terça-feira, 19 de maio de 2015

A ÉTICA DA COOPERAÇÃO EM DIÁLOGO ENTRE O DISCURSO DA ALIANÇA COOPERATIVA INTERNACIONAL E O MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Sob a perspectiva do discurso institucional da Aliança Cooperativa Internacional positivado na sua Declaração sobre a Identidade Cooperativa publicada em 1995, "as cooperativas se baseiam nos valores da ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade.  Seguindo a tradição de seus fundadores, seus membros creem nos valores éticos de honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelos demais."  Juan Luis Moreno, debruçado  sobre o Informe (Analítico) da ACI sobre a Declaração sobre a Identidade Cooperativa,  esclareceu que "com relação a sua ética normativa, a ACI é utilitarista e entende os valores cooperativos como meios para alcançar um valor último, condições ótimas de vida humana".[i]   

Ocorre que a Declaração sobre a Identidade Cooperativa não explicitara qual é este valor último, que em um discurso utilitarista se evidenciaria se expressas quais seriam essas condições ótimas de vida humana.  Em 2013, a ACI então publicou seu Plano de Ação para uma Década Cooperativa, no qual afirma:  "Em 2020, teremos de ser capazes de voltar a olhar para 2012 como representando o ponto de viragem no ideal cooperativo, e o contributo que deu para a segurança, bem estar e felicidade das pessoas."  No discurso institucional da ACI, portanto, a felicidade se apresenta então como o valor último, o norte polar para o qual se voltam as práticas utilitaristas de otimização das condições de vida humana - a economia da felicidade a que se refere o documento da ACI.  

Qual sentido de felicidade que pode articular o discurso institucional da ACI e a ética pelo magistério eclesiástico?  O descanso da vontade na consecução (participativa) do que for percebido como bem comum duradouro (sustentável).  Na tradição aristotélica, a definição do bem é determinada por um plano racional de vida que uma pessoa escolhe (vontade manifesta) a partir de um grupo superior de planos.  Daí, o bem de uma pessoa é a execução bem-sucedida de um plano racional de vida.  A felicidade então é reconhecida como bem último por ser autossuficiente:

Um plano racional, quando implementado com confiança, torna a escolha de uma vida totalmente válida e não exige mais nada.  Quando as circunstâncias são particularmente favoráveis, e a execução especialmente bem-sucedida, nossa felicidade é completa.  Na concepção geral que buscamos seguir, não falta nada de essencial, e não existe possibilidade de melhorá-la de forma significativa.[ii]
Portanto, essa felicidade escatológica, radicalmente pessoal, não está reduzida à consecução de um bem incognoscível.  Ao contrário, recorrendo à tradição aristotélica, os bens humanos mostram-se numa teleologia com a qual as atividades assumem um lugar de destaque nos planos racionais. Trata-se de um pressuposto ético regido pela relação racional entre meios e fins.  Essa ética formalizada pela razão, no entanto, não dá conta da carga emotiva que polariza a decisão de constituir uma cooperativa.

Fica, outrossim, pendente de solução encontrar uma felicidade pessoal que venha a ser completa  em comunidade.  Se as heteronomias inerentes às diversidades existenciais reconhecíveis nas sociedades contemporâneas colocam em xeque soluções exclusivamente utilitaristas, antes de falar em subjetividades, posto que o sujeito é plural, a chave ética está na alteridade que não se reduz a um imperativo ético, mas que aponta para a possibilidade de pensar a felicidade completa como uma dimensão sabática da existência, horizonte de gratuidade, de encontro de uma relação dialógica entre o "eu" e o "tu" que se enriquecem mutuamente.  Tanto quanto o sujeito é plural, outros são o "tu".  É o "tu" totalmente outro quem dirige todo o processo de realização do "eu" pela diversidade  de sua vigência. Na presença espectral de um terceiro, "Eu" e "Tu" se constituem reciprocamente num evento ontológico de identidade e diferença [iii].

Daí, a advertência de Martin Heidegger na sua memorável conferência proferida na Universidade de Freiburg em 27.06.1957 sobre o Princípio da Identidade:

A fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A, não diz apenas: cada A é ele mesmo o mesmo.  Em cada identidade reside a relação "com", portanto, uma mediação, uma ligação, uma síntese: a união numa unidade.  Por isso, a identidade aparece, através da história do pensamento ocidental, com o caráter da unidade.  Mas, esta unidade não é absolutamente o insípido vazio daquilo que, em si mesmo desprovido de relações, persiste na monótona uniformidade." [iv]
 Necessariamente através de linguagens  plurais e multiformes que o ser humano vai sendo descoberto no fluxo da existência.  Tanto quanto o ser humano conduz uma linguagem, as linguagens o lançam na pluralidade de suas relações pessoais,  nas quais alguém vai percebendo nuances disso ou daquilo por interagir e assim se revelar  para si mesmo a partir da presença dos outros.  Este sentido é encontrado no parágrafo vestibular da monumental obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, que se mostra relevante para o Direito por sua evidente implicação hermenêutica:

"Adormeço". (....) não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro:  uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V.  Essa crença (....) não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos (....). Depois (....) o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele (....)."

De modo que a felicidade completa não provém de todo com uma adequação formal de meios à sua realização finalística, senão na realidade do "nós". Pois as linguagens, moradas do ser, tornam mundo um comum-pertencer: a mesmidade entre pensar e ser.

É pertinente notar que padres costumam ser lembrados em estórias de mobilização de comunidades para a criação de cooperativas que são bem-sucedidas.[v]  Há uma resposta possível a essa questão na encíclica  Caritas in Veritate “Se o amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma previdente e justa competência como significativamente indicam muitas experiências no campo do crédito cooperativo (....)” (§65).  Neste sentido, o Papa Francisco discursou em 28 de fevereiro de 2015 aos representantes da Confederação Cooperativa Italiana:  "Não digo que não se deve crescer no rendimento, mas isso não é suficiente: é necessário que a empresa gerida pela cooperativa cresça deveras de modo cooperativo, ou seja, envolvendo todos. Um mais um é igual a três! Esta é a lógica."

O magistério eclesiástico colabora com a ordem econômica constitucional ao reconstituir essa escolha original, imaginária, em que ser sócio de cooperativa é algo que remete, de alguma forma, a uma devoção de vida e uma vocação, ambas dirigidas ao proveito comum.  E não simplesmente algo resultante de contas cambiantes de vantagens e ônus, incentivos e sanções disciplinares, custos e margens.  E, mais importante, que ambos os sentidos não são excludentes, mas complementares.

A lógica a que se referiu o Papa Francisco à propósito das cooperativas não é razão formal, daí seu jogo de palavras. Mas, é razão primordial -  uma imagem estritamente metafísica da perfeição, que é um princípio genético de liberdade e poder e, ao mesmo tempo, encarnado num apaixonado, alguém arrebatado por um amor escatológico, que vem a ser ágape, conforme a Encíclica Deus Caritas Est:

 "Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora, o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o". (§ 6°)

Pensar em ágape como felicidade completa e fundamento primeiro e fim último do bem comum - "Conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada pessoa humana em comunidade alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição" (Constituição Vaticana Felicidade e Esperança) - é resgatar para o cidadão organizado em cooperativa a nobreza em sua servidão que consubstancia a preocupação com a comunidade como princípio universal de identidade cooperativa.  Algo transcendente aos direitos e obrigações e aos cálculos de utilidade.  Então, já não é o Estado, nem a cooperativa os promitentes de uma felicidade pessoal sempre posta adiante; construtores de uma utopia.  Uma comunidade organizada em cooperativa sob o Estado soberano já vem a ser esse lugar, ainda que prenhe de esperança por dias melhores.

Para dar materialidade à ética, e com isso, evidenciar a cooperação numa escolha que constitui a cooperativa em sua originalidade, é preciso primeiro admitir o postulado de que a qualidade dos bens, as aspirações ou a necessidade não fundam os valores, mas são valores que dão aos bens qualidades, orientam as aspirações e dão sentido às preferências face às necessidades sentidas. 

Dito em outras palavras, a questão dos valores que qualifica uma sociedade como cooperativa e que constitui sua adequação é, depois de mais nada, um reaprendizado em ver o ato constitutivo de uma relação jurídica societária cooperativa  como um ato de preferência. A materialização da ética pelo sentimento permite revelar o que de essencialmente válido existe na cooperativa. 

Se for verdade que os valores são reais e transcendem a afetividade, eles só aparecem na medida em que a eles se voltam os sentimentos.  Outrossim, precisam ser refletidos para uma análise transcendental, ou seja, para a tomada de consciência de si mesmo como ser racional, dos valores que visam e da hierarquia axiológica que sintetizam. 

Mas, essa consciência imediata do bem do ato que é cooperativo nem sempre se realiza no cotidiano dos negócios das cooperativas, pois as escolhas ocorrem num emaranhado de símbolos, pensamentos, informações, discursos, desejos, as circunstâncias.  Por isso, é necessário o recurso a enunciados lógico-formais do dever-ser e as prescrições como referências para o discernimento da moral em sua historicidade.

Em que pese a utilidade do recurso, e até por sua contingência, não se pode prescindir de voltar para os valores, em seus absolutos e para a hierarquia axiológica que o fundam aquém e além dos homens, que variam de sensibilidade, seja individualmente, seja coletivamente. Só então se poderá salvaguardar a cooperação, sendo garantida também a existência das cooperativas como uma possibilidade.

Desde já então fica evidente que a cooperação é um valor vital existente para o Direito antes mesmo de qualquer positivação e que é suportada por normas jurídicas. A cooperação é o valor com o qual pessoas se afetam para servirem umas às outras.  Não se está aqui se referindo a um sentido hoje mais comum de prestação de serviços, como atividade de circulação de bens imateriais no mercado, mas exatamente a sua reversão, conquanto originalmente a servidão contrasta com a idéia de mercado.

É essa servidão recíproca (mútua) a suficiência, o afeto bastante, a escolha vital, livre e digna de que a cooperação diz.  É essa servidão recíproca o sentido integrativo na originalidade de uma vivência que remete à nobreza, à democracia, à solidariedade.




[i] MORENO, Juan Luis:  "Los valores según la Alianza Cooperativa Internacional"CIRIEC.  Revista Juridica de Economía Social y Cooperativa, n° 25, 2014. p. 20
[ii] RAWLS, John:  Uma teoria da justiça.  Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rimole Esteves.  Martins Fontes, São Paulo, 2002. pp.  611-612
[iii] BRIGHENTI, Agenor.  "A ação pastoral em tempos de mudança: modelos obsoletos e balizar de um novo paradigma".  Paulus.  Vida Pastoral.  n° 302.  Ano 56.  Mar-abr 2015.p. 33
[iv] HEIDEGGER, Martin:  Que é isto - a filosofia; identidade e diferença. trad. Ernildo Stein.   Duas Cidades, São Paulo, 1978. pp. 50-51
[v] SCHNEIDER.  José Odelso.  "A relevante herança social de Pe. Amstad SJ"  Instuto Humanitas/Unisinos. Cadernos IHU Ideias.,  n° 213, vol 12, ano 12, 2014 . pp. 17-20

segunda-feira, 18 de maio de 2015

IV CAMINHADA COM MARIA RUMO AO REDENTOR


Ontem foi um domingo em que celebramos com a Congregação Mariana do Hospital-Colônia de Curupaiti a ascensão de Cristo aos céus, representado no Redentor do Corcovado do Rio de Janeiro. 

Lembrando os 40 dias em que a Idéia perfeita de Deus de Si mesmo habitou entre nós na plenitude de Sua revelação, saímos da Igreja da Ressurreição no Arpoador e O reencontramos em carne e sangue em Ipanema, Lagoa, Botafogo e Laranjeiras. 

O Amor nos uniu além da diversidade étnica e de gênero. Muitas intenções, um credo, uma adoração em 3 Pessoas e uma devoção por aquela que, liberando seu corpo, liberou a humanidade inteira. E o liberou dizendo SIM à vida. Pois mesmo que pudesse ser renegada por sua família, repudiada e denunciada por seu noivo e apedrejada até a morte por seus vizinhos, ela, uma mulher como todas, gestou vida eterna e nos legou o Amor com o qual mesmo na mais marginalizada condição que uma mulher pudesse estar, dela (apesar de nossas próprias limitações e incompreensões) somos todos capazes de dizer: bendita entre todas as mulheres; bendito o fruto de seu ventre!