quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Pensando & Conhecendo XVIII

 


Oliver Sacks, falecido em 2015, foi um neurologista notável desde os anos 70 por suas explorações das interfaces neurais com a psiquiatria.  Ele distinguia o discurso físico (consistente por métodos sequenciais e quantitativos) do discurso fenomênico, constitutivo do mundo.  Afirmou que mundo prescindia de “correlatos” neurológicos.  Aliás, as considerações neurológicas ao contar a história de um ser humano, sua narrativa, passagens e cenas de sua vida, poderiam ser absurdas e mesmo insultantes.  Nem sempre, ressalva sua, porque a vida de alguém pode ser transformada por distúrbio orgânico, situação em que a correlação fisiológica se mostra necessária à narrativa.  Em jogo estão as relações éticas entre as funcionalidades neurais e a liberdade humana sobre as quais produziu extensa literatura ensaística baseada nas suas experiências na clínica médica: “É esse poder narrativo ou simbólico que proporciona um senso do mundo – uma realidade concreta na forma imaginativa de símbolos e histórias – quando o pensamento abstrato [atitude abstrato-categórica ou pensamento proposicional] nada pode fornecer”.        

O que Sacks percebeu pela medicina exercida foi uma questão epistemológica fundamental no limiar entre a empiria e a hermenêutica.  Está próxima daquela que desafia o Direito Penal Econômico, conquanto a ciência econômica seja eminentemente empírica e a ciência jurídica, dogmática.   

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O Dilema de Édipo

 


Incontornável contribuição do pensamento pós-moderno à contemporaneidade desnuda como o mal seja transparente a qualquer razão, como diria Baudrillard.    Lamento que a Religião nos Limites da Simples Razão  seja tão pouco lido, quando ali melhor do que em qualquer outro texto, Kant indicou a limitação de seu próprio modo de apresentar o bem relacionado ao fim (e não ao mal) na razão prática, coisa que a filosofia alemã, até Hegel, tentou superar.  Influenciados pelo esforço dos alemães, até  hoje acreditamos nisso:  que podemos pautar a hermenêutica do Direito num fim programático definido por nossos próprios propósitos .  Uma coisa, eu penso sobre isso: a teoria originária, aquela que trata da hybris e do métron, que os gregos conseguiram expressar pelas suas tragédias no alvorecer da Democracia, essa continua válida.

Nas peripécias do pensamento moderno, essa crença tão arraigada na superação hegeliana é irônica.  Esse enraizamento está diretamente relacionado a uma convergência sutil entre o discurso marxista e o pragmatismo norte-americano.  Não acaso, Habermas personifica o momento em que essa convergência lastreada no humanismo se tornou uma fusão.  E foi nessa fusão que aconteceu exatamente aquilo que Habermas combatia: o séc. XXI surgiu como um século deleuziano.  Habermas, eu diria, sem ter notado isso, viveu o dilema de Édipo no suicídio de Jocasta.  O dilema dele foi perseverar até o fim em seu propósito, debalde os apelos de Jocasta, quando ela já antevia que o fim de sua busca obstinada por esclarecimento seria um desenlace da trama desesperadamente inesperado.

Ramones foi  a banda que definiu a sonoridade do punk em 1976.  Na sua formação, Joey era de esquerda e Johnny, de direita.  Eles tocavam juntos, sabiam que juntos faziam um som visceralmente genial, mas  desprezavam as posturas um do outro.  A relação afetiva entre eles só azedou mesmo, quando Johnny"roubou" a namorada de Joey. Eles continuaram a banda durante mais 12 anos, até que um câncer selou o fim.  Joey perdoara Linda, mas não Johnny. Joey compôs  um som famosíssimo dos Ramones:  KKK took my babe away.  Johnny a gravou e tocava essa música junto com Joey nos shows da banda !!!!

O que quero ilustrar com essa narrativa é que os Ramones, como qualquer banda de rock precisam ser apreciados sob a perspectiva estética para a política e ética.    Mas... a gente adora exaltar artistas que opinam como nós pensamos.  Não interessa se a vivência estética seja a mais transitória das perspectivas.  A tal metamorfose ambulante do Raul.  No caso dos Ramones, isso se dá de uma maneira ilustrativa.  Blitzkrieg Bop talvez seja a obra-prima.  Sob a perspectiva da estética punk e superestimando as opiniões de Joey, poderíamos jurar que ela expressa uma revolta camusiana no espírito rebelde de uma juventude inconformada.  Pode até ser... só que não podemos reduzí-la a isso.  Ela pode ser uma transposição de atitude das Sturmabteilungen para uma cena adolescente.  Bastante superestimar a influência de Johnny sobre a banda para encontrar nela inequívoca conotação neonazista.    

Quando falamos de representatividade e insistimos, por exemplo, na presença de pretos "conscientes" na indústria do entretenimento como efetivo meio de mudança "estrutural", estamos contrabandeando a escalada do efêmero junto com a proliferação da diversidade.  Nós superestimamos políticamente as opiniões de alguém cuja genialidade só poderia ser apreciada a partir da estética.  Mas... como Édipo, queremos ir até o fim com o esclarecimento.  Combatemos o racismo e "normalizamos" clichês ideológicos, argumentos inconsistentes, banalidades éticas e até mesmo paranoias de alguma mente engatilhada.

Sabemos que o barroco é um gênero estético que foi concebido politica e teologicamente para reafirmar os dogmas católicos frente ao protestantismo.  Na música, os postulados barrocos encontraram o "modo" por Monteverdi, um organista católico.  Mas, foi Bach, mais do que qualquer outro artista quem desenvolveu esse "modo" até tornar a sonoridade barroca tão fácil de ser reconhecida mesmo que você nada saiba sobre teoria musical ou estética.  Só que Bach era... luterano.  O Barroco, que foi originalmente pensado para exaltar a exuberância católica face a austeridade protestante encontrou num gênio luterano sua forma perfeita.  Sou católico e quando entro numa igreja barroca, reconheço a minha fé em tudo que lá está.  Em termos teológicos.  Mas, vc não precisa ser católico para compor músicas barrocas divinas.  Isso diz muito da relação entre estética e política.  Essas relações simplesmente não podem ser controladas por variáveis de um projeto.

Vou recolocar a questão de um modo bem distinto.  Mas, partindo do barroco.  Uma sessão espírita kardecista poderia acontecer num recinto ornado conforme os cânones da arte  barroca.  Mas, bem diferente de uma missa, a estética em nada corresponderia ao que se passa em termos teológicos numa sessão espírita.  Não é acaso que predominem linhas retas e despojamento ornamental em centros espíritas kardecistas.  Quando era criança, presenciei sessões em que um medium incorporava ninguém menos que Inacio de Loyola.  O Santo paradigmático da Contrarreforma, o primeiro dos jesuítas.  Ele o incorporava verbalizando e gesticulando liturgicamente a celebração eucarística na forma tridentina.  Deixando de lado o problema de como um medium poderia saber essas fórmulas litúrgicas do sec. XVI, é interessante pensar que elas se mostravam  "normais" numa sessão kardecista.

Estão “pegando” o que estou querendo dizer?  Transpondo mais uma vez para a política: costumo dizer com uma boa dose de ironia de que prefiro como neopentecostais atacam as religiões de matriz africana do que a forma pela qual elas são defendidas por alguns grupos de direitos humanos.  Mesmo que demonizem os orixás, ao menos os pastores neopentecostais os deixam vivos!  E esses grupos de direitos humanos, o que fazem?!  Preservam a liberdade religiosa, "matando" orixá ao reduzi-lo a patrimônio imaterial de memória da diáspora negra. Uma manifestação cultural de caráter predominantemente estético por identificada sensorialmente com uma matriz étnica; essa redução é necessária para estar subordinada a um projeto político. Eis aqui mais uma vez o  dilema de Édipo:  esses grupos de direitos humanos são capazes de destruir o candomblé de um modo bem mais radical do que qualquer pastor neopentecostal do complexo de Israel seria capaz de fazer.