quarta-feira, 4 de junho de 2014

Ser satânico e o Estado laico



Se levamos alguém realmente a sério, quando falamos de nossa própria liberdade, dizemos necessariamente de nossa responsabilidade no acolhimento, na inclusão e na hospitalidade.

Em que medida uma performance a que se atribui o nome Xereca Satânica é uma irresponsabilidade para com a fé alheia?  Não se pode antecipar uma resposta sem que façamos uma reflexão sobre a adequação do nome à proposta da performance.  Por isso mesmo, tampouco se pode dizer que a liberdade de manifestação está legitimada simplesmente porque se empresta à performance um estatuto de arte ou cultura.  Se não é caso de censura prévia, pode ser caso de censura como uma crítica severa e até mesmo como uso legitimado da força na responsabilização e em defesa da dignidade de tradições religiosas. 

Se pensamos em uso legitimado da força num contexto civilizatório, já estamos nos remetendo à ação do Estado.  E se pensamos na ação do Estado em defesa de religiões no presente contexto civilizatório, precisamos pensar no caráter laico do Estado democrático.

Aqui é necessário um comentário.  O que é religião?  Desde que homens se perceberam diante de si, do mundo e dos outros, perceberam o além, se perceberam existentes desintegrados do além e intuíram uma reintegração mais que possível, porque plena com o além  E se é mais que possível, intuíram que alguém antes já seja plenamente integrado no além.  Uma manifestação religiosa, qualquer uma, propõe a reintegração existencial com quem é além plenamente - um sim à divindade.

O que é satânico, é uma manifestação religiosa?  Sim e não.  No judaísmo, cristianismo e islamismo, o que é satânico impede essa reintegração existencial.  Satã é quem existe para dividir e manter existencialmente separada a humanidade da divindade.

Satanismo não pode ser uma religião, pois a variação imaginária das religiões tem um limite: a destruição de si mesma como objeto de pensamento.  Isso não quer dizer que alguma divindade possa ser identificada com alguma representação diabólica.  Mas, quando isso acontece, já não é satanismo.  Vem a ser uma manifestação sincrética entre uma religião abrâmica e outra pagã. 

Como uma manifestação sincrética no ateísmo já é uma contradição em termos, uma manifestação cultural ateia que se serve de uma expressão satânica para se afirmar como tal, já flerta com a injúria a cristãos, judeus e muçulmanos.

Num caso, a performance chamada Xereca Satânica foi proposta como uma denúncia a uma onda de estupros em uma determinada cidade.  Porém, em nenhum momento se supôs com qualquer fundamento que os estupros ali sejam decorrentes de uma ação de cristãos, judeus ou muçulmanos como atos moralmente justificados, seja como retribuição, seja como submissão de gênero.  Então, é bem possível que os autores da performance estejam usando os estupros como pretexto para um rude menosprezo manifesto ao cristianismo, judaísmo e islamismo pela crença em comum na existência de Satã.  No mínimo, uma tremenda insensibilidade egoísta com quem nada tem a ver com o pato, mas frequenta sinagoga, igreja ou mesquita.

Então, retorno ao caráter laico do Estado democrático de direito.

O Estado laico não é neutro ou imparcial com relação às religiões. Isso é Estado praticamente ateu. Um ateu não é necessariamente hostil, mas trata as religiões com alguma indiferença.

O que é neutro, não tem valor em si. 2+2 é neutro.  Amor não é indiferente.  Faz toda diferença.  Por isso, o Estado é laico, quando é inclusivo com relação às religiões.  Mas, também permanece laico, quando trata cada religião como única em sua singularidade.  Trata-se de uma hospitalidade no espaço público para com cada pessoa religiosa.

Religiões simplesmente não se equivalem para serem tratadas como gatos num só saco sob a desculpa de laicidade. É difícil, pois a singularidade de cada religião exige que o Estado esteja poroso e integrado às religiões e ainda preserve a opção de alguém ser ateu. É um desafio permanente, mas em cada tradição religiosa o Estado laico pode reconhecer aquilo que está identificado com suas próprias valorações dirigidas para o bem comum.

2 comentários:

  1. Vejo com preocupação onde podemos chegar com os exageros praticados na nossa sociedade, será que estamos dando brechas para a entrada do fundamentalismo religioso no nosso país?

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  2. Não... se tratamos como uma diatribe de garotos universitários, uma festa com jeito de circo de horrores, uma tolice provocativa. Se vai quem quer e ninguém é forçado a nada... tolerável. Admissível mesmo como uma proposta de testar limites sensoriais à consciência e exercício pela estranheza de distinção entre sentir e sentidos. O problema é aprovar o evento assim chamado sem qualquer ressalva e, pior, dar hoje algum sentido de libertação a ela. É esta pretensão equivocada que precisa ser tratada com seriedade. As obras de Jean Genet, Pasolini e outros já tiveram seu valor, quando as sociedades em que viviam estavam cativas de moralismos opressivos para o corpo, sobretudo o feminino. Mas agora, diante de toda pornografia hard core à disposição no mercado? A carta da libertação pessoal pela liberação do corpo já voltou para o baralho e tudo isso precisa, de novo, ser reavaliado.

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