quarta-feira, 14 de abril de 2021

Pensando & Conhecendo XXV

 O Século XX selou o fim da modernidade?  Para responder esta pergunta de algum jeito, é preciso notar e correlacionar diferenças entre as propriedades do saber do sec. XIX e no XXI.  Solidez e líquidez perfazem uma alusão bem conhecida de notas e correlações dos saberes moderno e contemporâneo.   O que era sólido no sec. XIX, agora já está liquidado; só permanece de lá para cá aspirada uma ousadia em saber.  Na solidez, as condições para saber algo eram dadas através de categorias e experiências sensíveis; na liquidez, um conceito pressupõe as mesmas condições autônomas para saber (categorização e sensibilidade), mas elas não são dadas para uma síntese; são as sínteses instituídas em linguagem – o saber não se dá; ele se institui. Então, universal que o saber se venha, mas não chegará a ser universal o que vier a se saber.  Pelo menos, em termos históricos e sociais. 

O conhecimento não é definido pela realidade, mas realidade se diz das condições de um conhecimento possível: o que seja real realiza-se; a realidade é movente, mas nem por isso deixa de ser cogente.  O saber é constitutivamente elementar e relacional (por exemplo, identidade e diferença) numa experiência necessariamente possível de saber.  Conhecimento então é reflexão desenvolvida em análise sequencial nas experiências factuais e ativas, mas as asserções dela em linguagem não prescindem das interações associativas e diacríticas próprias na percepção de sintomas, pois elas próprias também são experiências.  





Compliance: Cura ou Sintoma?

 https://www.youtube.com/watch?v=e3M3o_ULbzw


 

Em deferência ao pedido da minha amiga Claudia, eu vou compartilhar com vocês alguns apontamentos da minha atividade acadêmica no âmbito do CPJM lá na UERJ. 

 Preciso desde já estabelecer um discernimento para que vocês tenham uma espécie topografia da minha fala.

Em se tratando de compliance, há dois modos próprios de lidar com o comportamento.  O empírico, que está mais ligado aos aspectos da economia, contabilidade, administração e comunicação; e o hermenêutico, próprio do Direito e da moral (da ética, se preferirem).  Também da psicanálise.  E existem saberes que lidam com esses dois modos -  a psicologia e a antropologia. 

Para tracejar o caminho que vou seguir com a minha fala, vou recorrer à ideia de effroi exposta por Blaise Pascal no alvorecer da atividade empresária lá nos idos anos do sec. XVII.  Pascal deixou um legado muito importante para a gestão de riscos.  Ele era matemático e, numa troca de correspondência com o amigo e advogado Fermat, estabeleceu uma base para o cálculo probabilístico.  Ou seja, sem Pascal, a expressão “gestão de riscos” não teria o menor sentido para nós.  Effroi é uma expressão que foi usada por ele e indica sua motivação para produzir esse legado que ele nos deixou.  O effroi pascalino é um estado mental. 

Existem várias traduções possíveis para essa expressão predicada:  pasmo, abismado, amedrontado... Eu pessoalmente prefiro acabrunhado.  Vou agora citar duas passagens do Pascal em que essa expressão aparece:

 Eu fico acabrunhado como um homem que foi carregado para dormir em uma ilha deserta e terrível, e que acorda sem saber onde está, e sem ter como escapar disso.

Nadamos num meio-termo vasto. Sempre incertos e flutuantes, somos empurrados de um lado para outro.  Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma torre que se erga até o infinito; porém os alicerces ruem e a terra se abre até o abismo. A simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha

Uma das expressões contemporâneas do acabrunhamento pascalino é a alegoria que caracteriza os filmes de apocalipse zumbi como um subgênero de terror.  O seu argumento mais básico é um grupo heterogêneo de pessoas que estavam tratando de suas próprias vidas e que são, de repente, lançadas juntas numa situação de iminente barbárie absoluta. 

Diferente de um morto-vivo romântico como Drácula, capaz de se apaixonar por uma virgem, o morto vivo bárbaro come a própria mãe crua e não tem nada a dizer sobre isso.  E esse morto vivo bárbaro é uma alegoria?  Levi-Strauss estabeleceu o mais conhecido critério de reconhecimento do ser humano em relação aos hominídeos.  São três verbos que instituem a cultura e com ela o ser humano: falar, cozinhar e proibir.  

George Romero concebeu um morto vivo que não fosse personagem, mas um figurante.  Com essa sutiliza, visava uma releitura do mais influente filme cinematográfico feito até hoje: O Nascimento de uma Nação.  Neste filme de 1915, David Griffith retratou a Ku Kux Klan como um sintoma do acabrunhamento de cidadãos anglo-saxões do sul dos EUA em face da abolição da escravatura, percebida como uma ruptura do modo de vida deles.  O filme A noite dos mortos-vivos, de 1968, também retrata o acabrunhamento dos cidadãos anglo-saxões do sul dos EUA, só que agora diante da decisão da Suprema Corte que declarou a inconstitucionalidade da segregação racial em todos os Estados Unidos. 

Noutro filme produzido nos anos 70, o Madrugada dos Mortos, George Romero acrescentou mais uma nuance:  a massificação dos não personagens ao retratar o terror absoluto na iminência dessa multidão bárbara engolfar os personagens encurralados dentro de um Shopping Center.  A alegoria aí passa a assumir uma expressão apocalíptica. 

Mais da metade dos filmes desse subgênero de terror foram produzidos somente depois de 11 de setembro de 2001, o fatídico dia em que as torres do World Trade Center ruíram a vista de milhões de pessoas estupefatas. Qual foi o filme protagonizado por Brad Pitt de maior bilheteria? Guerra Z.   Eis um indicativo eloquente de que alegoria de barbárie absoluta iminente estava consolidada no imaginário das sociedades de risco no sec. XXI. 

Isso tem algo a dizer sobre o aparecimento  dos sistemas legais de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo.  Um detalhe significativo diferencia os mortos-vivos aglomerados às portas do shopping center no filme do Romero de 1978 e os zumbis de 2013 que figuram às portas de Jerusalém em Guerra Z.  Neste filme, eles são hiperinflacionários tanto em termos da massificação como no frenesi da massa.   

O frenesi é o primeiro sintoma que vou abordar esta noite.  Na sociedade de mercado coexistente com o Estado democrático de Direito, o empoderamento empresarial é amplificado para um empoderamento instrumental, processual e tecnológico disponível ao cidadão/consumidor individualmente considerado numa amálgama mais aprofundada entre individualismo e pessoalidade. Trata-se de uma saturação da diversificação e do imediato para as políticas institucionais de bem estar. Evidentemente, um modelo que só se torna possível pelo emprego da tecnologia da informação em rede e em larga escala, isto é, marcado pela máxima agilidade performática. 

 Tudo que se presta ao cidadão e consumidor só terá valor real, sendo ágil e imediato ao responder à sua demanda. Mais vale quanto mais segmentado ao seu perfil de hábitos.  Numa satisfação resultante disso, fica garantido o seu bem estar. A repetição da sensação de satisfação dos cidadãos consumidores é o sentido de felicidade buscada pelos esforços qualificados pela capacitação, corretos pela integridade e eficientes pela concorrência.

As sociedades democráticas de mercado se mostraram hábeis e se lançaram à aceleração tecnológica em geração exponencial de dados.  Aceleração e geração exponencial se apresentam como sintomas da febre performático-produtiva.  Mas... Por que chamo de febre? Por que há um perigo que testa a resiliência da democracia: a normatividade inflacionária de marcos regulatórios. 

Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa liberdade. Eis o paradoxo da liberdade coercitiva que nos desafia através da autorregulação regulada.  O seu sintoma patológico é acabrunhamento em meio à produção febril, desenfreada.  Porque, com isso, a proliferação dos riscos é como uma manifestação do transe expresso na ideia de que crise seja um estado normal de ser histórico-social na contemporaneidade.

Digo contemporâneo, porque seu horizonte temporal retroage aos anos 70, quando a volatilidade e a incerteza foram percebidas como dramáticas. Nos EUA e Europa Ocidental, mudou o que era normal nas séries estatísticas que antes regrediam à média desde o fim da II Guerra Mundial:  preços de produtos primários e taxas de inflação, de câmbio, de juros e de títulos públicos.  E outra novidade também acontecia: a circulação de informações através das redes de comunicação com transmissão de imagens via satélite.  Essas imagens geraram impressões impensáveis anteriormente.  O massacre durante as olimpíadas de Monique, a derrota no Vietnã e o escândalo de Watergate, os reféns de Teerã produziram impressões da noite para o dia em milhões de pessoas que não estavam acostumadas a esse bombardeio televisivo nem analistas profissionais estavam preparados para responder sobre esses fenômenos de massa.  A simultaneidade massiva das impressões amplificava a própria impressão em cada um dos impressionados. 

Neste contexto, o paradoxo de Ellsberg ganhou relevância como teoria: em situações de incerteza, os agentes econômicos tendem a decidir derivados dos padrões de racionalidade esperada. 

Daniel Ellsberg tinha formação militar e estava familiarizado com jogos de guerra. Observando o comportamento dos jogadores, intuiu uma distinção importante entre risco e incerteza: risco lida com a probabilidade, já que seu conhecimento pode ser baseado em séries históricas; a segunda lida com ambiguidade, porque se desconhece o que seja provável por ausência de qualquer possibilidade de se estabelecer um padrão serial.

Por aversão à ambiguidade, os agentes econômicos tendem a assumir posições mais arriscadas do que seria racionalmente esperado deles.  Ou seja, prudência é uma virtude que escasseia em situações de incerteza. 

Isso é paradoxal.  Exaltamos inovações tecnológicas disruptivas como manifestações da genialidade e progresso humanos ao mesmo tempo em que as incertezas inerentes às disrupções nos levam a tomar decisões disfuncionais por aversão à ambiguidade. Presente, o acabrunhamento pascalino.

Os agentes econômicos estão à mercê das expectativas e da disposição de compra uns dos outros para liquidarem suas posições em ações ou títulos circulantes.  Normalmente, isso funciona porque os agentes têm diferentes interesses e essas diferenças são ajustadas por desvios padrão em curvas de procura e oferta.  Mas, nem sempre.  Muita ambiguidade faz disparar os custos de risco nas transações.  Em tom pedestre... tem hora que o mercado entra em pânico: o noticiário no fim do dia parece que está anunciando o apocalipse zumbi, aqui e agora!!!! Em termos hermenêuticos, é disso que se trata com o conceito de fat tail risk, hoje presente nos modelos normativos regulatórios das autoridades monetárias. 

Agora, vou mencionar outro sintoma patológico da liberdade coercitiva:  o ressentimento.   Vou recorrer ao ensaio de Isaiah Berlin intitulado Two Concepts of Liberty. Nele, Berlin se lança ao desafiante propósito de totalizar, pela dialética, a liberdade. Para isso, contrapõe um conceito «negativo» a outro «positivo».  O conceito negativo emerge da insistência em se perguntar: «Qual é a área em que o sujeito deve ser deixado à vontade para fazer (ou ser) o que ele for capaz de fazer (ou ser)?».  O conceito positivo emerge de outra pergunta insistente: «Qual ou quem é a referência de controle e interferência que pode determinar para alguém fazer (ou ser) isso ao invés daquilo?».

A dialética então se dá entre um conceito formal de liberdade (liberdade de... algo) e outro material (liberdade para... algo). A partir daí, Berlin se lança a uma ponderação situacional em busca de um equilíbrio ótimo possível, embora delicado e sempre instável.  Os seus parâmetros mais aceitos são aqueles estabelecidos por uma ética mínima: Você é livre para fazer o que quiser com a sua própria vida, desde que não afete com sofrimento a vida de mais ninguém.  E cabe ao Estado de Bem Estar Social buscar a saturação dessa ética mínima com o que a autorregulação regulada carrega um sentido de cooperação entre o Estado e as empresas. 

Agora, vou chamar ao banco das testemunhas ninguém menos do que Fiodor Dostoiévski por aquilo que parece desmentir a liberdade dialética do discurso de Berlin. Consta das suas Memórias do Subterrâneo:

Dizei-me: como é possível que no mesmo, sim, no mesmo instante em que eu era mais capaz de sentir todos os matizes do «belo e do sublime», (....) me acontecesse, como de propósito, não somente pensar, mas também cometer ações abjetas, que... Bem, em suma, ações que talvez todos cometam, mas que, como de propósito, me ocorriam toda vez que eu mais tinha consciência de que deviam ser evitadas? (....) o prazer do desespero, pois é o desespero que encerra os mais intensos prazeres, particularmente quando se tem uma aguda consciência da própria situação.

A que se refere o protagonista das Notas do Subsolo? Consciência aguda de quê? É do dinamismo mortal que anima o desejo e que se manifesta no ressentimento.  Dostoievski retrata o ressentimento como uma memória subterrânea, porque ela costuma estar fora da construção discursiva, quando se proseia sobre uma lógica da moralidade e chama isso de ética. 

Mais uma vez, cito Dostoievski:

O que torna esse interesse  particularmente notável é o fato de que destrói todas as nossas classificações e derruba permanentemente todos os sistemas edificados pelos adoradores do gênero humano para a felicidade do gênero humano. Numa palavra, opõe-se a tudo. Mas antes de vos dizer de que interesse se trata, quero comprometer-me pessoalmente: e por isso me atrevo a declarar que todos esses belos sistemas, todas essas teorias que pretendem explicar à humanidade quais são os seus interesses verdadeiros  e normais —a fim de que ela se torno logo virtuosa e nobre em seu esforço para atingir os ditos interesses—, são, a meu juízo, mera lógica.

Luiz Felipe Pondé chama esse desmentido de liberdade incriada, porque é intratável pela norma. Intratável, porque radicalmente silenciosa. Mas, se manifesta nos movimentos viscerais do ser humano em suas pulsões de autodestruição. Freud leu Dostoievski e lhe dedicou um ensaio em que relaciona a liberdade incriada com a culpa e que essa relação está magistralmente evidenciada nas peripécias do protagonista de Crime e Castigo. De modo que não haja superação possível das contingências do mundo pela argumentação, e sim pelo atravessamento delas num face-a-face necessariamente silencioso: uma metanoia, mas não um equilíbrio frágil que se diga sustentabilidade; essa metanoia é a condensação de toda escatologia num acontecimento dramático radicalmente pessoal – uma afetividade não intelectiva.  Por isso, se faz psicanálise em sessões de consultório sem haver um cronograma prestabelecido a se seguir. 

Agora, vou falar de mais um sintoma.  O terceiro e último dessa minha fala: a insegurança.  A segurança é um sentimento de integração entre pessoas e ambiente. 

Um livro publicado em 1990, Consequências da Modernidade de Anthony Giddens foi obra seminal para a gestão de riscos.  Influenciado pela psicanálise de Donald Winnicott, Giddens postulou que a confiança na fidedignidade das empresas está baseada sobre uma fé mais primitiva na fidedignidade de seres humanos. A confiança nos outros é uma necessidade psicológica de um tipo persistente e recorrente. 

A segurança ontológica e a rotina estão intimamente vinculadas, através da influência difusa do hábito. A previsibilidade das rotinas (aparentemente) sem importância da vida cotidiana está profundamente envolvida com um sentimento de segurança psicológica. A continuidade das rotinas da vida diária só é conseguida através da vigilância constante das partes envolvidas – embora isto seja quase sempre realizado por uma consciência prática. 

Tirar a segurança da fidedignidade ou integridade de outros é uma espécie de ranhura emocional que acompanha a experiência de ambientes familiares, sociais e materiais. A suspensão da confiança no outro enquanto agente fidedigno e competente é um transbordamento de ansiedade existencial que assume a forma de sentimentos de mágoa, perplexidade e traição, junto com suspeita e hostilidade. 

Aqui tem uma chave hermenêutica para compreensão da autorregulação regulada como fenômeno jurídico.  É próprio da segurança como valor que a cidadania suporte um sentido de satisfação por consumação.  O pertencimento do cidadão se manifesta na consumação ambientalmente sustentável e socialmente responsável de seus projetos, que são apresentados como sonhos, porque sonho é uma expressão que nos convoca à empatia. É o sentido da expressão “escolha”.  Então, a performance é um acontecimento que se pretende apropriativo da relação Estado-cidadão.

Se a cidadania for performática, ela se vincula com as possibilidades e expectativas da vida social em cada um dos cidadãos, com relação aos demais.  Para a performance otimizada da cidadania, trata-se de uma fatoração de risco.  Trata-se, em outras palavras, de um sentido de sustentabilidade para a própria disposição da cidadania.  Para com a administração pública, o cidadão se manifesta como co-responsável pelo próprio dispositivo da consumação performática da cidadania. 

Agora vou correlacionar os 3 sintomas: frenesi, ressentimento e insegurança. 

Em meados dos anos 80, sobretudo na gestão, o conceito de qualidade deixou de remeter aos atributos reais do produto (por exemplo, durabilidade e beleza) para se referir aos atributos relacionais da produção: qualidade veio a ser satisfação.  A ênfase passou a ser no empoderamento das variáveis endógenas e exógenas do processo produtivo: seu objetivo é a minimização de erros e atrasos, vistos como riscos à qualidade, pela adoção de padrões procedimentais orientados para o atendimento ao que for requerido desde antes do processado (é isso que eu chamo de satisfação).  As certificações ISO nasceram dessa mudança conceitual da qualidade. 

Na virada do Século XXI, o conceito de qualidade passa a integrar em si mesma a tecnologia da informação: surge então a ideia de qualidade como ênfase funcional-performática na interatividade de diferentes agentes de uma cadeia produtiva. Os efeitos da integração conceitual entre tecnologia e qualidade se manifestaram pela intensificação de capital e ganhos de escala operacional com eficiência em termos incremento da performance a todas as dimensões dinâmicas de relacionamento da cadeia produtiva por um processamento tecnológico de informação massiva.  Tem o consumidor individualmente considerado como referência, porque advém da qualidade o paradigma da padronização dos procedimentos no atendimento ao que é requerido desde antes do processado - a sua satisfação como sentido experiencial na consumação do processo. É a performance focada na satisfação como resultado perseguido.  Há ampliação da possibilidade de satisfação com a aquisição da capacidade de customização ao nível individual da operação em escala.  Isso se viabiliza pelo processamento de dados massivos acerca do consumidor com a interação com ele em tempo real. A padronização não alcança mais ao produto disponível.  Ela se dá no processamento para chegar ao produto.  A indústria automobilística de alta performance foi pioneira nessa agregação de valor.  A marca Ferrari é um paradigma por demais conhecido de que todo produto é dispositivo desde antes de sua realização. A Apple levou esse paradigma à sua culminância de escala e alcance massificado.  Dada a multifuncionalidade performática de um smartphone, seu sentido é dado pela sua disposição em si mesma ao seu consumidor, que é praticamente todos os falantes, onde quer que eles estejam no mundo.  Gilles Lipovetsky chama isso de diversificação proliferante e escalada do efêmero. 

Mas eis que avulta o sentido trágico da satisfação nas disfunções do inconsciente!  De algum modo, a consumação do consumidor aprofunda a consumição do cidadão: é o paradoxo de um bem-estar bulímico.  Eis o paradoxo: sendo o ato de consumir o acontecimento apropriativo de uma época, o bem estar é perseguido à custa de um acabrunhamento permanente por uma retroalimentação incessante de expectativas.

Uma vez focada a cidadania na funcionalidade, sem a busca em algum sentido para a satisfação que não ela própria, qualquer que seja ela, a ansiedade pela possibilidade de sua frustração se manifesta como uma pandemia.  Ansiedade pandêmica se dá, quando os sentidos de satisfação são dados pela multiplicação de dispositivos persecutórios.  O empoderamento do consumidor se mostra limitado num excesso de opções que não podem ser vivenciadas sem uma abdicação penosa de umas em favor de outras.  Como abrir mão?  Como se conter?  Como se conformar? Como não se ressentir? Como se satisfazer, se outra satisfação é incessantemente prometida?  A culminância da cidadania é a culminância da desumanização no fetiche de um humanismo programático e pragmático.

O Compliance responde a essa desumanização de um modo próprio: o temor ao horror de um colapso da atividade incessante de satisfação. Sua funcionalidade cuida de prevenir os riscos de um terror absoluto, a barbárie total, e nessa atividade de prevenção já se vivencia por antecipação o temor do próprio terror. Pelas artimanhas da razão, na funcionalidade da conduta e na imputação antecipada da sanção, há garantia de segurança e sustentabilidade para a sociedade civil.

Mas, no inconsciente, a função e o mito se retroalimentam.  Assistimos uma interessante aliança entre as indústrias da experienciação e movimentos identitários de gêneros e raças num esforço comum para a dissolução de toda heteronomia, que se denuncia o tempo todo como humilhação.  Essa denúncia pressupõe qualquer um como alguém vazio.  Um não-ser que se preenche do vir a ser si-mesmo.  Isso é expresso como empoderamento. Toma-se por epígrafe disso a famosa máxima de Simone de Beauvoir: ninguém nasce mulher, torna-se mulher. E como se positiva esse preenchimento? No desempenho em ser o que quiser ser. Um sujeito de desempenho. E o desempenho se torna um excesso de positividade que é patogênica dos estados depressivos.  Vou citar Byung-Chul Han:

«A lamúria do indivíduo depressivo de que nada seja possível, só se torna possível numa sociedade crente de que nada seja impossível. O sujeito de desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. O depressivo é o inválido dessa guerra internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma.  O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. (....) Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.»

Lendo Byung-Chul Han, noto que Dostoievski foi profético. Se muito do que ele escreveu for profecia, não tenho como lhes apresentar uma solução para o que Byung-Chul Han nos apresenta.  A profecia é sempre um testemunho de impotência diante da destinação. 

Mas uma literatura profética também indica haver sobrevida possível.  Onde então posso encontrar meios de sobrevivência?  Tem um farol na vetusta Patrística. 

«Padres do deserto» é uma expressão que designa um fenômeno ocorrido durante a dissolução da civilização romana cristianizada e aluvião das tribos pagãs. Há algum paralelo entre o que vivemos hoje e o que aconteceu há mais de um milênio e meio atrás. Para os cidadãos de então, como nós, havia sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir cultural que predominavam sobre as de estabilidade, de continuidade e de coesão sociais. Esses «padres do deserto» deram expressividade a essas sensações convulsivas como nenhum outro modo de pensar foi capaz até hoje. Esta expressividade nos foi legada através dos apotegmas, que são pequenas estórias nas quais uma frase atribuída a um padre do deserto lhe dá sentido. Historicamente, esses «padres do deserto», pelo exemplo de vida e ensinamento, criaram o modelo das regras monásticas, tão importantes que foram para a preservação da memória civilizatória ao longo dos séculos de diluição proporcionada pelas chamadas «invasões bárbaras» às então correntes relações sociais citadinas; choques culturais em tempos de intensos fluxos migratórios num mundo conhecido como tal. Aliás, nenhuma imagem talvez capte tão bem um ideal de estabilidade do que a de um mosteiro milenar encarapitado no alto de um penhasco.

A linguagem usual sobre compliance parece tributária de uma ideia de «salto para cima». Que haja um estado culminante de ser si-mesmo a ser aspirado com o propósito da realização processual e sistemática de um projeto. Só que não faltam apotegmas que coloquem em xeque a sinceridade e a autenticidade de propósitos moralizantes apresentados como metas voltadas à própria reputação. Os «padres do deserto», quando falam de estabilidade, não dizem que ela esteja numa aspiração bem intencionada de algo proposto para além. Mas, em autossuportar, num sentido muito mais psicanalítico (falo do cuidado de si) do que de desempenho performático. 

Para situações de incerteza, há o conselho que nos foi legado no Apotegma 878 da Apophthegmata Patrum Aegyptiorum «Filho, se queres ter proveito, permanece em teu próprio claustro, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual. Pois, ao sair por aí não teria o mesmo progresso profícuo que no silêncio presente de seu lar.»

Pronto.  Um monólogo acabado.  Claudia, devolvo-lhe a palavra.