segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Uma carta do pai



Bê, meu filho:

Lembra da estória de Pí?  Sim, daquele filme em que o garoto indiano perdeu os pais no navio que afundou.  Aí, ele dividiu um barco com um tigre... lembra?


É assim.  Às vezes, isso acontece.  A gente perde muito na vida e nem é porque fizemos alguma coisa errada.  Nem precisa acontecer um acidente.  Ou uma guerra.  Ou um apocalipse zumbi.  Pode ser uma grande injustiça.  E a gente se sente esmagado, triste, abandonado, revoltado.  E se pergunta “por que?”.

De tudo que te dei até hoje, as pizzas e os sushis, escola, meu carinho e meus beijos... de tudo mesmo, o que é mais importante?

O mais importante é uma estória que eu faço questão que te contem.  A mesma estória que ouvi de quem viveu antes de mim e sua mãe. E que agora é você quem a escuta.  A estória de Deus, que morreu por amor a todos nós.  E que esse amor é bom, belo e verdadeiro, porque só o amor tudo vence.  Vence a própria morte e a injustiça. Esta é a graça da estória: só quando tudo se perde, descobrimos que nem tudo se perdeu.  O mais bonito, o melhor e o mais verdadeiro de tudo, ficou.  Ficou bem juntinho de você. 

Pois é, garoto.  Tudo isso num pedacinho de pão molhado no vinho. Parece até mentira.  Deus tem algum senso de humor, pelo visto.

Agora, é sério.  Eu posso morrer.  Todo mundo morre um dia.  E mesmo antes de morrer, posso perder minha saúde, meu juízo, meu dinheiro...  Isso pode acontecer com qualquer um.  Mas, essa estória, que agora também será sua, ninguém pode mais tirar de você.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Yom Kippur

Na intenção da celebração do Yom Kippur, transcrevo a palestra do amigo Abraham dada no I seminário Estado Laico e Liberdade Religiosa, que ocorreu dia 5/10 na FND.



Boa noite a todos os presentes.

Agradeço o convite que me foi dirigido pelo Dr. Paulo Horn, Presidente da Associação dos Antigos Alunos da FND da UFRJ, através de quem saúdo todos os membros desta mesa assim como desta prestigiosa Associação e Universidade.

Agradeço o meu novo Amigo Guilherme Krueger, moderador desta mesa. Agradeço a presença de todos e todas neste encontro, especialmente organizado para abordarmos um tema que, cada vez mais, vem ocupando espaço central no noticiário e nas imagens de nossos televisores. Nos defrontando tanto com notícias alegres, notícias positivas, noticias de alento e de esperança no ser humano, em sua sociedade e país, mas, também, por outro lado nos expõe a cenas que nos faz crer ser difícil de acreditar que ainda são possíveis em plena segunda década do século XXI.

Hoje, é 05 de outubro de 2016, e 03 do mês de Tishrei de 5777. O primeiro mês do calendário lunar judaico. Acabamos de celebrar, há 3 dias atrás o inicio do nosso novo ano Judaico. Como a tradição nos ensina, estamos nos 10 primeiros dias dedicados à nossa retrospecção e avaliarmos o que fizemos de bem e o que fizemos de errado e do que nos arrependemos.  No próximo dia 12 de outubro, ou 10 do mês de Tishrei seremos julgados pelos nossos atos por D’us e ninguém mais, no dia do Perdão, dia do Yom Kippur.

Assim, vir nesta noite, abordar o tema de Liberdade Religiosa em face do Estado Laico é um tema muito próprio, também para a ocasião do Calendário Judaico. Pois nos leva a pensar e considerar. Avaliar, entender e, se me permitirem até a sugerir uma ação que me parece ser muito adequada para o propósito deste encontro.

Primeiramente, gostaria de salientar que não sou um advogado. Sou um engenheiro … pois é, ninguém é perfeito …  Assim, fico a alguma distancia das especificidades das leis e de seus desdobramentos. Mas como cidadão e como membro da Associação Beneficente e Cultural B’nai B’rith, creio que posso abordar esta relevante questão do Angulo do Direito e Dever Humano. B’nai B’rith quer dizer FILHOS DA ALIANÇA, lembrando a aliança de D’us com Abraão ao estabelecer a crença do monoteísmo ético.

A B’nai B’rith foi fundada em 1843, na cidade de Nova York, Estados Unidos, por 12 jovens judeus de origem alemã e que viviam na confusa sociedade novaiorquina da época. Onde proliferavam grupos de etnias , religiões e origens distintas. Com influencia dos valores universais do judaismo, e uma referencia à ordem da Maçonaria, fundam uma organização que tinha como objetivo ser um forum onde todas as diferentes vertentes que compunham e ainda compõem a comunidade Judaica pudessem encontrar-se, discutir as suas idéias, suas narrativas e atuassem para o bem da sociedade. Sua primeira atividade foi a criação de um fundo de apoio aos órfãos, viúvas e idosos.

O simbolo da nossa entidade é o candelabro de 7 braços, o mesmo que s registros históricos e bíblicos, indicam o seu uso no Templo Sagrado de Jerusalém. A cada braço, na B’nai B’rith damos um valor universal judaico, que cito : Beneficência, Harmonia, Fraternidade, Luz, Paz, Justiça e Verdade.

A entidade cresceu, expandiu-se e hoje tem presença em cerca de 54 países, é membro, como ONG, desde a fundação da Organização das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e outros. Defendemos os Direitos Humanos, a democracia, contra a discriminação, o desrespeito e, totalmente a favor de uma continua educação multidisciplinar, livre, humana e ampla.

Presente no Brasil, desde 1932 e ininterruptamente, no Rio de Janeiro, desde 1934. Assim, apesar de não ser advogado, assim como uma boa parte dos membros de nossa entidade, no Brasil, a questão dos Direitos Humanos não pode ser entendida, promovida e praticada senão podemos conviver num ambiente de Liberdade democrática, de Liberdade de Expressão, e certamente, não poderia deixar de ter, a Liberdade Religiosa.

Liberdade religiosa deriva da liberdade de pensamento, uma vez que, quando é exteriorizada torna-se uma forma de manifestação do pensamento e principalmente, do sentimento. Ela compreende três outras liberdades: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. Abrange a liberdade de escolha da religião, liberdade de mudar de religião, liberdade de não aderir a
religião alguma e liberdade de ser ateu. A liberdade de culto, abrange a liberdade de orar e a de praticar atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público.

E, principalmente, respeitar a manifestação do outro. Outro que compõe a sociedade que vive, o povo do país. A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelos 58 estados membros conjunto das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot em Paris, (França), definia a liberdade de religião e de opinião no seu artigo 18, citando que "Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião".

A Constituição de nosso país, Brasil promulgada em 1988, no seu artigo 5o. inciso VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Ela deixa muito claro que a Liberdade religiosa e suas múltiplas formas de manifestação podem ser praticadas em convivência harmoniosa com todas as manifestações dos cidadãos e cidadãs.

Embora a nossa Constituição declara termos um governo laico, agradece a D’us pela sua condução na elaboração de nossa Carta Magna. Observo que a Liberdade Religiosa de forma ampla apenas consta, pela primeira vez na Constituição de 1988. A anterior, de 1924, permitia a prática das religiões, mas em ambiente doméstico.

Dizer que, em nosso país, Brasil, temos a Liberdade Religiosa ampla, é faltar com a verdade. Temos sim a legalidade, dentro de limites de resoluções pétreas, o direito de praticar a nossa religião. Temos sim a Liberdade de construir os nossos patrimônios religiosos, como templos, sinagogas, igrejas, catedrais e outros espaços, mas há algo que faltamos. Pois sermos um estado Laico não nos assegura a real Liberdade Religiosa. Não nos assegura o respeito a uma convivência harmoniosa entre as diferentes manifestações. E temos visto momentos de grande intolerância e desrespeito entre grupos de matriz Africana, notadamente, e outros grupos religiosos. Temos visto uma atuação com desconfiança contra Judeus. Temos convivido com um novo antissemitismo disfarçado de antissionismo, de anti-Israel.

A Europa, influenciada pela pressão belicosa socialmente, de grupos fundamentalistas muçulmanos, tem acordado o seu antissemitismo e convivido com ações de discriminação que relembramos praticados há mais de cem anos de ações que levaram, de 1933 a 1945, à política da raça pura, até lembrando a lei da pureza do sangue promovida pela inquisição ibérica, nos quase 300 anos a partir do final do século XV.

A política da raça pura, a Ariana, levou à morte, de forma organizada, determinada e até, pasmem, científica, milhões de crianças, jovens, adultos de todas as origens territoriais onde os exércitos nazistas passassem a dominar. Matou 6 milhões de Judeus apenas por serem Judeus, centenas de milhares de ciganos, centena de milhar de testemunhas de Jeová e dezena de milhares de outros, inclusive padres católicos que não aceitaram a política do estado nazista.

Vemos na Europa, em paises, onde o Estado é declaradamente laico, manifestações e ações de discriminação, inclusive física, contra grupos minoritários. E, o Estado, dito laico e universal, fica impossibilitado de tomar ações determinantes e contra pois sente-se limitado pelo Direito de Expressão, pela Liberdade de pensar.

No entanto, creio que devemos sempre lembrar que antes do Direito vem o DEVER. No judaísmo, o DEVER vem primeiro. Para você ter o seu DIREITO, voce precisa cumprir o seu DEVER. É exatamente neste ponto que o Estado Democrático deve ou melhor deveria ser mais definitivo.

Não é necessário ser um Estado Laico para que a população consiga ter a sua prática de Liberdade religiosa assegurada. Há exemplos de países cujos governos têm uma posição religiosa declarada, como Israel, Dinamarca, Finlândia, Espanha, Argentina, Polônia e tantos outros.  O que importa é o Estado ser democrático no sentido amplo da definição. Pois ser democrático não é apenas ter eleições, mas ter Liberdade e interdependência entre os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Além de ter atitudes e leis que protegem todos os cidadãos que compõem o mosaico social, tanto grupos majoritários como minoritários. Numa verdadeira democracia, os deveres e direitos de todos são iguais perante a lei. Seja maioria ou minoria.  No Brasil, somos oficialmente, um pais de governo laico, mas que tem o crucifixo na maioria das salas dos legislativos e judiciários, independente da religião dos que o compõem. Temos ainda sim, discriminação, temos ainda sim a prática de segregações entre grupos de todas as naturezas, sejam religiosas, étnicas, sociais ou politicas. 

No entanto, dizem que vivemos num ambiente de discriminação tolerante.  Uma figura diferente nas definições das estruturas sociais existentes. Mas, temos que atuar para evitar que esta tolerância se transforme. Pois tudo vai indo bem, quando as coisas estão aceitáveis. Mas, tudo pode mudar. E o que devemos e podemos fazer. A mais duradoura, eficiente, de baixo custo e de simples implementação é a educação. Apenas, às vezes, leva um pouco mais de tempo para ter os seus efeitos percebidos. O desconhecimento, a ignorância, o ouvir dizer de fonte intencional são as principais formas de eternizar e até ampliar o desconforto da convivência. Por isso, educar a todos os jovens, sem discriminação de religião, etnia, cor, preferência social ou outra, a conhecer de forma transparente, honesta e harmoniosa o outro. Visitando o outro, ouvindo o outro, os outros.

Desta forma poderemos ter uma verdadeira chance de superarmos as nossas eventuais dificuldades de harmonia social. Pois de nada adianta apenas termos e fazermos e aperfeiçoarmos LEIS, procedimentos, regulamentos, etc,,, etc …. Se a população tem enraizada preconceitos oriundos do desconhecimento e da distorção da fértil imaginação de alguns.

Assim, meus caros amigos advogados presentes. Ajudem para que possamos educar os nossos filhos de forma ampla, honesta, transparente, democrática e saudável.

Grato pela oportunidade e espero que um engenheiro, preocupado e ativista dos Direitos Humanos e preocupado com o futuro de nossos cidadãos e país, possa ter contribuído com esta vossa honrosa iniciativa,

Shalom,

Abraham Goldstein