e animais.

Em véspera orgulhosa de pouco siso, passei por um fim de bloco em Botafogo.  Um fim de carnaval em pleno domingo.  Corpos embriagados se buscavam e se devoravam como se isso fosse o fim do mundo.  Com a vergonha dos bandos de micos no Horto, quando encontram uma janela aberta na cozinha.  No abrir e fechar das alas, desapareceram as avós e as crianças às 9 horas da noite em Botafogo.

Exemplificam famílias diversas e elas existem de verdade, eu creio, porque o amor é improvável, gerador de si mesmo. Mas, o paradoxo de se tornarem exemplares no afeto é que nunca a solidão foi tão presente.

O carnaval nasceu, quando Orfeu um dia fez adormecer o Minotauro:  “Orfeu ensinava enquanto cantava (....) e o seu canto era de tal modo pujante que a natureza toda lhe obedecia (....) os lobos quedavam-se perto dos veados e das corças.  Que significa tudo isso? (....)  Orfeu é encarnação da devoção e da piedade, (....) quando a alma se volta para o que está além de todos os conflitos.  (....) E, ao fazer isso, ele é verdadeiramente Orfeu, isto é, o bom pastor, sua primeira encarnação.” (Linda Fierz-David, apud Joseph L. Henderson em Os mitos e o homem moderno)   

Mas, quando o erótico ultrapassa o lúdico, o carnaval é sua Eurídice, que morre. Nessa morte, o ancestral tributo de horror volta a ser cobrado em devoradores, devastadores e insaciáveis desejos. Um apocalipse zumbi no labirinto de Creta.   Tristeza da qual a Inválidos me resgata na segunda-feira.  As famílias estão fundadas na transcendente promessa de eternidade: disso me lembro até no carnaval, quando reencontro a Tia Yvone, e ela me diz que não iria sair esta noite, mas me viu e se animou.


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