quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Primeiro Homem

Aos professores de meu filho, ofereço um pequeno trecho da obra de Camus.  Nestes tempos em que a Mme. de Beauvoir é vulgata no CPII, Camus é um bom convite à leitura.  Afinal, foi em Camus que Sartre se inspirou para conceituar engajamento.  Porque Camus foi resistente ativo (e sobreviveu) à ocupação nazista da França com uma ousadia que nem mesmo Sartre se atrevia a tanto.  Mesmo assim, Camus, um pied noir, recusou seu alinhamento com a Frente de Libertação Nacional. 


Não, não vou citar O homem revoltado, nem o mito de Sísifo.  Nem A peste, nem O estrangeiro.  Quando ele foi agraciado com o premio Nobel de literatura, ele escreveu uma carta de afetuoso reconhecimento ao seu professor do ensino fundamental.  Citarei O primeiro homem, o romance memorialista de sua Argelia, na qual Camus se traiu em vários trechos trocando o nome dum personagem, um professor, com o nome de seu professor.

O que pretendo com essa citação? Pedir-lhes que não mimem meu filho, enchendo-o de autocomplacência contrabandeada em discursos sobre democracia e luta em defesa de si mesmo, mesmo que escudado eticamente nalguma identidade coletiva.  Peço-lhes que me ajudem a torná-lo um homem, primeiro.

 (....) o ano passava a ser apenas uma sucessão de despertares apressados e dias mornos e precipitados.  O que havia de régio em sua vida de pobre, as riquezas insubstituíveis que desfrutava tão largamente, tão gulosamente, ele precisava perder para ganhar um pouco de dinheiro que não compraria a milionésima parte desses tesouros.  E no entanto compreendia que isso era necessário, e até mesmo uma coisa dentro dele, no momento de sua maior revolta, fazia com que sentisse orgulho por tê-lo feito.  Pois a única compensação desses verões sacrificados à miséria da mentira ele encontrara no dia de seu primeiro pagamento, quando, ao entrar na sala de jantar em que se encontravam a avó, descascando batatas que depois jogava num tacho com água, o tio Ernest que, sentado, catava as pulgas do paciente Brillant preso entre suas pernas, e a mãe, que acabara de chegar e desfazia num canto do aparador uma pequena trouxa de roupa suja que lhe tinham dado para lavar, Jacques se adiantara e colocara  sobre a mesa, sem dizer nada, a nota de cem francos e as grandes moedas que segurara na mão durante todo o trajeto.  Sem dizer nada, a avó empurrara uma moeda de vinte francos em sua direção e recolhera o resto.  Com a mão, ela tocara Catherine Cormery para chamar sua atenção e mostrar-lhe o dinheiro:
- Foi teu filho.
- Sim - disse ela, e seus olhos tristes acariciaram o menino por um segundo.  O tio balançava a cabeça, segurando Brillant, que pensava que seu suplício havia terminando.
- Bom, bom - dizia ele.  - Você, um homem.
Sim, ele era um homem, pagava um pouco do que devia, e a ideia de ter diminuído um pouco a miséria dessa casa enchia-o desse orgulho quase mau que os homens sentem quando começam a se sentir livres e não mais submissos a coisa alguma.  E na realidade, logo depois, na volta ao colégio, quando entrou no pátio do segundo ano, não era mais o menino desorientado que tinha deixado Belcourt de manhãzinha, cambaleando sobre seus sapatos ferrados, o coração apertado pela ideia do mundo desconhecido que o esperava, e o olhar que pousava agora sobre seus colegas tinha perdido um pouco da inocência.  Muitas coisas aliás começavam nesse momento a afastá-lo da criança que tinha sido.  E se um dia, ele, que aceitara pacientemente apanhar da avó como se isso fizesse parte das obrigações inevitáveis da vida de uma criança, tinha subitamente louco de raiva e violência lhe arrancado o chicote das mãos, e tão decidido a bater naquela cabeça branca cujos olhos claros e frios punham-no fora de si a ponto de a avó ter compreendido, recuado e ido trancar-se em seu quarto, gemendo com certeza sobre a infelicidade de ter educado crianças desnaturadas, mas já convencida de que nunca mais bateria em Jacques, o que de fato nunca mais fez, é que a criança na verdade estava morta nesse adolescente magro e musculoso, de cabelos emaranhados e olhar impetuoso, que tinha trabalhado todo o verão para trazer um salário para casa, que acabara de ser nomeado goleiro titular do time do ginásio e que, três dias antes, tinha sentido pela primeira vez, desfalecendo, o gosto da boca de uma moça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário