sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Timon, Ela e o Mágico

Um dia de mágico tive ao levar minha filha de 12 anos ao teatro.  Não um teatro qualquer, mas à Casa da Europa para a encenação de Timon de Atenas, texto de William Shakespeare com adaptação chancelada pelo Teatro Nacional de Londres, traduzida por Barbara Heliodora, produção, direção e interpretação profissionais que de melhor se pode realizar no Brasil.  Enfim, proporcionei um encantamento a quem teve seu primeiro contato com um teatro espetacular em todos os sentidos.  

Não que ela estivesse totalmente despreparada.  Ela já fez curso de teatro na CAL e, claro, assistiu boas encenações para o público infantil.  Mesmo, a vinha este ano levando no Teatro Ziembinsky à noite.  Este preparo lhe permitiu  contemplar melhor o quilate da peça diante de seus olhos, que para ela era eu quem lhe proporcionava.  E os aplausos ao fim do espetáculo também eram para mim.  Para mim, num comentário espontâneo dela (isto é, sem que eu lhe provocasse com um e aí, gostou?) durante as palmas:  Nossa, que legal!  Se tivesse eu uma cartola, ali faria uma mesura.

Mas, até agora, falei da encenação.  E qual foi o truque deste mágico aqui?  A adaptação traz a peça para uma cena contemporânea, enfatizada pela montagem com visões das manifestações agora lembradas como jornadas de junho.  No entreato, fiz-lhe esta pergunta:  Por que essa peça mostra tudo passando hoje, e não na época dos gregos antigos como diz o texto de Shakespeare?  Pronto, a cara de surpresa dela era o que eu esperava e então tirei o coelho da cartola:  É para mostrar o que Shakespeare quer mostrar... o que aconteceu na época dos gregos, que acontecia na época em que ele vivia e que também acontece hoje.  E sorvi o vinho dos mágicos, a iluminação em seu rosto diante do coelho nas minhas mãos.  Aí era os talentos da autoria, adaptação, tradução, direção, produção e interpretação que proporcionavam naquela garota, diante de uma simples pergunta e sugestão da minha parte, alguma coisa próxima de uma sessão de Gestalt-terapia.  Seu rosto a acusou atravessada pelo contato com a realidade na realização do real.


Timon facilitou que eu me fizesse feiticeiro para ela.  É um personagem diferente de Otelo, Liar, Hamlet e Macbeth.  Shakespeare não está tanto interessado na personalidade do personagem como está na personalidade do público.  Demonstrando seu domínio sobre o assunto, Barbara Heliodora relaciona o momento em que Shakespeare concebeu Timon com as mudanças por ele vivenciadas no fim do reinado de Elizabeth e os primeiros anos da regência de Jaime I.  Timon denuncia que Shakespeare percebia junto à crescente sofisticação intelectual da Corte um declínio dissimulado da nobreza na aristocracia inglesa.  

A certa altura, Apemantus sintetiza o personagem que é Timon:  antes, louco; agora, tolo.  Em dois atos, a peça propõe uma mudança falsa.  Timon opulento e Timon miserável.  Falsa, porque nada muda em Timon.  A autoestima alimentada com elogios e atenções que recebe o inebria a ponto de acreditá-las provas da graça a que se julga merecedor por pródigo em favores e agrados a quem lhe envolve com sorrisos e solicitações.  O choque de consciência da fragilidade dos seus laços atados com poder e riqueza  não o torna mais sábio, porém ressentido.  O poder e a riqueza não são  resultados de manipulações e cálculos, mas são um direito seu pela dignidade de seu porte.  As manipulações e os cálculos então são tomados por usurpação do que é seu por direito humano.  Então toma a rebeldia política e o  antagônico social por mudanças radicais.  O ressentimento não lhe permite antever que está dando a mesma rasteira em si mesmo.  Novamente traído, resta-lhe de seu túmulo um grito impotente:


- Canalhas! 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Da anedota à crônica

Três lobas.  Uma pequena matilha do ginásio que a professora tinha de separar para acabar com o zunzunzum durante a aula.  Não se viam havia décadas, mas se reencontraram algum tempo atrás pelo Facebook.  Depois de alguns fracassos, na agenda e do cotidiano de ex-mulheres com filhos, segundo casamento e profissões, finalmente a curiosidade venceu e se viram frente a frente para refletirem as próprias trajetórias nas diferenças uma com as outras.  Num bar qualquer, se mediram e repararam até nos cotovelos entre sorrisos e beijos.  

Na medida das tulipas, foram se envolvendo nas amenidades do papo até que a mentira lhes pareceu verdadeira.  As marcas do tempo nos rostos que olhavam se desvaneciam e o que havia milênios tinha sido ontem.

Então, uma delas propôs um sinal de que uma amizade como aquela não acabava nunca: contariam cada uma às outras um segredo.  No indistinto brilho do olhar alcoólico ou aventureiro, atalhou: 

- Sou adúltera, tenho um amante.  

No que foi secundada em meio às gargalhadas com um disparo à altura: 

- Sou bissexual, tenho uma amante. 

Foi quando dois olhares então pousaram na que de olhos baixos nas suas próprias mãos pousadas sobre a mesa esboçava um sorriso de delícia antecipada:  

- Vocês sabem como é... continuo a mesma... sou fofoqueira. 

sábado, 1 de novembro de 2014

A Decadência de Drácula

Decadência não necessariamente diz de corrupção.  Diz mais do tempo para que mais do mesmo pensamento exponha os limites de sua realização.  Desse tempo de decadência para descoberta dos limites, a degeneração para o pensamento de uma época.

A decadência de um mito diz tanto de sua passagem quanto de sua permanência.  Gary Shore se propôs a recontar mais uma vez a estória de Drácula. Nada menos do que uma remissão ao Sétimo Selo - película que entra fácil numa lista de filmes inesquecíveis.  No Drácula, como no xadrez, há um diálogo entre o guerreiro e a morte em que ela nunca perde, mas ao guerreiro jogar, ganha a imortalidade num trânsito para o imaginário. 



O filme de Gary Shore mostra a decadência do mito desde o livro de Bram Stoker.  Pode-se dizer que o cruzado moderno não se eterniza por Deus, pela pátria ou alguma utopia no jogo com a morte, mas por amor.  E na decadência do amor, no trânsito das banalidades cartoriais que se diz liberdade civil, então Drácula desloca o seu foco para o que era impensável no romance original: a sacralização do filho em idade escolar.  Aí, o xadrez radical entre o guerreiro e a morte aparece normalizado na disposição de vôo à jugular de outrem.  Que o digam os professores depois de mais uma reunião de pais.  Mais ou menos o que acontece no mês de aniversário dos Supermercados Guanabara.


E talvez Dracula tenha escolhido então uma maneira eloquente de contar a  sua degeneração:  na ética e na estética, ele se tornou um mutante X Men!