sábado, 28 de fevereiro de 2015

Diálogo e Direito

Este retrato é uma representação do Pai da Europa. E ele traz ambas as mãos ocupadas.  Basta uma gugada para encontrar uma explicação que vai lhe soar de uma obviedade ululante: são símbolos do poder.  Decomposto em autoridades secular e religiosa.

Esta é uma significação própria de uma época em que já está introjetado no senso comum o pensamento analítico, esse que percebe o real como complexo.  Quando formulamos um pensamento analítico, nos sentimos esclarecidos.  Uma análise rigorosa é o que nos convence da verdade.

Mas, este retrato foi pintado no fim de uma outra época; em que era narrativa a expressão mais convincente da realidade.  A espada e a bola então guardam significados que se mostram mais evidentes no enquadramento:  o Pai da Europa conquistou (a espada) um império (o globo) unindo na cristandade (a cruz) os germanos (a águia) e os francos (os lírios).

A variação das significações que diferenciam épocas nos fala das peripécias do pensamento. Ambas leituras do retrato são europeias.  Porque começam pela pergunta "Que é isso?".  É a tradição do grego antigo, que colocou o "que" no centro do pensamento, tal como na frase mais conhecida de filosofia: "sei que nada sei".  Sendo europeus ambos os pensamentos nos signos do retrato, não são antitéticos do poder político.  Em que pese serem uma expressão medieval da verdade e outra, moderna.    A realidade aparece na ginga das épocas: a peripécia do pensamento.

É assim:  no aparecimento do "que" no que algo é, a realidade é uma dinâmica entre lembrança e esquecimento, evidenciação e ocultação.  Essa dinâmica se dá numa relação entre o " para que" e o "com quem".

Olha a água!  Se eu grito isso, o que atrairá o seu olhar?  Parece de novo óbvio e ululante: para o líquido que enche um copo sobre a mesa ou o mar.  E que não haveria verdade objetiva num olhar que se voltou para uma parede.  Vai ver, realmente a pessoa nem escutou o que gritei.  Mas, pode  ser um poeta que, ao escutar meu grito, o ouviu tão verdadeiramente que teve seu olhar atraído à dança sinuosa das luzes na parede junto de uma piscina iluminada pelo sol do inverno às suas costas.

Há duas afirmações então para que seja verdade com quem a vivencia: a verdade volta-se para alguém, pois ela não é visível senão fazendo-se em alguém.  Mas, a verdade se mostra transparente num diálogo entre visões.  

No Direito, a ideia de família está evoluindo ou decaindo?  Nada pode nos deixar menos indiferentes, pois a ideia de família traz consigo as mais antigas memórias sócio-genéticas da humanidade: a sexualidade, a cooperação e o lar.  Você pode ter uma opinião contra ou a favor do Estatuto da Família, mas em todo caso haverá uma palavra comovente na sua boca:  amor.  


Se você tem certeza de que a família está em transformação, muito provavelmente também tem certeza de que o amor se realiza na correspondência.  A família resulta do afeto.  Portanto, não cabe ao Direito predeterminar a conformação da família, mas desdobrar os direitos humanos na transitoriedade dos estados afetivos que a conformam.  O dever está na observação da raposa para o pequeno príncipe: tu te tornas responsável por quem cativas.

Mas, é possível uma certeza de que a verdade sobre a família não seja menos transparente por uma análise rigorosa dos direitos humanos quanto é pela narrativa de Caim e Abel.  Esqueça que se trata de uma narrativa contida num texto canônico ou talmúdico.  Bastante admitir que é uma narrativa arquetípica. Importa que Abel se tornou insuportável para Caim a ponto de sua aniquilação.  Mas, por Abel lhe ser familiar, Caim foi condenado.  Irrelevante que Abel tivesse algum direito à vida: Caim sofreu a inapelável solidão de ter se livrado de seu irmão.  

Essa narrativa então mostra o que há intemporal na família, que traz desde tempos imemoriais a memória de uma pessoa não querida. A família se mostra na rejeição ao abandono e portanto não depende do afeto.

Isso leva ao dilema fundamental no contexto do debate em torno do Estatuto da Família. O que família vem a ser então se mostra na celebração das bodas de ouro de sua avó e você lhe pergunta como ela conseguiu manter seu casamento por tantos anos.  Ela, suspirando as suas cicatrizes, lhe responde: fechando os olhos.  E você então pensa ou que não estará à altura dela em manter uma família, ou se lembra que o Estado Democrático de Direito lhe permite evitar esses sofrimentos evocados no suspiro mesmo sem abrir mão de gozar sua sexualidade, de contar com a cooperação no dia-a-dia e de ter um lar para chamar de seu.  

Em todo caso, o paradigma da família permanece o mesmo como fenômeno puro de proteção ancestral, tão concreta quanto a cor herdada na pele: o masculino  é o fundador da família ao decidir-se por se quedar junto ao feminino, que gesta e amamenta um terceiro cuja presença não foi querida.  Importa tanto as variações circunstanciais dessas funções sócio-genéticas exercidas e mediadas nas sociedades contemporâneas, quanto a preservação da memória arquetípica dessas identidades como expressão máxima do justo.

  foto 2: http://contopromundover.blogspot.com.br/
  foto 5: Joca Faria's Photography

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Diálogo e Fé

Serão o erro ou a mentira os opostos do pensamento?  Quem erra, está pensando errado.    E quem mente, pensa a mentira que conta.  E a convicção?  Quem é convicto de algo, já não pensa nisso, pois o pensamento aí é dado.

Uma das mais traiçoeiras convicções contemporâneas flerta com os direitos humanos.  Longe de mim negar a dignidade humana, mas é perceptível no discurso banal sobre direitos humanos que o humano é dado pelo direito.  Se toda diversidade, liberdade e igualdade passa a ser uma questão de direito, quem é afinal um ser humano?  Esquecida a ambigüidade ética e ontológica do ser aí, é um ser menos quem do quê vazio, embora preenchido de conquistas políticas para si. 

Mas, a velha hybris trágica, tão antiga memória de nossa mortalidade quanto são as Fúrias divinas, mesmo escanteada na convicção contemporânea convicta de seu humanismo, se mostra nos ressentimentos dos seres mimados em meio a tanta expectativa de direito nessa panaceia iluminista. 

O noticiário tem oferecido oportunidade para a lembrança de um filme ítalo-francês datado de 1960, contando com a inesquecível Jeanne Moreau no elenco.  Trata-se do Le Dialogue des Carmélites.  Uma curiosidade é tratar-se de uma adaptação da obra última de Georges Bernanos, um escritor que por aqui no Brasil esteve exilado durante os sombrios anos da última ocupação em França.

O argumento do filme constrói a trama com um conceito.  A partir do querigma, é possível compreender a coerência nos destinos das protagonistas (a personagem de Jeanne e a Irmã Blanche).  Diante da escalada de violência nos acontecimentos históricos retratados, uma se propõe resolutamente ao martírio pela fé.  A outra duvida de sua própria fé e questiona  o martírio.  À primeira o martírio é recusado, mas a segunda, apesar de suas ressalvas, lança-se  a ele.  Ambos  destinos em contraste são libertadores.

O querigma no contexto de hoje não só diz do que tenho a dizer ou fazer valer da fé professada, mas sobretudo do que a fé diz e faz do outro para mim para que eu espere algo de amoroso para dizer e fazer a ele.  É o que o Papa Francisco veio dizer:  "A experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente no amor.  Neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer, enriquece nosso olhar". 

Onde os ideais iluministas se enraizaram na cultura, os receios de cerceamento da liberdade e da perda da autonomia do sujeito por imposições intransigentes tendem a exilar a verdade nos fatos e cálculos e a encarcerar o amor, a esperança e a fé no interior dos nossos afetos. O que até é capaz de confortar o indivíduo, mas faz o amor, a fé e a esperança difíceis de serem propostos como realizações comuns.

Se é difícil compreender que as confissões abrâmicas não podem ser reduzidas a uma amálgama de variantes subjetivas da espiritualidade e plexos objetivamente patriarcais em uma ingênua leitura de Estado laico a partir dos ideais iluministas, o querigma pode ser uma armadilha para o crente orgulhoso ou ressentido. Levada ao extremo na política, essa leitura induz ao desejo violento de reparação à ofensa como mortificação pela fé, conquista de vida eterna e merecimento ao amor divino.  Eis a degeneração do querigma num frenesi de morte:  a ilusão de que com a observância meticulosa de textos de Lei, e não com a misericórdia, garante-se a justificação - a salvação eterna.   

O querigma pode ser sintetizado assim: Deus é amor e o amor tudo vence; vence até a morte. Significa dizer que a vitória sobre o mal não é futura por dependência da ação humana; ela já se deu na revelação dos dons de Deus - a fé, a esperança e o amor - que inspiram as virtudes cardinais: temperança, sabedoria, fortaleza e prudência.  O que não temos é a compreensão de todo o alcance desse absoluto já revelado.  Essa compreensão plena de toda verdade da fé por todos é esperada para o fim dos tempos.

Se a compreensão por todos de toda a verdade da fé é futura, guarda esperança de salvação para todos até o final, pois assim como era no princípio, agora e sempre, a verdade é atraída para um norte: a presença do amor. A dificuldade de compreensão dos fatos recentes pelo esclarecimento, no sentido dado pela modernidade é a seguinte:  não é que religiões diversas se equivalham em explicações lógicas e observações de causas como um sobrevôo do eu  sobre si no mundo. Significa antes a recepção amorosa de cada um dos credos no que nelas é único, verdadeiro, absoluto. Em cada uma, em diálogo, encontrar essa unicidade, essa verdade e esse absoluto que se encontram na diversidade das sutilezas.

O Estado permanece laico, quando trata cada religião como única em sua singularidade.  Trata-se de uma hospitalidade no espaço público para com cada pessoa religiosa. É difícil, pois a singularidade de cada religião exige que o Estado esteja poroso e integrado às religiões e ainda preserve a opção de alguém ser ateu. É um desafio permanente, mas em cada tradição religiosa o Estado laico pode reconhecer aquilo que está identificado com suas próprias valorações dirigidas para o bem comum. 

O desafio se encontra na dinâmica entre liberdade, transgressão e reparação.  Em qualquer caso, ainda que haja reparações a fazer, a existência do transgressor é fundamental para a própria vivência histórica da fé. Para que ela não se degenere nem em tolice, nem em crueldade.  De certo modo, este é um sentido revelado desde a luta entre Jacó e Deus com a qual seus filhos vieram a ser filhos de Israel. Daí o lugar da transgressão na coexistência humana, na qual o amor e a esperança são fontes da tolerância e do perdão.  A transgressão é o que põe a humanidade em movimento na direção do fim dos tempos, que vem a ser compreensão plena de toda verdade da fé.  .  


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Orfeu do Carnaval

Cheguei cedo.  Foi a primeira e última vez que o Balanço da Mura saiu.  Era o único tamborim na sua bateria, a gente já tocava com as Carmelitas e os pares que moravam na Francisco Muratori nos convidaram para essa brincadeira.  Avós confeccionavam os chapéus para a bateria, para mim, que não conheciam, com plumas e palha.  A bandeira, costurada ali na calçada.  Crianças nos paralelepípedos brincavam ao sol e sombra dos sobrados. Alma de uma ladeira bicentenária e espírito de comunidade viva unidos no encantamento de um carnaval. 

Mas a graça maior foi depois de descermos a Muratori. Os moradores no bloco viraram na Mem de Sá em direção à Lavradio.  Era um tempo de Lapa ainda meio sonolenta entre seus ciclos de boemia.    Mas, as lavadeiras da noite não hibernam.  Elas estavam de pé onde sempre estiveram.  Como o tamborim vai na frente com seu floreio bordando o ritmo, este foi o mais querido dos meus carnavais.  Vi aquelas marginais de corpo industrial se esquecerem surpresas de tudo mais para, cada uma delas, se coroarem ad hoc rainhas e sambaram como se não houvesse amanhã.  Monarcas voluntárias de nossa bateria, riam agradecidas aquela alegria com que as avós da Muratori nos abençoaram.

Passam-se os anos e reencontro este encantamento como sempre vivo bem pertinho, ali na Inválidos.    Desde 76, uma bateria de quem não tem lugar no desfile das escolas na Sapucaí.  Consolados, não poderiam mesmo fazer música senão num pequeno bloco de moradores numa rua tão antiga quanto o entrudo.  É mesmo por um encanto de generosidade que todos brinquem e fica parecendo que a própria Portela desfila seu manto azul e branco.  As adamadas estavam, é claro, postas à testa do cortejo.  Tão antigas quanto a rua.  Todas alegres como sempre.  Orfeu não faltou à festa. 

Mas, em toda magia se esconde um abismo.  O carnaval de rua no Rio há anos concorre com a avenida na afluência.  E o que era um detalhe a mais na banda de Ipanema tomou conta da Farme, se espalhou pelos bairros da zona sul.  Alimentada pelo lucro de um turismo sexual e por um certo modo de ver as coisas.

Dita a moda que família é feita de afeto.  De estados que vem e vão.  E como ventam os afetos, a felicidade está sempre alhures numa ilusão dos relacionamentos de prateleira. Um lançamento pelo que a gente suspira e se endivida para satisfação de acionistas.  Só os cães e gatos, que não dialogam, para fazerem companhia até a morte aos Narcisos nossos de cada dia.   Por isso, compreendo essa bioética que borra com afeto homens e animais.

Em véspera orgulhosa de pouco siso, passei por um fim de bloco em Botafogo.  Um fim de carnaval em pleno domingo.  Corpos embriagados se buscavam e se devoravam como se isso fosse o fim do mundo.  Com a vergonha dos bandos de micos no Horto, quando encontram uma janela aberta na cozinha.  No abrir e fechar das alas, desapareceram as avós e as crianças às 9 horas da noite em Botafogo.

Exemplificam famílias diversas e elas existem de verdade, eu creio, porque o amor é improvável, gerador de si mesmo. Mas, o paradoxo de se tornarem exemplares no afeto é que nunca a solidão foi tão presente.

O carnaval nasceu, quando Orfeu um dia fez adormecer o Minotauro:  “Orfeu ensinava enquanto cantava (....) e o seu canto era de tal modo pujante que a natureza toda lhe obedecia (....) os lobos quedavam-se perto dos veados e das corças.  Que significa tudo isso? (....)  Orfeu é encarnação da devoção e da piedade, (....) quando a alma se volta para o que está além de todos os conflitos.  (....) E, ao fazer isso, ele é verdadeiramente Orfeu, isto é, o bom pastor, sua primeira encarnação.” (Linda Fierz-David, apud Joseph L. Henderson em Os mitos e o homem moderno)   

Mas, quando o erótico ultrapassa o lúdico, o carnaval é sua Eurídice, que morre. Nessa morte, o ancestral tributo de horror volta a ser cobrado em devoradores, devastadores e insaciáveis desejos. Um apocalipse zumbi no labirinto de Creta.   Tristeza da qual a Inválidos me resgata na segunda-feira.  As famílias estão fundadas na transcendente promessa de eternidade: disso me lembro até no carnaval, quando reencontro a Tia Yvone, e ela me diz que não iria sair esta noite, mas me viu e se animou.