sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Pantera Negra, uma alegoria no melhor ano da Paraíso do Tuiutí

Está em cartaz o mais recente lançamento cinematográfico do universo Marvel:  Pantera Negra.  Por inovação, agrega valor ao enfrentar francamente o desafio de se servir de um argumento politicamente sensível a críticas severas por organizações civis que se dispõem a um exame minucioso de produtos deste jaez, eis que advém de um empreendimento global e de capital intensivo, mas particularmente sensível a impactos negativos de reputação no seu retorno financeiro.

Bem, o filme foi lançado e ninguém logrou repercussão com um discurso que expressasse ofensivo o tratamento dado pelo produto à identidade racial enfocada.  Neste sentido, a obra já é socialmente bem sucedida e mostra-se assim hábil a uma abordagem sobre o  imaginário social da ofensa.   O que será feito em vôo de passarinho.



O seu cenário principal é um fantástico reino no coração da África.  Seu enredo se desenrola em conturbada sucessão dinástica que impacta o destino de uma sociedade híbrida entre a tradição tribal e o manejo intensificado de capital e tecnologia.    Trata-se de uma alegoria dos EUA, referente às suas capacidades produtivas e liderança tecnológica (particularmente manifestas na indústria de armamentos)  e seus dilemas, tanto a sócio-racial como de relações internacionais.  O dilema sócio-racial é presente entre escolhas políticas, uma marcada pela manipulação de conflitos, oposta à outra, cooperativa e conciliatória.   Quanto ao relacionamento internacional,  o dilema é apresentado entre uma postura de preservação da identidade nacional e fechamento de  fronteiras (muros) e outra de integração global (pontes).   

Para que a alegoria restasse inteligível, o argumento recorreu a um jogo entre identidade e diferença a partir da relação estabelecida entre singularidade e universalidade num horizonte de segundo plano.  Neste horizonte secundário, a estética delineia a especificidade e a lógica tecno-científica, a universalidade.  Este é o horizonte de todo universo Marvel.

A partir da compreensão da relação hoje existente entre a estetização do mundo pela consumação por dispositivos e uso hiperbólico de técnicas e procedimentos, pode-se perceber o excesso performático que impacta a percepção atual da possibilidade como sentido de risco e o perigo como sentido do devir para o Estado, enquanto o discurso teorético insiste em tratar o bem-estar como positivação da dignidade humana e como condição definidora dos bens jurídicos a serem protegidos antecipadamente à lesão.   Em outras palavras, resta saber se as teorizações atuais acerca da relação entre Estado e sociedade têm sido hábeis, ou não, em guardar a prudente distinção entre os bens éticos e estéticos. 

Aparentemente, essa distinção é fácil, eis que a estética se voltou até a modernidade matutina, ao ideal de beleza.  Enquanto a ética, ao que é bom.  Mas, no limiar entre o bom e o belo está o agradável, onde emerge o problema fundamental do bem-estar.  Questão sobre a qual até os gregos do tempo de Platão já se debruçavam.  Os heróis da Marvel chamam para si uma vivência desagradável a fim de que todos os demais possam viver em bem-estar.  O desagradável aí já é uma expressão laica da ética cristã em face à narrativa trágica pensada pelos gregos antigos.  Mas, há algo de diferente na modernidade vespertina:  na desdefinição ágil dos indivíduos pelas individualizações sempre transitórias, tal como proporcionadas pela cumulação dispositiva da consumação performática, há o vazamento dos valores positivados na moral e no Direito: a estética não se deixa limitar ao belo e passa a explorar sobremaneira as percepções sensoriais nas significações possíveis com o uso de linguagens.  O que acontecia somente em deslocamentos excepcionais em relação ao cotidiano, e portanto, em espaços marginais, passa a ser central no manejo procedimental dos conceitos.    Pelos vazamentos conceituais dos valores, a estética se tornou colonizadora da moral e  Direito contemporâneos.