Incontornável contribuição
do pensamento pós-moderno à contemporaneidade desnuda como o mal seja
transparente a qualquer razão, como diria Baudrillard. Lamento que a Religião nos Limites da Simples
Razão seja tão pouco lido, quando ali melhor
do que em qualquer outro texto, Kant indicou a limitação de seu próprio modo de
apresentar o bem relacionado ao fim (e não ao mal) na razão prática, coisa que
a filosofia alemã, até Hegel, tentou superar.
Influenciados pelo esforço dos alemães, até hoje acreditamos nisso: que podemos pautar a hermenêutica do Direito
num fim programático definido por nossos próprios propósitos . Uma coisa, eu penso sobre isso: a teoria
originária, aquela que trata da hybris e do métron, que os gregos conseguiram
expressar pelas suas tragédias no alvorecer da Democracia, essa continua
válida.
Nas peripécias do
pensamento moderno, essa crença tão arraigada na superação hegeliana é
irônica. Esse enraizamento está
diretamente relacionado a uma convergência sutil entre o discurso marxista e o
pragmatismo norte-americano. Não acaso,
Habermas personifica o momento em que essa convergência lastreada no humanismo
se tornou uma fusão. E foi nessa fusão
que aconteceu exatamente aquilo que Habermas combatia: o séc. XXI surgiu como
um século deleuziano. Habermas, eu diria,
sem ter notado isso, viveu o dilema de Édipo no suicídio de Jocasta. O dilema dele foi perseverar até o fim em seu
propósito, debalde os apelos de Jocasta, quando ela já antevia que o fim de sua
busca obstinada por esclarecimento seria um desenlace da trama desesperadamente
inesperado.
Ramones foi a banda que definiu a sonoridade do punk em
1976. Na sua formação, Joey era de
esquerda e Johnny, de direita. Eles
tocavam juntos, sabiam que juntos faziam um som visceralmente genial, mas desprezavam as posturas um do outro. A relação afetiva entre eles só azedou mesmo,
quando Johnny"roubou" a namorada de Joey. Eles continuaram a banda
durante mais 12 anos, até que um câncer selou o fim. Joey perdoara Linda, mas não Johnny. Joey compôs
um som famosíssimo dos Ramones: KKK took my babe away. Johnny a gravou e tocava essa música junto
com Joey nos shows da banda !!!!
O que quero ilustrar com
essa narrativa é que os Ramones, como qualquer banda de rock precisam ser
apreciados sob a perspectiva estética para a política e ética. Mas... a gente adora exaltar artistas que
opinam como nós pensamos. Não interessa
se a vivência estética seja a mais transitória das perspectivas. A tal metamorfose ambulante do Raul. No caso dos Ramones, isso se dá de uma
maneira ilustrativa. Blitzkrieg Bop
talvez seja a obra-prima. Sob a
perspectiva da estética punk e superestimando as opiniões de Joey, poderíamos
jurar que ela expressa uma revolta camusiana no espírito rebelde de uma
juventude inconformada. Pode até ser... só que não podemos reduzí-la a isso. Ela pode ser uma transposição de atitude das Sturmabteilungen para uma cena adolescente. Bastante superestimar a influência de Johnny sobre a banda para encontrar nela inequívoca conotação neonazista.
Quando falamos de
representatividade e insistimos, por exemplo, na presença de pretos
"conscientes" na indústria do entretenimento como efetivo meio de
mudança "estrutural", estamos contrabandeando a escalada do efêmero
junto com a proliferação da diversidade.
Nós superestimamos políticamente as opiniões de alguém cuja genialidade
só poderia ser apreciada a partir da estética.
Mas... como Édipo, queremos ir até o fim com o esclarecimento. Combatemos o racismo e
"normalizamos" clichês ideológicos, argumentos inconsistentes,
banalidades éticas e até mesmo paranoias de alguma mente engatilhada.
Sabemos que o barroco é um
gênero estético que foi concebido politica e teologicamente para reafirmar os
dogmas católicos frente ao protestantismo.
Na música, os postulados barrocos encontraram o "modo" por
Monteverdi, um organista católico. Mas,
foi Bach, mais do que qualquer outro artista quem desenvolveu esse
"modo" até tornar a sonoridade barroca tão fácil de ser reconhecida
mesmo que você nada saiba sobre teoria musical ou estética. Só que Bach era... luterano. O Barroco, que foi originalmente pensado para
exaltar a exuberância católica face a austeridade protestante encontrou num
gênio luterano sua forma perfeita. Sou
católico e quando entro numa igreja barroca, reconheço a minha fé em tudo que
lá está. Em termos teológicos. Mas, vc não precisa ser católico para compor
músicas barrocas divinas. Isso diz muito
da relação entre estética e política.
Essas relações simplesmente não podem ser controladas por variáveis de
um projeto.
Vou recolocar a questão de
um modo bem distinto. Mas, partindo do
barroco. Uma sessão espírita kardecista
poderia acontecer num recinto ornado conforme os cânones da arte barroca.
Mas, bem diferente de uma missa, a estética em nada corresponderia ao
que se passa em termos teológicos numa sessão espírita. Não é acaso que predominem linhas retas e
despojamento ornamental em centros espíritas kardecistas. Quando era criança, presenciei sessões em que
um medium incorporava ninguém menos que Inacio de Loyola. O Santo paradigmático da Contrarreforma, o
primeiro dos jesuítas. Ele o incorporava
verbalizando e gesticulando liturgicamente a celebração eucarística na forma
tridentina. Deixando de lado o problema
de como um medium poderia saber essas fórmulas litúrgicas do sec. XVI, é interessante
pensar que elas se mostravam "normais" numa sessão kardecista.
Estão “pegando” o que
estou querendo dizer? Transpondo mais
uma vez para a política: costumo dizer com uma boa dose de ironia de que
prefiro como neopentecostais atacam as religiões de matriz africana do que a
forma pela qual elas são defendidas por alguns grupos de direitos humanos. Mesmo que demonizem os orixás, ao menos os
pastores neopentecostais os deixam vivos!
E esses grupos de direitos humanos, o que fazem?! Preservam a liberdade religiosa,
"matando" orixá ao reduzi-lo a patrimônio imaterial de memória da
diáspora negra. Uma manifestação cultural de caráter predominantemente estético por identificada sensorialmente com uma matriz étnica; essa redução é necessária para estar subordinada a um projeto político. Eis aqui mais uma vez
o dilema de Édipo: esses grupos de direitos humanos são capazes
de destruir o candomblé de um modo bem mais radical do que qualquer pastor
neopentecostal do complexo de Israel seria capaz de fazer.