quarta-feira, 22 de março de 2017

Ética, mas que diabos?!


O ethos  é caráter, costume e moradia.  É um modo de ser de alguém como o abrigo da sua humanidade em si, com que toca, afeta outrem (pathos) na conjugação do verbo (logos). O  ethos se refere à atitude do emissor que dá consistência ao seu modo de ser, o que é necessário à empatia por quem o avalia.  Ainda que imprescindível, uma adequação formal/causal de meios à sua realização de um fim feliz não esgota a ética.   Senão na realidade do nós.  Pois, as linguagens são as moradas do ser, elas tornam mundo um comum-pertencer: é linguagem a mesmidade entre pensar e ser.  

O insidioso na insistência do eu consciente como ponto de partida da ética é que a empatia perde vigor, e o bem comum tende a se fragmentar ou se diluir em polissemias, quando só aparece, se conhecido por mim mesmo e outros quase-eu (autonomias legisladoras), porque soçobra ao sabor de identidades e identificações transitórias.  Qualquer integridade convoca o si-mesmo como outro e os totalmente outros para uma presença deontológica. 

Então, em qualquer cooperativa, a ética se destaca do horizonte de indistinção (num sentido de emergência para a consciência) na feição de um dilema visível em suas realizações na ordem econômica:  como  expor os princípios de identidade cooperativa e promover fidelidade a eles em meio às manobras pelos consensos e às pressões por resultados?  As respostas são irredutíveis à cognição sem um recurso a pré-conceitos.  Nalgum paradigma ou alguma principiologia ou teleologia.  Ainda que para falar em mudanças de princípios ou fins.  Isso acontece, porque não percebemos ordinariamente (e empatia é um fenômeno de percepção), senão tendendo a alguma totalização, algum sentido que dê conta.  E isso acontece inclusive na comunicação. 


Mas, é possível uma percepção como abertura.   Uma excepcional sensação de vertigem; um salto a nenhures num mundo que mostrou, num vislumbre, algum excesso que nos convoca à busca de uma expressão; que se nos ressignifica ao dar-nos  uma sensação de descentração do eu (esquecimento de si mesmo) entre a mesmidade e a ipseidade.

Quando me detenho no questionamento “quem sou eu”,  positivo o que é meu numa informação:  corpo, percepção, consciência, intenções, experiências, desejos, sentimentos, escolhas, projetos, patrimônio, psique, espírito, alma, tradição, código de DNA, sexo, liberdade, história, trajetória, biografia, auto estima...    Mas também negativo na diferença entre o “meu” e o “eu” que me identifica como uma referência de perspectiva  por entre signos da linguagem e que aparece originariamente numa especial sensação de tempo, mas que vai encontrar num texto a possibilidade de um si-mesmo como outro, pois nessa vivência originária já serei outro, ainda que sendo eu mesmo. Aqui intuímos uma ipseidade que nos expõe como coautores e intérpretes de nós mesmos.  Trata-se de uma identidade radical com o totalmente outro, em diferença a um si-mesmo reflexivo pelo que já temos identificado e que se projeta nalguém como diferença e o apropria por categorizações de linguagem.  Aqui se articula em particular qualquer enredo sobre liberdade e o bem comum: o que realizamos com o real, conquanto a realidade seja sempre uma realização do real.

Sintagma é um elemento lingüístico que estrutura a sintaxe e a semântica (possiblidade de sentidos).  Sintaxe é a articulação lógica das palavras num discurso.  O imaginário materializa os significados dessa articulação lógica dos significantes num fechamento (totalização) de mundo para que apareça um discurso sobre ele.  A sintaxe é na relação com o sintagma o que torna inteligível a unidade imaginária de um texto.  A ordem sintagmática, no entanto, admite a refiguração imaginária de todos os componentes suscetíveis de configurarem uma semântica da ação prática num quadro paradigmático.  Essa passagem do paradigmático ao sintagmático é a atividade de configuração e a refiguração admite uma passagem do sintagmático a outro paradigma.   Esse ato configurante consiste em considerar o desenrolar da história numa intriga literária; dessa diversidade de acontecimentos, se perceber uma unidade temporal como retenção pelo tecido do enredo.  Há aí então um fechamento em uma (meta)narrativa, mas esse enredamento do outro numa relação já deu conta desse acontecimento originário da ipseidade.  Revelação, por exemplo, na linguagem salvífica entre a kairós, a kenosis e kerissein; imprescindíveis à vivência da integridade plena e possível (ainda que misteriosa) do bom, belo e verdadeiro:  todo mostrar-se é um acontecimento em seu próprio tempo e linguagem;  o tempo todo e em qualquer linguagem, só se mostra, quando também se esconde. Revelador é o trânsito de mostrar-se e esconder-se: uma revelação é necessariamente relacional, comunitária, cooperativa e dialogal.

Em 1908, Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) teve publicado seu livro Ortodoxia.  Há nesse livro um capítulo intitulado Ética da Terra dos Elfos, de onde foi extraído um fundamento para a saga da Sociedade do Anel, escrito por seu amigo John R. R. Tolkien.  Trata-se da felicidade condicional.  A prática do bem se mostra diante de uma condição.  Mesmo numa narrativa marcadamente fantasiosa, mostrar-se-á uma ética, quando uma dádiva ou um poder apoiarem-se num veto.  A felicidade depende do reconhecimento de limitações, mesmo quando não identificamos uma razão ou um motivo para elas.  Há bondade na liberdade que encontra manifestação num sentido material de sustentabilidade.  Faço o que quero, porque posso. Mas atento para a existência de interdições para o meu poder-querer, sem o quê aciono inexoravelmente uma chave trágica da existência.  Um fim feliz está sempre sustentado por alguma contenção de si, senão há uma reversão axiológica (hybris) a emergir um sentido trágico das condições primordiais da condição humana: destinação e finitude (métron). 

O reconhecimento da relação polar  entre essas condições primordiais e a sublimação/temperança (eudaimonia) na constituição do ser humano não necessariamente passa pela função ou motivação ou por alguma razão a ser descoberta, mas pela percepção originária da ipseidade diante de uma conformidade que dá a oportunidade para todos vivenciarem uma empatia fundamental entre o ethos, o pathos e o logos.    Vivência esta que faz aparecer o bem comum compartilhado no pertencimento à polis.