sexta-feira, 28 de abril de 2017

Igreja e escravidão 2: ambiguidade numa cidade que se partiu

Ainda sobre a Igreja de São Francisco de Paula, onde, vez ou outra, assisto missa depois de dois dedos de prosa com o Pe. Martini. Quem ornou à talha o seu altar-mor foi ninguém menos que Mestre Valentim.  Que, aliás, era (com pedido de perdão no emprego de uma expressão que hoje alguns se crispam ao lerem) mulato.  Mas dele, embora venha ao caso, não quero falar.

Quero lembrar de outro artista.  Aquele que pintou lá os painéis da capela do noviciado, dedicada à Nossa Senhora da Vitória.  Manoel da Cunha.  Este nasceu escravo. "Pertenceu" à família de um padre depois prestigiado no primeiro reinado, o Cônego Januário Barbosa.

Essa família primeiro levou-o a estudar aqui no Rio com um artista estabelecido, o João de Sousa. E depois o mandaram à Lisboa para completar seus estudos.  Isso, por devoção. Para que ele pudesse melhor se dedicar à arte sacra.  



Mas, foi preciso que um comerciante admirador seu, José Dias da Cruz, lhe financiasse a alforria.  Nosso artista abriu um ateliê, se tornou um requisitado retratista da sociedade carioca à época e fez escola ensinando sua arte.  Em 1809, foi enterrado com exéquias na Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte pela qual praticamente todo carioca já passou à porta, ali na esquina da Rosário com Rio Branco.  





quarta-feira, 26 de abril de 2017

Igreja e escravidão: ambiguidade numa cidade que se partiu

Não diz tudo.  Mas diz sim alguma coisa.  Até hoje, o sino "Aragão" repousa no alto da velha Igreja de São Francisco de Paula.  Ele é o terceiro duma trinca que forma com o "Grande" e o "Vitória".

Hoje esquecidos dos cariocas, esses sinos já fizeram parte da crônica desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.  Quando o Vitória troava, um incêndio se sabia por todos.  E, contando suas badaladas, os moradores se inteiravam aonde a cidade ardia.
Mas, no dia-a-dia, era o som do Aragão que ditava.  Ideia do Desembargador Teixeira de Aragão, que impôs um toque de recolher na capital do Império e o maior porto negreiro das Americas.  Literalmente.  Depois que o Aragão badalava à noite, qualquer um na rua podia ser abordado pelos milicianos.  Mas, aos negros, o Aragão presumia vadiagem: uma noite no calabouço, quase na certa. E  quiçá porrada, na entrada. Chibatada, na saída.

Ao saberem o que acontecia a escravos, quando começaram a ouvir o Aragão toda noite, as reclusas no convento das Carmelitas tomaram uma liberdade.  Um dos sinos da Igreja de Santa Teresa passou a repicar uns 20 minutos antes do Aragão.  Era para que ninguém fosse pego desprevenido, quando a milícia recebia licença para catar pretos pelas ruas da cidade.