Foi com prazer que participei desse projeto editorial lançado no mercado. Coube-me a honrosa tarefa de redigir um texto de propedêutica principiológica e axiológica para o Direito Tributário.
Era madrugada
quando o policial encontrou um bêbado engatinhando ao pé do poste. Parou para observar a cena. Depois de um tempo, um pouco por curiosidade,
mais por dever de profissão, perguntou ao ébrio o que era aquilo ali. “Estou
procurando as minhas chaves. Perdi na alameda”.
Agora, sim, o guarda ficou interessado. “Mas, e
por que você está procurando elas aí, e não lá?”. E o bêbado: “Porque aqui é
onde tem luz.”
Esta é uma anedota
prenhe de humor judaico, este
que costuma recorrer à ironia, à associação entre o Éden e o divã e a explorar
o quão tênue é o limite entre o lógico e o absurdo[1]. Foi contado também por David Mamet, em Teatro.[2] Trata-se de uma metáfora da condição
humana. Tanto o policial como o bêbado e
a própria cena dizem de cada um de nós.
Num estado de sofrimento e angústia existencial, estamos na alameda
escura. Somos o bêbado que lá perde as
chaves de casa – o Heimat, isto é,
perdida uma unidade plena entre o sentir-se bem e o sentido de presença (talvez
uma nostalgia do útero materno?) sem o qual sentimo-nos estrangeiros[3]
da perspectiva de nossa própria visão de mundo (Weltschauung). Mas, somos
atraídos para a lucidez junto ao poste – a razão, porque simplesmente nos é
insuportável viver vagando pela alameda escura, quando já estamos sem as chaves
de casa. Lá encontramos o policial -
nossas certezas ordeiras - nossa própria
recusa em procurar pelas chaves na
escuridão da alameda – alguém que nós mesmos, ébrios, tomamos por íntegro e
prestativo a nos ajudar com as chaves, para o qual portanto nos apressamos a
dar explicações que julgamos convincentes e talvez sinceras. David Mamet lembra que, sendo nós partícipes
de uma democracia, não apenas nos importamos com as causas (quaisquer que
sejam), mas nos apreciamos dizendo que nos importamos com essas causas. Sobretudo por esta causa, valorizamos nosso
direito de nos importar.
O
autor de Sucesso a qualquer preço postula
que todo drama se enreda em alguma convicção do protagonista que vai sendo
despedaçada pela trama. Uma situação
avaliada erroneamente ou visada de algum modo distorcido, o que o protagonista
irá descobrir, ou já tendo descoberto desde o início, ele sente precisar
encoberta até o fim. Quando a mimese se
esgota, o drama acaba[4]:
No bom drama
descobrimos que a liberdade pode estar mais além e ser alcançada por meio do
questionamento doloroso daquilo que antes era visto como inquestionável. (....)
É possível
existir espetáculo politicamente correto, mas é impossível existir drama
politicamente correto. O próprio termo
deveria causar repulsa em qualquer um que valorize a democracia e esta que é a
mais democrática das artes, o teatro.
Ora, então, o dramaturgo não está a dizer apenas
do teatro, embora fosse esse o seu propósito no texto. O texto diz também, ainda que indiretamente,
do Direito. Enquanto o teatro nos
convida a voltar prazerosamente (porque acompanhando o enredamento do
protagonista) para a alameda escura, o Direito nos convoca a examinar mais
detidamente a relação entre o policial e o ébrio sob o poste, falando eles a
respeito das chaves. Mas, é muito
importante ressaltar - e isso diz muito da Democracia: as chaves estão perdidas
e não será junto ao poste que serão encontradas!
[1] Conferir
SCLIAR, Moacyr; FINZI, Patricia; TOKER, Eliahy.
Humor Judaico. 4ª Ed.
São Paulo : Shalom/ Paulinas, 1990.
[2] Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira, 2014. p.
35.
[3] Ele
disse-me: - Entraremos no fundo da questão.
Sentou-se na cama e explicou-me que
tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera
recentemente no asilo. Procedera-se
então a um inquérito em Marengo. Os
investigadores tinham sabido que eu “dera provas de insensibilidade” no dia do
enterro. – Veja se compreende – disse o
advogado – custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação,
se eu não conseguir dar resposta. –
Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me
se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe.
Esta pergunta me espantou e parecia-me que não era capaz a fazer a
alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a
mim mesmo e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso
não queria dizer nada. Todos os seres
saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das
pessoas que amavam. Aqui, o advogado
cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado.
Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de
instrução (....) Fiz-lhe notar que essa
história não tinha nenhuma relação com o meu caso, mas ele respondeu-me que se
via bem que eu não conhecia a justiça de perto.
(CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Antônio Quadros. São Paulo : Abril, 1972. Pp. 85-86)
[4]
MAMET. Ob cit. p. 81
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